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Os biocombustíveis e a cana do Brasil

Jean Ziegler é um sociólogo suíço, professor nas universidade de Genebra e La Sorbonne de Paris. Acaba de publicar um livro, Destruction massive: Géopolitique de la faim que trata do problema dos biocombustíveis, uma área em plena expansão.

Um biocombustível não é apenas um carburante mais “amigo” do ambiente: é, antes disso, o uso das terras agrícolas e das culturas para produzir combustível para veículos de transporte em vez de alimentos para seres humanos, um factor-chave na escalada dramática dos preços dos alimentos em todo o mundo.

No seu livro, Ziegler mostra como a indústria dos biocombustíveis ameaçam aumentar a fome no mundo até níveis nunca atingidos antes. É isso não é um acaso, um acidente: é o resultado de políticas deliberadas implementadas pelos governos relacionados com as poderosas empresas do agro-negócio na procura do lucro privado.

Desta forma, o dramático aumento dos níveis da fome no mundo pode ser descrito como uma forma de “homicídio assassinato calculado”.


Ironicamente, a indústria dos biocombustíveis é promovida por empresas e governos como uma alternativa sustentável aos combustíveis fósseis e “ambientalmente seguros”. Na verdade, é apenas outra forma de exploração excessiva de recursos naturais, tendo como objectivo o lucro. A indústria dos biocombustíveis resulta duma combinação de multinacionais do agronegócio e do petróleo, as quais conhecem as consequências da operação em termos humanos e ambientais.

Nos últimos cinco anos, o mundo testemunhou uma subida preços dos alimentos que está a colocar milhões de pessoas em risco de fome, tudo porque simplesmente não têm dinheiro para comprar comida. Esta é uma acusação chocante para um sistema económico que coloca o imperativo do lucro privado acima da sobrevivência dos seres humanos. Principal entre os factores que causam essa inflação dos preços é o rápido crescimento da indústria mundial dos biocombustíveis.

Mas como é possível promover uma tal indústria sem que haja no público uma qualquer reacção? Simples: o público desconhece as práticas políticas e económicas, nada percebe de agronegócio, só sabe que o biocombustível é “verde”. E se for “verde”, significa que é bom.

Mas tão bom não é e três factores implícitos na produção dos biocombustíveis contribuem para a crescente escassez dos alimentos e o aumento dos relativos preços:

  1. A desapropriação das terras para a introdução da cana-de-açúcar e outras plantas, especialmente nos Estados Unidos, para a produção de biocombustíveis (etanol), priva os pequenos proprietários das suas terras e reduz a quantidade de comida para todos: a perda de terras aráveis tem contribuído para o aumento dos preços dos alimentos. Menos terra, menos alimentos =  preços mais altos.
  2. Especulação acerca da terra arável e dos alimentos é também um factor importante no aumento acentuado dos preços dos alimentos básicos: não apenas os pequenos agricultores são privados das suas terras, mas muitas vezes, sem uma adequada compensação, não podem mesmo ter recursos para comprar comida suficiente para sobreviver ou reiniciar uma actividade agrícola.
  3. A terceira causa é a desertificação e a degradação da terra e do solo, que é acelerada pela substituição cada vez maior de fazendas orgânicas com enormes monoculturas para biocombustíveis, muitas vezes feitas com o uso de organismos geneticamente modificados que requerem grandes quantidades de água. Rios e lagos estão secos, e um número crescente de pessoas em todo o mundo não têm acesso à água potável.

A mentira

O “ouro verde” há vários anos é considerado como um complemento do lucrativo “ouro negro”.

Os monopólios da produção de alimentos que dominam o comércio dos biocombustíveis, em apoio aos novos produtos, apresentam um tema que pode parecer indiscutível: a substituição dos combustíveis fósseis com energia obtida a partir de culturas seria a mais recente arma na luta contra a rápida deterioração do clima e aos danos irreversíveis que estes provocam ao meio ambiente e aos seres humanos.

Alguns dados: mais de 100 biliões de litros de bioetanol e biodiesel foram produzido em 2011. No mesmo ano, 100 milhões de hectares de culturas agrícolas foram usados ​​para produzir biocombustíveis. A produção mundial de biocombustíveis dobrou nos últimos cinco anos, de 2006 a 2011.

A degradação do clima é uma realidade. Globalmente, a desertificação e a degradação dos solos afecta agora mais de 1 bilião de pessoas em mais de 100 Países. As zonas áridas representam mais de 44% das terras aráveis ​​do planeta.

