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Os limites catatónicos

O Presidente da República Portuguesa, Aníbal Cavaco Silva assim falou:

Constitucionalizar uma variável endógena como o défice orçamental – isto é, uma variável não directamente controlada pelas autoridades – é teoricamente muito estranho. Reflecte uma enorme desconfiança dos decisores políticos em relação à sua própria capacidade de conduzir políticas orçamentais correctas

O quê? Engoliu um carapau vivo?

O bom Anibal poderia ter dito:

Inserir na Constituição um limite para a dívida pública é estúpido.

Mas os “sábios” de regime falam assim: um pouco porque “faz fino”, um pouco para intimidar as pessoas que não querem chatices, um pouco para dizer e não dizer: em vez de afirmar que o limite constitucional da dívida é uma estupidez, o bom Aníbal fala de “variável endógena” teoricamente estranha, de forma a não irritar ninguém.

Ao mesmo tempo é uma maneira para elevar o patamar do discurso e afastar reacções “poucos dignas”: que tudo fique entre os sábios.

O limite

Mas vamos ao que interessa: com espanto geral, temos de admitir que o catatónico Presidente desta vez tem razão. Aliás, tem várias razões.

Quais?
Eis algumas delas.

Em primeiro lugar, a razão apontada pelo próprio zombie presidencial: inserir na Constituição um limite significa para a classe política reconhecer grandes limites da classe mesma.

Reparem: se a dívida for um mal, então é precisa uma lei constitucional para que nenhum Governo, presente ou futuro, possa ultrapassar o dito limite.
Os políticos desconfiam dos políticos.
Notável.

A seguir: vamos inserir um limite? Boa ideia. Qual limite? 70% do Produto Interno Bruto? E porque não 60%? Ou 50%? Qual é o limite que pode ser considerado “bom”?
Se a proposta de Angela Merkel e do marido de Carla Bruni for aceite (pois a ideia maravilhosa é deles), seria preciso estabelecer um patamar para reconhecer Países “bons” e Países “maus”.

50%, pode ser?
Neste caso, os únicos Países da Europa Ocidental que poderiam ser considerados “bons” são a Suécia, a Finlândia, a Dinamarca, o Luxemburgo e a República Checa. Todos os outros têm um relacionamento dívida/PIB superior a 50%.
No Sul América até o Brasil deveria ser incluído nos “maus”.

Mas há mais: quais são os Países Europeus (Europa Ocidental e Oriental) com a dívida pública mais baixa (os “bons” já citados ficam de fora desta vez)?

São estes:
Roménia, Eslovénia, Montenegro, Lituânia, Bósnia, Servia, Eslováquia e Letónia.

Se um relacionamento entre dívida e PIB inferior a 50% for sinónimo de saúde económica e financeira, então estes Países devem ser autênticos paraísos. Ou não?

Resposta simples: não, não são, aliás, longe disso. E a razão é ainda mais simples: o rácio dívida/PIB é um falso problema. E, ainda uma vez,  estamos a olhar para o dedo e não para a Lua que está atrás do dedo.

O caso Japão

O mumificado Presidente de Portugal desta vez acertou. Talvez de forma involuntária, talvez enganou-se a escrever o discurso, mas acertou. Não é a dívida o problema, é o sistema que é o verdadeiro problema.

Porque se um País tem uma economia que funciona, com empresas que produzem e exportam, é possível atingir limites estratosféricos de dívida sem que isso represente um problema.

Não estão convencidos? Então expliquem porque o Japão ainda não faliu.

Tokio tem um rácio dívida/PIB de 197% e ainda este ano ultrapassará 200%.

Porque não há uma troika que comece a vender algumas ilhas japonesas? Porque os impostos não aumentam? Porque os serviços não são cortados? Porque os títulos de Estado não atingem interesses de 45% como aconteceu hoje com a Grécia? (A propósito: esta é a cura FMI-BCE…).

O carro de Saraiva

Vamos fazer agora outro raciocínio, com um exemplo muito simples. (Nota: este é um exemplo demasiado simplificador, mas serve para perceber a ideia de base)

Saraiva gosta dum carro, um Volkswagen Golf 2.0 TurboDiesel de 140 cv, preço 32.520 Euros.
Problema: Saraiva ganha apenas 1.000 Euros por mês e para adquirir o Golf deveria pedir um empréstimo.

Ao ganhar 1.000 Euros por mês, Saraiva terá um Produto Interno Bruto de 12.000 Euros em 2011. Mas o empréstimo seria mais do dobro do PIB de Saraiva, por isso, segundo a ideia do limite aplicada aos particulares, Saraiva não pode comprar o carro novo e terá continuar a utilizar o Fiat 127 de 1976.

