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O taxísta bailarino

Hoje estive num supermercado, o que já não é bom, e enquanto ficava na fila reparei em três coisas.

1. Os preços aumentaram de forma brutal.
Tá bom, é o que merecemos por causa da nossa intrínseca estupidez, não é que haja muito a dizer acerca deste assunto.

2. Numa outra fila havia uma mãe com um bebé nos braços.
Este estava embutido num casaco que parecia um colchão, estava vermelho como um pimento e fartava-se de chorar. E com razão, pois de facto estava a assar de forma lenta: eu, por exemplo, estava de mangas curtas (embora seja verdade o facto de eu ser exagerado no que diz respeito ao calor; doutro lado estou habituado à neve, não ao pseudo-frio português…).

Não é a primeira vez que reparo em situações similares e não entendo a atitude destes pais: não é que manter um bebé na casa dos 40º graus signifique torna-lo mais saudável. Aliás, acho ser exactamente o contrário: sem contar com a constante transpiração, da primeira vez que a criatura tiver verdadeiramente frio ficará logo com uma pneumonia, pois o corpo dela nunca terá tido a possibilidade de desenvolver as defesas naturais.


O máximo são os carrinhos para bebé com cobertura em plástico transparente: autênticas estufas onde não circula ar nem oxigénio, foram inventados para “proteger da chuva” mas na verdade são utilizados em todas as ocasiões, Verão incluído. Acho que o projectista deve ter sido um velho oficial das SS, antigamente empregado em qualquer campo de extermínio.

3. Mais à frente encontrava-se a caixa.
Uma rapariga bonitinha cujo papel era passar os artigos por cima do leitor óptico, fornecer sacos de plástico e perguntar qual a forma de pagamento: dinheiro ou cartão?
Um trabalho emocionante, sem dúvida.

Lembrei dos tempos do liceu quando um dia participei numa reunião dum grupo comunista (“Luta Comunista” ou algo de parecido): o assunto em debate era a alienação do trabalhador.
Solução: fazer que cada trabalhador fosse empenhado em vários trabalhos. Magnífico.
Eu fiquei logo fascinado por esta sociedade ideal onde os carros iam todos em marcha atrás e onde os telemóveis faziam travar os comboios.

– O senhor deseja também mudar o óleo?
– Mas eu tenho que ser operado de apendicite…
– Sim mas hoje o cirurgião é o mecânico.

Não sei, se calhar foi naquela altura que começou a minha desconfiança em relação ao Comunismo.
Mas o problema da alienação existe e disso não há dúvida.

Mais: não é apenas um problema de desenvolver um trabalho monótono e repetitivo: com o actual sistema é a mesma sociedade que fica a perder.

Por exemplo: Walner é taxista em Rio de Janeiro, por acaso uma profissão simpática. Talvez seja o melhor taxista de Rio, mas não poderia ser também um excelente pintor? Ou genial cientista? Ou grande músico? Ou o melhor escritor do planeta?
Porque não? Como podemos saber quais as melhores aptidões duma pessoa?

É dito que a escola serve também para isso. O que é uma mentira.

O menino Max, quando acabou a escola obrigatória, enfrentou o dilema: e agora? Qual escola? Os meus pais falaram com os antigos professores os quais não tiveram dúvidas: o menino é muito bom na Matemática, dotado mesmo.

Eu não sabia de ter este dom, por isso confiei e escolhi um endereço científico onde, óbvio, a Matemática abundava. E, de forma igualmente óbvia, o menino Max cedo descobriu a sua total aversão para tudo o que tinha a ver com números. De facto, não é que eu não goste de Matemática: simplesmente, perante uma equação, começam as tonturas, perda de memória, taquicardia, fibrilação e por fim o desmaio.
Na verdade odeio um universo onde 2 + 2 é sempre 4.

Então, que tinha acontecido? Duas coisas:

  1. a diferença entre a matemática do ensino básico e aquela da escola secundária era abismal. Até quando tudo ficava resumido a operações elementares, o meu cerebrinho aguentava; ultrapassado este limite, as sinopses começavam a falhar. De facto, os professores (tal como os meus pais e até mesmo eu) não tiveram os instrumentos para avaliar o meu desempenho nesta área.
  2. em breve descobri quais as matérias que  mais conseguiam estimular-me: línguas no geral, escrita, geografia, filosofia, história, música. Mas percebi isso só depois, porque o ensino básico não foi capaz de dar-me suficientes “dicas” acerca disso.

Agora, ampliamos o discurso. Quantos entre nós descobriram paixões ao longo da vida, entendo só depois ter acabado a própria formação? O problema é que após a formação começa o trabalho (com sorte nos dias que correm) e já não sobra muito tempo para cultivar outros interesses.

Outro exemplo: publiquei dois cd enquanto já trabalhava e sempre encarei a música como um passatempo e nada mais do que isso. Poderia ser eu um novo Beethoven? Duvido muito, além disso não gostaria de ficar surdo como ele. Mas, tal como Walner, poderia brilhar em outras áreas, algumas das quais se calhar nem consigo imaginar agora.

Estamos a falar, é claro, do potencial que cada um de nós tem e que a nossa sociedade não valoriza.
A menina da caixa com certeza terá atitudes bem mais interessantes do que transitar mercadoria por cima dum leitor óptico: mas nesta altura é o melhor que consegue, pois vive num País em profunda crise (Portugal!) e ainda fica satisfeita por ter um trabalho.

É um assunto complicado, sem dúvida, mas acho ser algo de extremamente importante, apesar de nem conseguir vislumbrar uma solução. Pois não é apenas a menina da caixa que fica a perder, é toda a sociedade que abafa um oceano de possibilidades.

Imaginem se fosse possível encontrar uma maneira para as pessoas exprimirem toda a potencialidade delas: teríamos os melhores cientistas, os melhores médicos, os melhores escritores, os melhores canalizadores, os melhores jardineiros, os melhores blogueiros…não, desculpem, isso já temos e sou eu.

Toda a sociedade ficaria a ganhar. E uma pessoa poderia distinguir-se em mais do que uma área: Walner poderia ser ao mesmo tempo o melhor taxista, o melhor bailarino de samba de Rio e um entre os melhores costureiros do Brasil (bailarino, costureiro…mah…).

Sempre pensei nisso acerca dos Países mais sub-desenvolvidos, aqueles onde as pessoas morrem de fome: quantos Einstein sofrem de disenteria nesta altura?

Ipse dixit.