A destruição de ecossistemas e de vastas áreas agrícolas do mundo, especialmente na África, é uma tragédia para os pequenos agricultores e criadores. Na África, as Nações Unidas estima que existam 25 milhões de “refugiados ambientais” ou “migrantes ambientais”, isso é, seres humanos que têm sido forçados a deixar as suas casas devido a desastres naturais (inundações, secas, desertificação) e que, no final, lutam para sobreviver nas favelas das grandes cidades. A degradação da terra alimenta o conflito, especialmente entre os fazendeiros e agricultores.

As empresas que produzem biocombustíveis têm convencido a maioria da opinião pública mundial, e basicamente todos os Países ocidentais, que a energia produzida a partir das plantas é a arma milagrosa contra a deterioração do clima.

Mas este argumento é uma mentira: ignora os métodos de produção e os custos ambientais, que exigem muita água e muita energia.

Em todo o planeta, a água potável está a tornar-se um bem cada vez mais escasso: uma em cada três pessoas é forçada a beber água poluída. Cerca de 9.000 crianças com menos de dez anos morrem a cada dia devido ao facto de que a água que bebem não é adequada para o consumo.

Segundo a Organização Mundial da Saúde, um terço da população mundial ainda não tem acesso à água potável a um preço acessível e metade da população mundial não tem acesso à água limpa e potável. Só na África sub-saariana, aproximadamente 285 milhões de pessoas não têm acesso regular à água potável; 248 milhões de pessoas na Ásia estão na mesma situação, 398 milhões na Ásia oriental, 180 milhões na Ásia meridional e no Pacífico, 92 milhões na América do Sul e nas Caraíbas, 67 milhões nos Países Árabes.

E, claro, são os Países mais pobres que sofrem mais severamente pela falta de água.

Do ponto de vista hídrico, a produção de dezenas de biliões de galões de biocombustíveis a cada ano é um verdadeiro desastre: são precisos cerca de 4.000 litros de água para produzir 1 litro de bioetanol.

A obsessão com Barack Obama

Os produtores de biocombustíveis, algumas entre as mais poderosas corporações do mundo, têm sede nos Estados Unidos. Recebem anualmente biliões de Dólares sob-forma de ajuda governamental. De acordo com o presidente Barack Obama, no seu Discurso sobre o estado da União em 2011, para os Estados Unidos o programa do bioetanol e biodiesel é uma “questão nacional”, uma questão de segurança nacional.

Em 2011, subsidiados por 6 biliões de Dólares de fundos públicos, os EUA queimaram 38,3% da safra nacional de trigo, em comparação com 30,7% em 2008. E desde 2008, o preço do trigo no mercado mundial aumentou 48%.

Os Estados Unidos, apesar da crise, continuam sendo a primeira potência económica: apesar dum número relativamente baixo de habitantes (300 milhões, comparado com 1,3 biliões da China e da Índia) os EUA produzem pouco mais de 25% de todos os bens industriais produzidos num ano no planeta.

A matéria-prima dessa máquina incrível é o petróleo. Os Estados Unidos queimam uma média diária de 20 milhões de barris, cerca de um quarto da produção mundial. 61% desse total, pouco mais de 12 milhões de barris por dia, é importado.

Para o Presidente dos Estados Unidos, esta dependência é uma óbvia preocupação. E mais preocupante é o facto de que a maior parte deste petróleo importado vem de regiões onde é endémica a instabilidade política e/ou onde os Americanos não são bem vistos. Em suma, onde a produção e a exportação para os Estados Unidos não são garantidos .

George W. Bush foi o iniciador do programa de biocombustíveis. Em Janeiro de 2007 estabeleceu uma meta para ser atingida: ao longo dos sucessivos dez anos, os EUA teriam de reduzir 20% do consumo de combustíveis fósseis e multiplicar por sete a produção de biocombustíveis.

Queimar milhões de toneladas de alimentos num planeta onde a cada cinco segundos uma criança com menos de dez anos morre de fome, é obviamente ultrajante, mas na óptica americana é normal que para encher um depósito e automóvel (capacidade média de pouco menos de 50 litros) seja preciso destruir 358 kg de milho

No México e no Zâmbia o milho é o alimento básico. Com 358 kg de trigo, uma criança teria comida suficiente por um ano.

Brasil: a maldição da cana

Não apenas os biocombustíveis desperdiçam anualmente centenas de milhões de toneladas de milho, trigo e outros alimentos, e não apenas liberam ao longo da produção milhões de toneladas de dióxido de carbono que fica na atmosfera: além disso, causam desastres sociais em Países onde as empresas que produzem biocombustíveis se tornam dominante.

O exemplo do Brasil.

