O dinheiro

Tudo o que estamos a viver (crise, bancos e muito mais) tem um culpado.

Todas as notícias que circulam nos media contam incessantemente das acções que têm como razão primeira e última sempre o mesmo culpado. É um relacionamento de amor-ódio que nos últimos tempos está cada vez mais virado em favor do sentimento negativo.

Afinal, parece que todas as nossas desgraças têm a mesma causa.
Falamos dele, o grande responsável: o dinheiro.

O dinheiro é assim tão mau? É a ruína da Humanidade?
Não, não é. Aliás, foi uma das melhores invenções desde o aparecimento do Homem. E perceber a razão é simples.

Trocas e omeletes

Antigamente o comércio era feito com trocas.

Eu vivo na Pré-História: tu queres o meu queijo? Então tens que dar-me 4 ovos.

Simples, eficaz. Até um certo ponto. Porque se em vez do queijo queres comprar a minha cabana, então tens que dar-me 4.000 ovos, pois tu só isso produzes. Como consegues transportar e entregar-me 4.000 ovos? Problema teu, ora essa, a troca é assim que funciona.

Mas a seguir sou eu que tenho um problema: onde vou pôr 4.000 ovos? E se entretanto nascerem os pintainhos? Eu não quero galinhas, já tenho, quero ovos. Talvez uma omelete seja a solução. Uma omelete bem grande, óbvio…

Isso sempre que comprador e vendedor vivam relativamente perto. Imaginemos um troca de longa distância, entre Países diferentes ou até continentes. Nesta altura os oceanos estariam repletos de navios carregados de ovos. Podemos intuir as consequências duma tempestade.

E se o galinheiro for atingido por um vírus mortal? Ops, acabaram os ovos…uma tragédia para quem faz dos ovos a própria fonte de riqueza. Vender e comprar o quê agora? O que posso comprar eu, produtor de ovos, após ter ficado sem galinhas? Nem tive a possibilidade de acumular um pouco de riqueza, pois todos os ovos nesta altura já tornaram-se pintainhos. E também os pintainhos já foram com o vírus.

Há depois outro problema. Nem todos produzem ovos, há também que cultive, por exemplo. O meu vizinho pré-histórico cultiva pêssegos e quer comprar um bonito cavalo que viu ontem no mercado.

Problema: os pêssegos não estão disponíveis ao longo do ano todo, assim se o cavalo aparecer na altura certa pode compra-lo, caso contrário terá que esperar até a próxima época dos pêssegos. E esperar que o cavalo, entretanto, não tinha sido vendido.
Problema dele: eu já tenho 1 cavalo. E um cão também. E o cão tenta explicar-me como seria bom inventar a moeda. Mas esta é outra história.

Pois outro inconveniente em nada secundário da troca é mesmo este: as mercadorias têm de estar presentes no mesmo espaço e no mesmo tempo, caso contrário a troca não pode ser realizada.

As conchas e os ovos

 
Então alguém teve uma ideia: e se ao invés dos ovos ou dos pêssegos transportar a representação deles?
Por exemplo: uma concha. Decido que uma concha representa o valor de 1.000 ovos.
4 conchas = 4.000 ovos.

Se o comprador aceitar a representação, isso é , se concordar no facto de que a concha representa o valor dos ovos, então o jogo está feito: nasceu a moeda. E esta foi uma das grandes invenções da Humanidade. Porque desta forma é possível comprar e vender tudo sem ter de transportar tudo: é só levar consigo a representação do valor, algo de pequeno, prático, que até pode ficar no bolso. Genial.

O nascimento da moeda possibilitou o comércio, que até então podia existir apenas com fortes limitações: não interessa a distância ou o valor em causa, com a representação da riqueza tudo é infinitamente mais simples e prático.

A moeda permitiu armazenar o valor dos ovos sem ser obrigados a ter fisicamente os ovos disponíveis.
Permitiu realizar compras e vendas entre pessoas que tinham ovos para vender e pessoas que não queriam comprar ovos: já não é preciso comprar ovos, é só ficar com o valor dos ovos. E o valor dos ovos (não os ovos!) pode ser vendido para comprar outros artigos, como laranjas, por exemplo.

Na verdade a passagem não foi tão imediata. Antes da criação da moeda foi utilizada uma “mercadoria-ponte”.

