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O treino das crianças

A Suprema Corte dos EUA decidiu que a lei da Califórnia que proíbe a venda e aluguer de vídeo-jogos violentos a menores de idade é “inconstitucional e viola a liberdade de expressão.  

Afirma o juiz Antonin Scalia:

Assim como os livros, os jogos e os filmes antes, os vídeo-jogos comunicam ideias e mensagens até sociais através de meios familiares. Isto é suficiente para conferir a protecção ao abrigo da Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos. 

O caso foi aberto em 2005, quando a Califórnia aprovou uma lei que previa multas de até 1.000 Dólares para quem vendia ou alugava vídeo-jogos rotulados como violentos para os menores de 18 anos. A lei já tinha sido rejeitada por um tribunal em 2007 e o então Governador, Arnold Schwarzenegger (Terminator contra os videojogos violentos: até a que ponto chegámos…), tinha apelado ao Tribunal Supremo. 

A autoridade máxima dos EUA sublinhou que também os livros infantis contêm cenas violentas, como nos contos Cinderela ou de Hansel e Gretel, onde filhos matam os raptores ao cozinha-los num forno. 

Segundo o Tribunal, todos os estudos que tentaram demonstrar a perigosidade dos vídeo-jogos violentos foram rejeitados por todos os tribunais e por uma boa razão: 

não conseguiram provar que os videogames violentos possam provocar um comportamento agressivo nos menores.

Calling all station

Estou? Planeta Terra? Há ainda alguém aqui?

Estou a pensar em extinguir-me. Porque estou fora do tempo, vivo num outro mundo, um mundo que já não existe. Sou um dinossauro.

E o eventual Leitor que esteja a ler este artigo é um dinossauro também. Deveria pensar na própria extinção.

No meu mundo arcaico, para perceber que um videojogo pode ser negativo, não é preciso que uma criança entre numa loja armada com uma metralhadora, elimine o dono e os clientes, e depois peça para aceder ao nível seguinte.
No mundo arcaico é uma questão de senso comum, que deve ser usado “antes” e não “depois”.

Ao submeter o cérebro duma criatura em plena fase de aprendizagem a cenas violentas e repetidas, onde matar é a única maneira para obter sucesso ou até sobreviver, esperemos o quê? Que um dia peça para ser o novo Gandhi?


Na verdade estas são observações banais e inúteis, pois os juízes sabem isso e muito mais. E a demonstração está na comparação entre os videojogos modernos e os clássicos da literatura infantil: só uma pessoa com grandes problemas pode aceitar um tal paralelo.

Se o nosso desejo for encontrar as verdadeiras razões duma tal decisão, então temos que procurar em outros lugares.
 

O treino

Vagueamos num infinito labirinto de paredes brancas, com portas que dão acesso a outras salas brancas. E, de vez em quando, aparece alguém com uma bata e uma caçadeira.
Temos que mata-lo, antes que seja ele a disparar. Assim será possível continuar, deixando atrás um rasto de cadáveres.

Paisagens cinzentas, de devastação. Tanques e vermelho, muito vermelho, a cor do sangue. A nossa cidade foi destruída, a nossa casa não existe mais, a nossa família foi morta, nós vivemos apenas para a vingança.

O nosso bairro é um monte de lixo na periferia, os nossos dias correm entre lutas com as gangues rivais, roubos e fuga da polícia.

Estamos numa estação espacial, numa escuridão claustrofóbica, rodeados por monstros extraterrestres: a nossa única hipótese é matar, mata-los todos até o último.

Estes são todos videojogos que é possível encontrar em qualquer hipermercado.
Aqui ninguém que voltar atrás e obrigar as crianças a jogar com o hula-hop: o tempo passa, a sociedade evolui e nós temos que evoluir com ela. Mas a questão é mesmo esta: os videogames violentos podem ser considerados uma evolução?

Segundo a Corte Suprema dos Estados Unidos a resposta é “sim”: os videogames são hoje o que foi Capuchinho Vermelho no passado.

Mas a dúvida fica: são bons? São maus? Até a que ponto afectam os mais jovens?

Porque este é o ponto: um adulto tem a capacidade para operar uma clara separação entre virtual e real. Mas uma criança?

Neste aspecto, a nossa atitude enquanto espécie é curiosa.
Todos os animais escolhem proteger as próprias crias. Nós não. Com os videojogos, nós preferimos expor as crias a um mundo irreal onde domina a violência.

É possível objectar que afinal este pode ser outra forma de aprendizagem: até um certo ponto, constitui uma maneira virtual de apresentar os perigos do mundo real. Zombies e monstros espaciais, neste caso seriam apenas representações dos “maus” que existem na vida do dia a dia.

Não é bem assim. Nada conheço em termos de psicologia ou desenvolvimento infantil: mas acho não ser precisa uma licenciatura para entender que não é esta a forma adequada. Porque o que os videojogos fazem, na realidade, é realçar dois aspectos: a agressividade e o medo.

Curiosamente (?), num mundo cada vez mais competitivo como o nosso, a agressividade é um elemento destinado a ganhar espaço, cada vez mais. É normal que assim seja, pois este é um dos fundamentos da nossa sociedade: o crescimento continuo implica um conflito permanente, em contraposição à paz, que é sinonimo de calma.

O “bonito” não funciona, pois nós gostamos de contemplar o que é bom. E “contemplação” é outra vez sinonimo de calma. Não funciona.

O que funciona é a desolação, o feio, algo que estimule a criança, obrigada assim a mexer-se à procura duma condição melhor.

Para fazer isso, a criança tem que aprender apenas um conceito básico: a vida e os objectivos dela são mais importantes do que todas as outras vidas juntas.
Então é só matar.

E o medo?
Isso também faz parte do treino.
Por enquanto são zombies e extraterrestres maus. Uma vez crescidos, serão pandemias, acidentes nucleares, bactérias assassinas.

O que a Suprema Corte dos Estados Unidos está a dizer é apenas o seguinte: continuem a criar os futuros perfeitos cidadãos.

Como não concordar?

Ipse dixit.

Fontes: Stampa Libera, Il Cambiamento