As coisas que este cão sabe… – Parte I

– Ó Leo, ouve.
-…zzzzz…..
– Leo?
-…zzzzzzzz…
– LEONARDO!
– …zzzzzzeh?
– Olá Leo.
– Que tu queres?
– É assim: escrevo, escrevo, escrevo acerca desta crise mas pergunto: não haverá uma maneira mais simples para explicar o que se passa? Muito simples mesmo?
– Não percebes, é isso?
– É muito confuso…
– Já disse muitas vezes…
– Sim, verdade, mas sabes, uma coisa são as grandes teorias, outra coisa é a realidade, o que nós vemos nas ruas…
– Pois, não percebes.
– Não é preciso ofender.
– Ó Max, vê se desta vez consegues entender alguma coisa, tá bom? Afinal eu sou um cão, nem deveria tratar destes assuntos. Qual a tua dúvida?
– Epá, é assim: quem é que nos dá o dinheiro? Porque nunca é suficiente? E agora que temos a crise, como funciona?

As duas gavetas

– Ó Max, para entender isso tens que perceber outras coisas antes. Concentra-te.
– Estou concentrado.
– Sim, imagino…pensa num País.
– Qual?
– Não importa, um qualquer.
– Brasil?
– Pode ser. Há um ter…
– Ou será melhor a Pensilvânia?
– Brasil, ficamos com o Brasil. Há um território, há as fronteiras, e no interior há duas coisas: o governo com todas as coisas dele, as propriedades, as escolas, os hospitais, etc. O resto pertence aos cidadãos privados, as casas, os negócios, as lojas com as pessoas que trabalham.
Assim: num Estado há o sector público e o sector privado. Não há mais.
– Mas isso é claro.
– Espera, concentra-te. Agora imagina este dois sectores como se fossem gavetas. Ambos contêm riquezas, ambos contêm dinheiro, prédios, terras, tudo. E agora toma uma das duas gavetas, aquela do sector privado, e imagina que alguém consiga ficar rico.
– “Alguém” quem?
– Alguém, não importa quem. Pode ser o dono duma loja que vendeu alguns sapatos, pode ser o dentista que extraiu um dente. O que aconteceu? Aconteceu que a) um cliente pagou em dinheiro os sapatos b) um paciente pagou em dinheiro a extracção do dente c) muitas pessoas pagaram dinheiro para comprar bens ou para usufruir de serviços.
– Até aqui está claro.
– Isso significa que se alguém ganhar dinheiro, outra pessoa terá que perder dinheiro. O cliente paga (fica sem dinheiro), o dentista recebe (e fica com o dinheiro).
– E com o dente.
– Também. No interior da gaveta do sector privado, o dinheiro é sempre o mesmo, simplesmente anda em círculos e passa de mão em mão.
– Então uma pessoa que ficar rica, na verdade é porque consegue entrar na posse do dinheiro de muitas outras pessoas.
– É isso. Agora: bolacha.
– Que tem a ver uma bolacha?
– Sem bolacha não continuo.

Dinheiro “de fora”

– Sacana dum cão…toma a bolacha. Mas até aqui não disseste nada de novo.
– Espera e concentra-te. Não percebes? Se o dinheiro na gaveta do sector privado for sempre o mesmo, isso significa que nós, privados, sozinhos não conseguimos aumentar a quantidade de dinheiro em circulação na nossa gaveta.
– Ehi, nunca tinha pensado nisso…
– Não me admira…
– Então como é que um País fica mais rico? O dinheiro que circula é sempre o mesmo!
– Calma. É verdade: se na gaveta circular sempre o mesmo dinheiro, como é possível construir escolas, hospitais, infraestruturas, gastar dinheiro para coisas novas?
– Leo, isso é complicado…mas é verdade: uma vez os ordenados eram mais baixos, depois subiram e subiu também o preço da gasolina…e como foi possível pagar tudo se o dinheiro em circulação era sempre o mesmo? É muito complicado
– Não, não é: alguém deu este dinheiro, esta nova riqueza.
– A lotaria?
– Não, não foi a lotaria. Mas é verdade, o dinheiro aumentou para todos, então como é que os cidadãos privados tornaram-se todos um pouco mais ricos? Lembra que para ficar mais rico, todos mais ricos, é preciso receber mais dinheiro sem que ninguém possa perdê-lo. Já dissemos que na gaveta dos privados alguém fica rico se outra pessoa gastar o próprio dinheiro: mas não é este o caso, aqui todos ficam um pouco mais ricos. A resposta é simples: alguém, fora da gaveta, deu este novo dinheiro.
– Então foi Pai Natal, é evidente.
– Max, Pai Natal não existe.
– Não digas isso que fico triste.
– Existem apenas duas entidades que, de fora, podem injectar dinheiro na nossa gaveta: o Estado ou outros Países.
– Vi logo, Pai Natal faz mais sentido…
– Espera…se o Estado decidir comprar alguma coisa produzida na nossa gaveta, então pagará com dinheiro que vem de fora da nossa gaveta. E o mesmo acontece com os outros Países: pagam com dinheiro que vem das gavetas deles, não da nossa.
– Faz sentido…
– Então a riqueza da nossa gaveta, a gaveta do sector privado onde todos nós vivemos, aumenta de forma líquida, sem que alguém entre nós tenha que perder o próprio dinheiro. Mas que significa isso? Significa que aqueles que querem eliminar o Estado, que querem entregar tudo aos privados, na verdade querem simplesmente fechar uma das únicas duas torneiras que permitem aumentar a nossa riqueza. Porque com um País nas mãos dos privados, voltamos ao problema de antes: na gaveta alguém fica rico só se outros perderem dinheiro.
– Leo, esqueces dos outros Países: também eles aumentam a nossa riqueza ao comprar na nossa gaveta.
– Não, Max, não esqueci, mas com estes há um outro problema: e se os Países estrangeiros decidirem comprar os bens ou os serviços num outro lugar?
– Pois é…
– Ah, pois é: o Estado, o nosso Estado, é a única fonte de riqueza externa de confiança para a nossa gaveta.
– Mas o governo rouba, qual riqueza e riqueza, está sempre a sacar dinheiro dos nossos bolsos!
– Fica calmo, tenta entender: aqui não falo do ponto de vista moral, esta é a teoria, se depois vocês bípedes elegerem ladrões que culpa tenho eu que sou cão? Aliás, é fundamental que tu possas perceber o que um governo honesto pode fazer, desta forma podes exigir que isso seja feito. Mas sabes outra coisa?

