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Mea culpa, mea maxima culpa

Mesmo na altura em que o sistema económico global manifesta todos os seus limites, o establishment liberal lança uma ofensiva que tende a acentuar ainda mais este modelo, ao sacrificar o assim chamado welfare no altar da dívida pública e do Produto Interno Bruto.

Num período em que os cidadãos vêm o próprio nível de vida baixar por causa da crise e das suas consequências, o Estado contraria a própria missão (que é de redistribuir a riqueza comum, fornecer um mínimo de justiça e protecção social, investir o dinheiro pago com os impostos) e escolhe o lado das corporações: corta nos serviços, limita os impostos dos bancos, diminui o salário de trabalhadores e reformados.


Os cidadãos, já suficientemente idiotizados, julgam tudo isso normal: até votam nos partidos que prometem baixar o nível de vida, festejam quando estes ganham. E já nas ruas podemos ouvir que sim, de facto vivemos acima das nossas possibilidades.

– Doeu o pontapé nos dentes?
– Sim, mas importa-se de continuar?

É uma visão que interessa e interessará cada vez mais todo o mundo ocidental ao longo dos próximos meses, mas quem vive em Portugal consegue colher o lado mais irónico da história.

Gostaria que alguém me explicasse onde é que Portugal viveu “acima das possibilidades” ao longo dos últimos anos: desde que aqui cheguei oiço dizer que “o País está em crise”; e agora, de repente, descobre-se que não era verdade, afinal Portugal era um paraíso e os tempos duros vão começar agora.

Alguém viveu bem, sem dúvida, mas são os mesmos que não serão muito afectados pela próxima crise.

A ideia espalhada é que o que está a acontecer é culpa dos Estados. E como o Estado somos nós, é culpa nossa. E só nossa, não podemos ter dúvidas.

Governos ineficientes ou até corruptos têm mal administrados as finanças nacionais, somando dívida após dívida, até o ponto desta ter atingido volumes insustentáveis. E como todos os cidadãos têm gozado duma riqueza inacreditável nas últimas décadas, agora todos os cidadãos têm que reduzir o próprio nível de vida, pagar mais impostos, abdicar de serviços importantes.

Simples e eficaz.

Até o ponto que ninguém já lembra do que economistas e políticos diziam nos primeiros tempos da crise em 2008: uma queda transitória, não se pode falar de verdadeira crise, a crise já está a acabar. Não é por nada, mas são as mesmas pessoas que agora gostam de apresentar a receita de lágrimas e sangue para anular a dívida.

E não poderia ser de forma diferente: vivemos numa economia (e num mundo político escravo das decisões económicas) que reconhece como pais a banda liderada há trinta anos por Ronald Reagan e Margaret Thatcher.
Deregulation, lembra alguma coisa este termo? Deveria, pois esta é a ideia que foi seguida nos Estados Unidos e que agora é apresentada como receita milagrosa no Velho Continente também: redução máxima do sistema do welfare, dos direitos dos trabalhadores, privatização dos serviços públicos, venda dos bens comuns.

São as razões pelas quais hoje estamos como estamos; e agora deveriam ser as razões do tratamento.
Não foi a falta duma verdadeira liberdade económica, não foram as classes políticas ao serviço dos grandes grupos: fomos nós que erramos.

As grandes ilusões vendidas antes de 2008, como o eterno crescimento ou o mercado que teria arrastado o bem estar de toda a sociedade, agora são reduzidas: é tempo de chorar.

As oligarquias no poder não põem em discussão o modelo que já deu prova de não poder funcionar: as bases do actual sistema económico e financeiro têm de permanecer intactas e inabaláveis. O sistema faliu ou algo partiu-se e já não é possível proceder na mesma direcção? Impossível, pois simplesmente o sistema não pode falir.
Se alguém faliu, temos de ser nós.

Por isso a realidade é invertida: em vez de analisar as causas primordiais, vamos observar com a lupa as dívidas dos Estados, um após outro, e dizer que, sim, de facto houve exageros. Como se um Estado fosse uma empresa privada.

Mas é normal: estas pessoas não conseguem entender algo diferente.
Por isso os fornecedores são sagrados, de discutir os prazos dos pagamentos nem se fala: porque se os fornecedores não forem pagos, onde vamos adquirir os bens de primeira necessidade?

Alguém nesta altura deveria já ter entendido que credores e fornecedores dos Estados não são as mesmas pessoas, não acaso não é publicada a lista das dívidas e dos relativos credores; mas não importa, o que conta é espalhar medo, preocupação e sentido de culpa. E explicar apenas o mínimo indispensável, para que as perguntas sejam poucas e as discussões ainda menos.

Estamos em presença da tentativa de transformar os Estados nos coveiros da sociedade.
Esvaziados de qualquer sentido político, ocupados por “amigos dos amigos” ligados aos grupos económicos, os governos devem ser hoje apenas os garantes das vendas e os carcereiros, numa prisão que não é feita de celas, mas de ilusões.

Viver mal, baixar as nossas expectativas hoje para poder ascender amanhã até o topo da Ilha da Opulência. A mesma que está a desmoronar-se nestes dias.

Entretanto, o Príncipe Filipe, co-fundador do WWF, afirma que gostaria de reencarnar-se como “vírus letal para eliminar a superpopulação”. Porque uma coisa tem que ficar clara: a culpa é só nossa.  

Ipse dixit.