Sonhar

É meio-dia de sexta-feira 29 de abril de 2011, e nesta precisa altura 3 dos 4 canais “nacionais” da televisão portuguesa estão a transmitir em directo o casamento de Kate e William.

Há 2.000 convidados de honra na Catedral de Westminster, enquanto mais de 8.000 são os enviados de jornais e televisões que estacionam fora da igreja, entre as dezenas de milhares de “pessoas comuns” que querem ver de perto este evento.

Vamos repetir os números para entender melhor as dimensões dessa loucura: oito mil jornalistas de jornais, rádio e TV, que vieram de todo o mundo, estão a contar a dois mil milhões de pessoas a mesma coisa. Pois um casamento é um casamento, mesmo que seja da realeza.

No entanto, se perguntarmos a qualquer jornalista se tudo isso é normal, se este circo mediático não seja um bocado absurdo, com certeza o jornalista responderá que “as pessoas precisam de sonhar.”

Damos ao povo o que o povo quer.
Este foi sempre o mantra (o álibi, em boa verdade) para os media transmitirem e amplificarem eventos que poderiam ser tratados duma forma mais…”normal”, só isso.
Este é o lema que autoriza os media a lançar-se como abutres nos acontecimentos mais fúteis. E esta contínua procura obriga os media  a sondar picos cada vez mais altos no mundo do mau gosto.
“Fazem audience“. 

Claro, ninguém reflete sobre o facto de que eventos deste tipo “fazem audience” apenas porque assim decidiram os próprios meios de comunicação: como referido, nesta altura bem 3 dos 4 canais televisivos com cobertura nacional em Portugal transmitem exactamente as mesmas imagens, do mesmo lugar, do mesmo acontecimento.

“Fazem audience” porque à noite dois canais privados nacionais da televisão portuguesa transmitem as Valium-novelas, o primeiro canal do Estado (Rtp 1) transmite um concurso para deficientes enquanto o segundo (Rtp2) velhas reportagens já transmitidas nos canais via cabo.

É difícil não fazer audience nestas condições, mas onde fica a liberdade de escolha do público?

E se ninguém antes tivesse fotografado os noivos, se ninguém tivesse publicado as imagens do primeiro encontro, do primeiro beijo, do primeiro anel, se nenhuma televisão tivesse construído programas especificamente centrados no valioso argumento, hoje seria difícil reparar no casamento de Kate e William.

De facto, esta ideia do “fazer audience” é um mecanismo que se auto-alimenta. 

Mas há mais do que isso. Há ideia da “realeza”, o “do topo” do “escolhido por Deus”, que de alguma forma continua a viver no nosso imaginário e na nossa cultura.

E esta ideia continua a ser revivida e retransmitida por estes servos triste do poder, os assim chamados “jornalistas”, em todas as formas possíveis. Há mais de 50 membros da família real na catedral e ao lado deles, sentados nas primeiras filas, mais de 44 “reis” (verdadeiros ou destronados) que vieram de todos os Países do mundo.

Entre eles há também o rei da Suazilândia, que recentemente tem sufocado no sangue as reivindicações do próprio povo; mas nenhum jornalista vai lembrar isso, para não estragar o clima.

Um rei é um rei, e isso não poder ser posto em causa.

E assim, com a desculpa de que “as pessoas querem sonhar”, novamente são propostos os velhos paradigmas do poder, agora mascarados com “Kate e Willam felizes e sorridentes”, amanhã quem sabe com quê, mas que nunca fazem nada para o avanço da humanidade.

É verdade, “as pessoas querem sonhar,” mas as pessoas não necessariamente querem sonhar com William e Kate.

As pessoas querem sonhar com coisas como governantes que parem de roubar o nosso dinheiro.

As pessoas querem sonhar com um sistema de saúde que realmente ajuda a sentir-se melhor, ao invés de enriquecer os proprietários das empresas farmacêuticas.

As pessoas querem sonhar com alimentos saudáveis ​​e nutritivos, em vez dos OGM que somos obrigados a engolir pelo senhores da Monsanto.

As pessoas querem sonhar com um mundo onde todos podem ter acesso à energia limpa e de baixo custo, em vez de continuar a enriquecer as companhias petrolíferas que nos mantêm na escravidão.

As pessoas querem sonhar com a possibilidade de gozar em paz os frutos do próprio trabalho, ao invés de ter de entregar tudo a quem emprestou o dinheiro para enriquecer os bancos privados.

As pessoas querem sonhar com um emprego, para si e para os próprio filhos, sem ter de depender de contractos temporários que não fornecem alguma segurança e que impedem de planificar o futuro.

As pessoas sonham com Kate e William para fugir duma realidade triste, com bem poucas ou nenhuma satisfação, com ameaças de guerra, acidentes atómicos, contágios de vírus esquisitos.

As pessoas observam este absurdo e cansativo espectáculo circense porque as ocasiões para sonhar são poucas mesmo. Então até uma Kate e um William prestam.

Poderiam os jornalistas fazer algo mais? Sim, com certeza.

Poderiam fazer muito, mas mesmo muito mais.
Poderiam investigar (pois o jornalismo não é apenas “relatar”, é também “procurar para perceber e explicar”), mostrar como realmente funciona o mundo, quem é que manda nas nossas casas, porque as nossas vidas são como são.

Mas este é um sonho, ainda uma vez.

Ipse dixit 

Fonte: Luogocomune

One Reply to “Sonhar”

  1. Fantástico post. Só gostava que as nossas televisões e nossos políticos pensassem assim.

Obrigado por participar na discussão!

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