Sem limites

– O quê?
– É que um Estado pode transferir para a nossa gaveta todo o dinheiro que desejar, sem limites.
– Ó Leo, estas a gozar comigo…olha que acabam as bolachas de repente, tá bom?
– Ó Max, achas que eu, um cão honesto e com uma reputação canina para ser defendida, brincaria com um assunto como este?
– Então que queres dizer?
– Isso mesmo: o Estado poderia criar dinheiro, um rio de dinheiro, construir, edificar, reestruturar, melhorar os serviços, as estruturas, acabar com o desemprego, tudo assim.
– Sim, e bravo o meu génio! E quem pagaria, hein? Compra, gasta, afinal ficas sem um tostão e então tens que pedir os empréstimos… 
– Ó Max, é precisamente este o ponto, tu nem imaginas. O facto é que a história da dívida é uma mentira tão grande como Júpiter. Não há nenhuma dívida, o governo pode realmente fazer todo o dinheiro que quer, sem maiores problemas. Não faz isso simplesmente porque alguém não deseja que as coisas funcionem desta forma. Mas esta é uma outra história, da qual eventualmente podemos falar numa próxima vez. Se te portares bem. Agora vou dormir. 
– Ehi, ehi, ehi…espera um segundo: mas que é isso? Fica assim?
– É para não sobrecarregar os teus neurónios.
– Ó Leo, pára, senta!
– O quê???
– Ok, desculpa…ia dizer: mas como, acabas assim?
– Claro. E por enquanto tenta lembrar: sem o governo ou os Países estrangeiros, ninguém aqui, na gaveta dos privados, pode ficar mais rico sem que outros entre nós percam dinheiro. Não podemos ficar todos um pouco mais ricos. Porque o dinheiro que circula é sempre o mesmo, passa de bolso em bolso. E se alguém ficar mais rico, então alguém tem de ficar mais pobre. E não esquecer de comprar as bolachas.
– Ehi, posso publicar isso no blog?
– …atordoado…zzzzzzz….

Fonte: Paolo Barnard

10 Replies to “As coisas que este cão sabe… – Parte I”

  1. Por que todas as nações não imprimem dinheiro para que todos possam usufruir do bens e serviços e viver "felizes" e destruir logo o planeta? quem não quer deixar isso acontencer Leo? por que jogam a gente nesta gaveta e deixam-nos degladiar?? POR QUE??

  2. Que urgência tem nisso? o cara se livrou (teoricamente) do mundo ao qual ele já não se encaixava mais.
    Por outro lado nos seguimos, e com problemas realmente urgentes!

  3. O Khadafi "morreu"? Olha, o Bin Laden "também"! E qualquer dia ainda vemos um deles, senão os dois, a passar férias no Algarve!

  4. Depois da fábula dos porcos escravos, agora a do cão economista. A tua imagem no blog, não deveria ser Nostradamus, mas sim Esopo. Meu amigo, você é o próprio reencarnado. Já consultaste algum pai-de-santo? Apreciei muito, tanto uma como a outra. Fábulas sarcásticas. Acho que inventaste um genêro literário.
    Sobre o discurso do cão Léo, perdi muito por causa das boas risadas.

    Até.
    Walner.

  5. Para variar, o cão tem a razão…

    Não precisamos de um cartel para definir valores ou a escasses… podemos nós mesmos sermos o estado e administrar isso de forma decente… simples assim…

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