Se o mundo funcionasse desta forma, não apenas ninguém compraria carros, mas também casas, por exemplo.

Mas a realidade não é esta: continuam-se a vender carros e casas, porquê?

Porque o que conta não é a dívida e nem o nosso PIB: o que conta é a nossa capacidade de produzir riqueza ao longo do tempo.

No caso de Saraiva, ele tem 12.000 Euros agora, mas terá 12.000 Euros no próximos anos também. Porquê? Porque além de ler Informação Incorrecta, Saraiva trabalha.
O banco (pois é este que concede o empréstimo) calcula os juros e faseia a dívida em função do PIB de Saraiva.

Por isso, Saraiva pode comprar não apenas o carro de 32.000 Euros, mas também a nova casa de 150.000 Euros. Sem entrar em falência. Sem ter de chamar a troika.

O verdadeiro problema é que ao longo das últimas décadas a capacidade de produção foi progressivamente afastada dos Países ocidentais. Hoje não há dinheiro porque já ninguém produz.

É como se Saraiva fosse despedido após ter obtido o empréstimo: sem um ordenado, como pode Saraiva pagar as dívidas?

O rosto dos “credores”. E dos “especuladores”

Há outro problema também, uma confusão criada mesmo para tornar tudo mais complicado aos olhos do grande público. (Reparei apenas hoje de nunca ter falado deste assunto: tão básico que nem me tinha passado pela cabeça: o que foi um erro)

Quando se fala de dívida é normal pensar nos fornecedores.

Por exemplo: quanto carvão importou o México ao longo do ano passado? 100.000 toneladas? Bom, então seria normal pensar que hoje o México tem uma dívida com o fornecedor de carvão. Mas assim não é.

A dívida que os Países têm não estão relacionadas com os fornecedores mas com os bancos.
Voltamos ao exemplo de Saraiva.

Saraiva quer trocar o seu Fiat 127 por um Golf novo; como não tem dinheiro para pagar tudo e já, pede um empréstimo. Mas quem é que concede o empréstimo? A Volkswagen? Não. Um banco.

A Volkswagen mesmo que diga “sim, é connosco, não se preocupe”, na verdade contacta um banco que, uma vez concedido o empréstimo, antecipa a totalidade do pagamento à Volkswagen e a seguir pede o dinheiro ao Saraiva (que, lembramos, entretanto perdeu o emprego e não sabe como pagar. Da próxima vez melhor fazer bem as contas).

Com os Estados a situação é parecida, embora não igual. O Estado faz duas contas e diz: “Preciso de 1.000 Euro para comprar o carvão”; então que faz? Pede um empréstimo ao banco.
Poderia ir falar com o fornecedor e dizer “Ó fornecedor de carvão, da-me 1.000 Euros de carvão que vou pagar-te no prazo de 6 meses, pode ser?”.

Mas não faz isso: para obter dinheiro vende Títulos de Estado, e com o dinheiro obtido compra o carvão. Na verdade, o Estado nunca tem dívida com o fornecedor. (Esta última frase é uma idiotice, mas, como disse, vamos simplificar ao máximo)

E aqui surge o grande e verdadeiro problema: quem compra os Títulos de Estado?
Resposta simples e errada: quem quiser investir.
Resposta correcta: os bancos.

Sim, uma parte de facto é adquirida por investidores privados. Mas pensem nisso: quem terá mais capacidade para comprar grandes quantias de dívida? A velhinha reformada ou uma instituição bancária?

E mais: onde vai a velhinha comprar os títulos? No mercado da praça? Ou não será que vai a uma agência bancária (de forma que o banco possa ganhar alguns trocos com a operação…)

Os grandes detentores das dívidas públicas são os bancos.
Quem pede juros cada vez maiores para adquirir títulos de Estado?
Os bancos, sempre os bancos.

Mas atenção: também a história dos terríveis “especuladores” foi largamente utilizada para justificar um sistema que está evidentemente podre.

Por isso e por tudo aquilo que foi dito ao longo deste ano e alguns meses de conversa, é claro que como esta não possa ser encarada como uma das tantas “simples” crises; é algo de muito, muito mais profundo.

Que deixará marcas.

Nota final para os Leitores de Portugal.

Com o Governo de Cavaco Silva (que antes de ser catatónico Presidente tinha sido marmóreo Primeiro Ministro, com um governo liderado pelo mesmo partido no poder hoje) a dívida pública portuguesa aumentou de 40.8 mil milhões de Euros.

Assim, tanto para não esquecer…

Ipse dixit.

Fontes: CIA World Factbook; Agência Financeira;