A luta dos trabalhadores nell’engenho Trapiche é um exemplo apropriado. As vastas terras que pouco visíveis na névoa da tarde eram propriedade estatal: eram, até há poucos anos, lotes de 1-2 hectares, cultivados por pequenos agricultores de subsistência. As famílias viviam na pobreza, mas estavam seguras pois podiam gozar de relativa prosperidade e liberdade.

Através de influentes relações com o governo federal de Brasília, foi obtido o “desmantelamento”, ou seja, a privatização dessas terras. Os pequenos produtores de grãos e cereais que viviam aqui foram transferidos para as favelas de Recife. A poucas excepções são aqueles agricultores que aceitaram de tornar-se cortadores de cana de açúcar; e hoje aqueles trabalhadores são explorados.

No Brasil, o programa de produção de biocombustíveis é considerado uma prioridade. E a cana-de-açúcar é um dos bens mais rentáveis ​​para a produção de bioetanol.

O programa brasileiro para um rápido aumento da produção de bioetanol tem um nome curioso: o plano Pro-álcool. Em 2009, o Brasil consumiu 14.000 milhões de litros de bioetanol (e biodiesel) e exportou 4.000 milhões de litros.

O objectivo do governo é exportar mais de 200.000 milhões de litros.O governo do Brasil quer aumentar para 26 milhões de hectares o cultivo da cana-de-açúcar. Na luta contra os gigantes do bioetanol, os cortadores da plantação Trapiche não têm chance.

O plano para a implementação do Pro-álcool brasileiro levou à rápida concentração das terras nas mãos de poucas corporações de “barões” indígenas e das multinacionais.

Esta monopolização aumenta a desigualdade e agrava a pobreza rural (bem como a pobreza urbana, como resultado da migração desde áreas rurais). Além disso, a exclusão dos pequenos agricultores ameaça a segurança alimentar do País, já que eles são os únicos que podem garantir o sustento da agricultura.

As famílias rurais chefiadas por mulheres têm menos acesso à terra e sofrem maior discriminação.

Em definitiva o desenvolvimento da produção de “ouro verde” no modelo agro-exportador muito enriquece os barões do açúcar, mas muito empobrece os agricultores: na verdade, foi assinada a sentença de morte para a agricultura familiar de pequeno e médio porte e, portanto, para a soberania alimentar do País.

Mas, para além dos barões do açúcar brasileiro, o programa Pro-Álcool gera lucros para empresas transnacionais como a Louis Dreyfus, Bunge, Noble Group, Archer Daniels Midland e para grupos financeiros de propriedade de Bill Gates e George Soros, mas também para os fundos soberanos da China (os fundos soberanos dão fundos de investimentos de propriedade do Estado, constituído por obrigações, imóveis, metais preciosos e outros instrumentos financeiros ainda).

Num País como o Brasil, onde milhões de pessoas estão a exigir o direito de possuir um pedaço de terra, onde a segurança alimentar está ameaçada, a apropriação de terras por parte de empresas multinacionais e fundos soberanos é um escândalo.

Para obter pastagens novas, os grandes proprietários e gestores de algumas empresas transcontinentais queimam as florestas do Brasil. Dezenas de milhares de hectares a cada ano.

A destruição é definitiva. Os solos da Amazónia e do Mato Grosso, cobertos por florestas primárias, têm apenas uma fina camada de húmus. Mesmo no caso pouco provável em que os líderes do Brasil desejem travar a destruição, não seria possível recriar a floresta amazónica, “o pulmão do planeta”. As previsões apontam para 40% da floresta amazónica desaparecida até 2050.

Desde que o Brasil tem gradualmente substituído as culturas alimentares com a cana-de-açúcar, entrou no círculo vicioso do mercado internacional de alimentos: forçado a importar alimentos que não produz, isso aumenta a procura global, o que por sua vez provoca um aumento dos preços.

A insegurança alimentar, da qual uma grande parte da população brasileira é vítimas, está directamente relacionada ao Pro-álcool. Isso é evidente em particular nas áreas onde a cana é cultivada, pois os alimentos básicos, composto quase exclusivamente por produtos importados, estão sujeitos a flutuações significativas de preços.
Muitos pequenos agricultores são compradores líquidos de alimentos porque não têm terra suficiente para produzir alimentos suficientes para as suas famílias. Assim, em 2008, os agricultores não foram capazes de comprar comida suficiente por causa da súbita explosão dos preços.

Além disso, a fim de reduzir custos, os produtores de biocombustíveis exploram milhões de trabalhadores, de acordo com o modelo ultra-liberal da agricultura capitalista. Não apenas recebem salários de miséria, como também têm horários de trabalho desumanos, têm infra-estruturas mínimas e as condições de trabalho estão no limite da escravidão.

Ipse dixit.

Fonte: Axis of Logic