Eu vendo ovos mas a moeda ainda não foi inventada: há a mercadoria-ponte, um pó amarelo, metálico, que o pessoal chama “pó de ouro”. A gente gosta deste pó, pois é bonito, não fica enferrujado com o tempo e pode até ser trabalhado para criar outros objectos.

Por isso: vendo ovos e recebo uma determinada quantia de mercadoria-ponte, alguns gramas de pó amarelo. Que posso utilizar para comprar pêssegos,  leite ou uma televisão.

Uma televisão na Pré-História? Sim, pois ainda ninguém transmite e o meu cérebro não fica lama. Na verdade, vou utilizar a televisão como ornamento.

Pó, barras e balanças

Também o ouro tinha alguns problemas.
Viajar com um saco de pó não dá muito jeito, sobretudo porque com o saco tenho que levar uma balança.
Quanto queres pelos teus ovos? 14 gramas de ouro? Então espera que vamos medir: 10 gramas, 12 gramas, ainda um bocado, 16 gramas, fogo é demais, retiremos um bocado, cá está, 14 gramas.

Muito mais prático levar medidas já prontas. Por exemplo: barras de ouro de 2 gramas de peso.
Quanto queres pelos ovos? 14 gramas de ouro? Toma lá 7 barras de ouro. O quê? Não é ouro este? Como te atreves, vil produtor de ovos pré-históricos?

Pois, eis outro problema. É ouro ou algo de parecido? E mesmo que seja ouro: será tudo ouro ou terá sido adicionado outro componente para “fazer peso”?
Para resolver a dúvida temos de usar a pedra de comparação, o jaspe preto. Este é outro mineral: quando esfregado com o ouro, fica com estrias, a cor das quais indica a composição do ouro.

Ouro, balança, jaspe…fazer comércio nesta altura é bem complicado, quase quase melhor voltar a trocar ovos. A não ser que aquele cão tenha razão: que tal inventar a moeda?

Os gansos, a Deusa e as moedas

Em 390 a.C. Roma encontrava-se cercada. Brenno, chefe dos Galos, queria conquistar a cidade e, esperto como uma raposa tailandesa, pensou atacar ao longo da noite, enquanto os Romanos dormiam. Um plano muito original.

Ao chegar perto da colina do Campidoglio, os Galos assustaram os gansos que aí viviam; e os gansos são barulhentos. Desta forma os Romanos foram alertados e os Galos repelidos.

Mas que tem isso a ver com a nossa história?
O facto é que no Campidoglio havia um templo da deusa Juno, que com a ocasião ganhou o apelido de Juno Moneta, do verbo monere, “alertar”. Mais tarde, no lugar foi aberta a Casa da Moeda de Roma, sob a protecção da deusa Juno Moneta. E o dinheiro, nummus até então, tornou-se moneta, moeda.

A moeda é por antonomásia o dinheiro: é a forma mais conhecida e, sobretudo, a mais antiga, pois as notas foram inventadas muito mais tarde.

A moeda representa uma garantia: quem a produz certifica que contem uma determinada quantia de ouro, nem mais, nem menos. O que facilita imenso o comércio: é só fixar um preço em moedas e tudo fica muito mais simples.

Queres 10 ovos? São 4 moedas. E não é preciso usar balanças e pedras de comparação, todos sabem que uma moeda contem o que diz conter. É um valor, sempre o mesmo, reconhecido e aceite por todos.

Claro, há a possibilidade da contrafacção. Mas é mais complicado, pois quem falsificar as moedas terá que criar cópias exactas das mesmas moedas, com as mesmas dimensões, o mesmo peso, o mesmo aspecto. Possível, sem dúvida, mas muito mais complicado de que corromper pó ou anónimas barras de ouro.

Outra vantagem: as moedas podem até não conter ouro ou outros metais preciosos. Porque quem compra e quem vende reconhece a moeda como valor, independentemente do tipo de metal com a qual é feita. É a mesma coisa que se passava com as conchas, só que neste caso a moeda é criada, é standard e tem o reconhecimento oficial por parte dos comerciantes e dum Estado.

E não é pouco.

E agora: as notas

Mais práticos do que as moedas? As notas: pesam menos, não têm que conter metais valiosos. E podem ser a representação de valores enormes.

Na verdade, as primeiras notas não nasceram como dinheiro. A ideia foi de alguns banqueiros italianos e flamengos no século XIV: porquê ser obrigados a transportar moedas preciosas pelas ruas repletas de assaltantes? Melhor um pedaço de papel com escrito: “Eu sou o banco X, façam o favor de entregar a este senhor 1.000 moedas de ouro”.

