A Democracia do Spread

Como vimos, agora os donos do sistema financeiro europeu levam isso a sério. E já nem é preciso esconder-se, tudo à luz do sol.

Doutro lado, esconder-se para quê? As massas estão suficientemente idiotizadas para reagir. E no caso reajam, é sempre possível demonstrar que nos bastidores há financiamentos “ilícitos” para que seja espalhada a desconfiança.

Democracia suspensa

Na Italia, Berlusconi, um político (mais ou menos…), foi substituído por um técnico, Monti.
Na Grécia, Papandreou foi substituído por um técnico também, Papademos.

Os técnicos, dizem, são objectivos, não são fãs de um dos dois lados da arena política.
Como se a verdadeira divisão da sociedade humana passasse pelos cartões do partido, e não através da hierarquia do poder.

Isso porque, dizem, o político não é objectivo, o técnico sim. Mas como é possível acreditar num disparate como este? O técnico não é um cientista, cujo fim é a procura da “verdade”: o técnico é uma pessoa paga para fazer prevalecer um entre os vários pontos de vista. A diferença é que o técnico tem, supostamente, mais conhecimentos numa área específica.
Esta é a vantagem mas também o grande limite do técnico. 

Os técnicos são funcionários directos duma das partes, como Mario Monti, uma vida ao serviço do grande capital. Que neste caso tem não apenas um mas vários nomes: Goldman Sachs, Banco Central Europeu, etc.
Mesma coisa com o “técnico” grego, Papademos.


Também em Portugal as coisas não estão tão longe assim: o Primeiro Ministro, Pedro Passa o Coelho, está a implementar as medidas dos técnicos da Dupla Maravilha, FMI e BCE, nada mais do que isso. A diferença é que aqui os Portugueses escolheram democraticamente, suicidar-se e não ser suicidados.

Estamos num ponto de viragem da Democracia. Aliás, a Democracia foi substituída pelo Spread. Não há um golpe de Estado, há o Golpe de Spread. Os mercados estão inquietos? E nós substituímos um Primeiro Ministro democraticamente eleito com um técnico.

Vantagem: não há sangue.
Desvantagem: até a última pantomina, as eleições, é eliminada.

A política mediática

Isso é possível também por culpa do ínfimo nível atingido pela política ao longo das últimas décadas.
A política agora é um ramo dos media que emprega um número de pessoas ociosas, divididas em duas equipas, mas em constante competição uns com os outros, até dentro de cada equipa.

Todas as manhãs, cada competidor deve encontrar a forma de ficar visível num mundo sem memória.

Para ser visível, deve dizer algo de muito curto: isso é importante porque temos pressa, cada vez mais pressa, e não podemos gastar o nosso precioso tempo na tentativa de perceber raciocínios com muitas frases secundárias.
O assunto deve ficar dentro dum título, ou dentro duma curta frase na televisão.
Mais é demais.

O que o político diz deve ser compreensível para as pessoas sem instrução, distraídas e nem muito interessadas.
E depois não pode dizer nada de profundamente novo, nada que fique distante da rede dos pré-conceitos de milhões de pessoas. É preciso, sempre por causa da pressa: o truque é evitar que quem ouvir tenha que esforçar o cérebro.
Por isso: rapidez e obviedade.

Mas isso não chega: o político tem de dizer algo de chocante, para captar a atenção. E aqui as coisas ficam mais complicadas: algo de rápido, óbvio, chocante e simples. E não ofensivo.

Uma vez, os comícios eram encontros “fortes”, onde não faltavam insultos acompanhados por provas e anátemas contra os apoiantes da parte adversa.
Hoje não, porque um eleitor inimigo pode tornar-se amigo amanhã e porque os adversários acumulam pontos-vítima.

O ponto-vítima é algo que permite ao adversário gozar de boa visibilidade mediática. O político tal foi ofendido? Vamos entrevistá-lo para ouvir a opinião dele. Assim, a nossa ofensa torna-se uma ocasião de auto-promoção.