Antes das notas: “Este é um assalto: entreguem o dinheiro ou vamos matar todos!” E a única solução era entregar o dinheiro.
Com as notas: “Este é um assalto: entreguem o dinheiro ou vamos matar todos! O quê e isso? Papel?”. E os assaltantes zangados matavam todos.
Um progresso não indiferente.

O Sistema Áureo

Lentamente o ouro desapareceu das ruas. Agora para comprar os ovos era suficiente uma moeda dum metal qualquer ou uma nota. O dinheiro tinha ganho a guerra. E o ouro ficou cada vez mais preso nos cofres, sobretudo dos Estados, os quais podiam pôr em circulação moedas que representassem o valor do ouro guardado.

Guardado? Mais ou menos. Porque na realidade quem controlava quanto ouro havia nos cofres? Resposta: o mesmo Estado, que na altura era na maior parte dos casos constituído por uma monarquia.
Resultado: sobretudo a partir do 1700 havia em circulação muitas mais moedas do que o valor do ouro efectivamente guardado. Uma situação que implicava benefícios mas também riscos.

Então foi decidido implementar o Sistema Áureo.
Em palavras simples: a base de todo o dinheiro em circulação passava a ser o ouro e o mesmo dinheiro tinha que ser expressão do valor do ouro guardado nos cofres dum Estado.

Tudo como antes? Não, pois com o Sistema Áureo o ouro:

  • passava a ser representado pelo total do dinheiro em circulação (plena convertibilidade: tenho um Dólar e se for a um banco e pedir são obrigados a trocar o Dólar pelo respectivo valor em ouro)
  • passava a ser representado várias vezes pelo total do dinheiro em circulação (convertibilidade parcial: tenho um Dólar e se for a um banco e pedir são obrigados a trocar o Dólar pelo respectivo átomo de ouro).

Mas em ambos os casos na base havia um metal precioso universalmente reconhecido como valor de referência. Isso era importante porque o dinheiro dos vários Países, tendo todo o mesmo bem como base e sendo expressão dele, podia ser cambiado com extrema facilidade, o que tornava as trocas comercias mais simples.

Queres um ovo e és Alemão? Então podes pagar-me em Marcos, pois eu sei que o preços dos meus 4 ovos em Escudos é 100; o câmbio Escudo-Marco é 1:5; então para comprar os meus 4 ovos tens que dar-me 500 Marcos. E duas salsichas, que grelhadas ficam bem.

O Dólar de Breton Vuds

Todos felizes, todos contentes. Até 1929.
Grande Depressão, crise profunda, desvalorizações em rápida sucessão, o sistema colapsa: há Países cujas moedas perderam qualquer valor, é precisa limpeza.

Seria possível falar acerca da Grande Depressão, das causas, das razões e das decisões consequentes: mas aqui limitamos o texto à história oficial do dinheiro. Então falamos de Bretton Woods.

Em 1944, 730 delegados de 44 Nações reúnem-se em Bretton Woods, bonita localidade do New Hampshire (Estados Unidos). É fundado o Fundo Monetário Internacional (!!!), o Banco Mundial (!!!) e o Dólar é assumido como moeda base do sistema monetário internacional. As reservas de ouro perdem valor e nos cofres agora são guardadas notas, essencialmente Dólares, e Títulos de Estado estrangeiros.

Por sua vez, o Dólar fica convertível em ouro e nos Estados Unidos, em Fort Knox, Kentuky, são guardadas boas partes das reservas áureas mundiais.

O fim do ouro

Nem o sistema de Bretton Woods é perfeito e em 1971 o Presidente Americano Nixon decreta o fim da convertibilidade entre Dólar e ouro.
O que significa? Exactamente isso: o dinheiro deixa de ser uma representação dum valor guardado nos cofres. O dinheiro é agora o valor.

Isso é bom? É mau? Tentamos analisar.

Ouro e guerras?
Em primeiro lugar, temos de admitir: o dinheiro é bom.
Nasceu para facilitar as trocas comerciais e funcionou na perfeição, tendo desenvolvido um papel fundamental na evolução das sociedades.

Claro, podemos sempre afirmar que foi causa de guerras, de mortes, sempre fonte de problemas. Mas isso não é correcto: a estupidez humana foi causa disso, não o dinheiro que continua a ser o que sempre foi: um mero instrumento.