Complicado, muito complicado satisfazer todas estas necessidades ao mesmo tempo.
No geral, os políticos de direita conseguem chocar sem ofender, enquanto os de esquerda são tediosos mas mestres na recolha de pontos-vítima.

Mas isso significa que o político, ao abrir boca, erra alguma coisa, sempre. O que torna a política excitante para os espectadores e totalmente inútil como instrumento democrático.

O Técnico, pessoa que sabe

O técnico? O técnico não.
O técnico tem apenas que ter um ar grave, como de alguém sempre no meio de profundos raciocínios, e pode dizer coisas aborrecidas. Aliás, tem que fazer isso: ao dizer coisas simples, o técnico foge do papel e levanta suspeitas: “estará mais perto do partido X?”.

O técnico, por definição, não ofende: explica a realidade. Por isso pode dizer todos os disparates possíveis com a certeza de que poucos, muito poucos ou até ninguém terá a coragem de afirmar o contrário. Porque ele é o técnico, pessoa que “tem estudado”, pessoa que sabe.

A grande vantagem é que pode transmitir conceitos revolucionários (no sentido negativo) com a certeza de que:

  1. não serão percebidos logo na totalidade
  2. poucos afirmarão o contrário
  3. empenharão os media ao longo de diversos dias, o que fornece uma boa dose de tempo livre para implementar as medidas que o nosso dono desejar.

Pelo que, fica clara a razão do aparecimento dos técnicos nesta altura. Estamos perante conceitos que pouco têm a ver com o nosso quintal, falamos aqui de Economia Deificada, a Verdadeira Lei do Universo (o nosso miserável universo, óbvio).

Uma altura na qual a Democracia tem de ser suspensa: “Obras: estamos a trabalhar para Si”.
E se o trabalho for feito em nosso favor, como podemos nós contestar? Demasiado fraca a figura do político, é preciso alguém acima de qualquer crítica, alguém que sugira o respeito do demos, de nós.

Ele é o técnico, pessoa que “tem estudado”, pessoa que sabe.
Aqui está o Banco Central Europeu, o Fundo Monetário Internacional: estão a moldar o nosso futuro. E será um bom futuro, disso não há dúvida, porque está cheio aí de pessoas que “têm estudado”, de pessoas que sabem.

A Democracia voltará logo que possível. Quando os assuntos forem menos sérios então sim, voltarão os políticos.

Agora não é tempo para brincadeiras.

Ipse dixit.

Fontes: Wikipedia, Beppe Grillo, Kelebek

3 Replies to “A Democracia do Spread”

  1. Pois é Max: esse povo "estudado" não é um problema em si. Problema é a imagem de oniciência que eles impõem sobre eles mesmos, através de um discurso ininteligível, e porque não se entende, simplesmente se tem receio de dizer: "afinal de que merda estão falando que não conseguem se fazer entender por gente normal?"
    Felizmente, sobre economia doméstica, eu me viro em casa, e sobre macro economia, tenho um professor a altura: o grande Leonardo. Abraços

  2. É assustador a facilidade com que se acaba com a democracia num país europeu… e sem que ninguém reaja…

    Cada vez a situação está mais parecida com os anos 30…

  3. Olha, apareceu uma Maria com m maiúsculo!
    Mas… continuando aquela conversinha lá de cima, Max,a classe intelectual, pelo que eu saiba, faz seu curriculum polemizando uns com os outros.Enquanto um diz a, o outro afirma z, no fim do mes recebem os dois seu salariozinho ganho na saliva e na letra morta,todavia tudo bem. Mas, com esta história de economia, finanças etc, tu sabes por acaso onde está a contra corrente intelectual? Tipo assim, muitos técnicos (muito bem pagos) a favor do pega, mata e arrebenta o povo europeu para salvar a banca, outros técnicos apresentando outras soluçôes…cadê? Não tem ou eu não sei achar? O Leo ainda não me deu aula sobre isso. Abraços

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