Notas, moedas, são apenas formas de representar um valor e isso não tem mal em si. Em algumas ilhas do Oceano Pacífico, por exemplo, ainda são utilizadas conchas em vez das moedas: alguém pode afirmar que as conchas são más?

Conchas e moedas ou notas são a mesma coisa, sempre uma representação. A única diferença é que com as conchas podemos sempre dar um passeio na praia e acabar com os problemas económicos, enquanto com as moedas isso não funciona.

Não podemos julgar um instrumento com base no péssimo uso que dele fazemos.

Ouro e galinhas
Segundo ponto: o facto do dinheiro estar hoje totalmente desligado do ouro é mau?
Eu tenho uma visão “romântica” da questão, talvez influenciada pelos filmes de Robin Hood, o ladrão que roubava aos ricos para dar aos pobres: na altura boa parte do dinheiro era ouro, mas a verdade é que o dinheiro desligado do ouro é boa coisa.

Pensamos nisso. Eu produzo ovos. Aliás, as minhas galinhas produzem ovos, pois eu não tenho a capacidade física para esta tarefa. Quero adquirir outros 200 galináceos e por isso preciso dum novo galinheiro. Vou ao Banco Central de Galinhaland e peço um empréstimo. Resposta: “Lamentamos mas acabou o ouro”.

Resultado: investimento parado. Não apenas eu, mas todos os outros empresários de vários sectores terão que esperar até o Banco Central conseguir mais ouro. A economia de toda Galinhaland fica parada, o PIB precipita, há crise e com a crise chega o desemprego.

Culpa das galinhas? Não, culpa do dinheiro estar ligado ao ouro.

Este é apenas um exemplo, e extremamente banal, pois a realidade é bem mais complexa; mas serve para entender que a ligação dinheiro-ouro é uma forte limitação que prejudica os investimentos, por exemplo, e impede que o potencial económico possa tornar-se uma realidade.

É como se com a convertibilidade a economia ficasse ligada ao chão: uma vez partida esta ligação, pode levantar o voo.

Ouro? E porquê?
Doutro lado, quem disse que o dinheiro tem de ficar ligado ao ouro? E quem disse que o ouro é “a” riqueza? É uma convenção, apenas isso. E como o dinheiro é também uma convenção, podemos ser nós a decidir acerca de que concordar.

Nesta breve história do dinheiro ficaram de fora todos os assuntos ligados ao uso do dinheiro: o papel dos bancos privados, a realidade das crises, quem tomou determinadas decisões e por quais razões.

Isso porque o objectivo aqui era demonstrar que o dinheiro, mal tratado, assunto de intensos debates, impopular, amaldiçoado, na verdade é um simples instrumento, como já afirmado, com uma função particularmente útil, benéfica, prática, desenvolvedora (este termo não existe, mas gosto dele).

Não podemos culpar o dinheiro da humana estupidez.

Ipse dixit.

Fontes:
não há, tudo saiu da cabecinha numa chuvosa tarde de Sábado 🙂
mentira: como tenho péssima memória, as datas saíram de Wikipedia 🙁

6 Replies to “O dinheiro”

  1. eheh a culpa agora é da chuva!!!

    Uma coisa hilariante… "Imaginemos um troca de longa distância, entre Países diferentes ou até continentes." na pré-história!!!

    E agora o trauma continua… parece mesmo que assim a sub-espécie homo sapiens sapiens tem os seus dias contados… "…Nem tive a possibilidade de acumular um pouco de riqueza…"

    Pelos vistos a "riqueza" é o super-vírus que nos vai limpar o sebo! Qual h5n1 ou h7n9…

    De resto… se os babados conseguirem ler tudo até à parte "…Wikipedia :(" sem que os seus cérebros entrem em convulsões e se auto-desliguem já valeu a pena a chuva.

  2. Olá Voz!

    "Imaginemos um troca de longa distância, entre Países diferentes ou até continentes." na pré-história!!!

    Hilariante? Tens a certeza? 😉

  3. ???? Olá Max… Se calhar para nós pré-história são TEMPOS diferentes… por isso para mim é hilariante imaginar as tais trocas a longa distância… mas Max já sabes que para este louco qualquer coisas "piquena" serve para fazer RIR…

Obrigado por participar na discussão!

This site uses User Verification plugin to reduce spam. See how your comment data is processed.

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

%d bloggers like this: