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A origem do Mal

Há uma questão que sempre deixou-me (ou “me deixou”? Bah, idioma esquisito…) com dúvidas: o papel dos “maus” na Bíblia.

Espero com este artigo de não ser acusado de heresia, blasfémia, satanismo ou outras idiotices.
Simplesmente ponho algumas dúvidas.
E se alguém puder responder, ainda melhor.

O livre arbítrio

Deus é, por definição, omnisciente: sabe tudo. Presente, passado, futuro. O que pensamos, o que fazemos, o que estamos prestes a fazer. O que será feito.

Isso criou alguns problemas no passado: se Deus conhece o futuro e não intervir para impedir acontecimentos tristes, pode ser considerado responsável?

Por esta razão foi introduzido o livre arbítrio, a capacidade de cada um de nós escolher o próprio futuro: com isso, as coisas boas são de Deus, as más são o fruto dos nossos pecados.

Mas também o livre arbítrio tem graves implicações. Se eu posso escolher de forma livre e não condicionada, isso significa que nem Deus sabe qual o futuro. Em outras palavras: Deus é “quase omnisciente”. Mas um Deus “quase omnisciente” não é um Deus, é um “Quase Deus”.

Por isso a ideia do livre arbítrio é aceite na religião católica enquanto é recusada pelos Luteranos e Calvinistas: segundo estes, o Deus é omnisciente ou não é Deus, e ponto final. E, admito: acho que faz sentido.

Lúcifer, o azarado

A queda dos Anjos, Bruegel o Velho, 1562

Não é uma questão de secundária importância. Vamos ver a razão.

Lúcifer, o Diabo, Satã, em princípio era o Arcanjo mais bonito do grupo, o mais próximo de Deus. O nome Lúcifer significa de facto “portador de Luz”.

A história é bem conhecida. Para simplificar: Lúcifer quis ser como Deus, Deus ficou irritado e Lúcifer, com os anjos rebeldes, foi condenado para o resto de sua existência. E esta é origem dos nosso problemas (além dos impostos, claro).

Agora, o ponto é o seguinte: Deus sabia da revolta de Lúcifer? A resposta pode ser só uma: sim, sabia. Se é omnisciente, tinha que saber.

Hipótese contrária: Deus não sabia da revolta? Então Deus não é omnisciente, o que não pode ser.

Mas porque saber da próxima revolta do melhor entre os anjos e nada fazer para impedi-la?
Resposta: porque o Mal era necessário. De facto, Lúcifer organiza a própria revolta na altura em que o Homem aparece (se lembro de forma correcta): na altura certa para desenrolar os acontecimentos (Eva, a maçã, etc.) que darão origem à nossa história bíblica.

Este é um pensamento com implicações gravíssimas. 

Lúcifer tinha um papel bem definido, algo que já estava preparado.
Poderia Lúcifer não ter-se rebelado? Se aceitarmos o livre arbítrio a resposta é “sim, poderia”.
Mas neste caso temos que imaginar um mundo sem Lúcifer e sem o seu Mal: nada de pecados, nada de pensamentos impuros (!!!!!!!!!!!), nada de Cristo Salvador (salvar quem?), nada de Juízo Final (julgar quem?).

O mundo seria um planeta cheio de santos.
Aborrecido, não é?

Portanto a pergunta é: Lúcifer realmente escolheu rebelar-se ou não tinha outras escolhas? Eu acho que não teve escolha: os planos de Deus tinham de ser respeitados. E os planos de Deus incluíam a presença do Mal, para que fosse possível escolher entre os opostos.

Com boa paz do Diabo.

Não concordam? Acham que o Mal surgiu de maneira independente de Deus? Então voltamos à questão anterior: Deus não sabia do Mal, Deus não é omnisciente.

Complicado, não é?

Eva e a maçã

Adão e Eva, Cranach o Velho, 1531

Mesmo raciocínio com Eva.

Deus poderia ter dito: “Eva, filha, abres bem os ouvidos: há por ai uma cobra, ela vai tentar convencer-te a comer uma maçã da árvore proibida, tu não aceites, entendeu? NÃO ACEITES!”.

E eu, nesta altura, estaria a escrever Informação Correcta a partir do Paraíso, com 70 virgens…ah, não este é o outro. Bom, num lugar melhor.

Mas se Eva tivesse recusado (ou por causa das ordens, ou por causa do livre arbítrio), nada de pecados, nada de pensamentos impuros, etc. etc…

Sabia Deus da cobra? Sabia.
Sabia Deus que as mulheres, além de conduzir mal (na maioria dos casos), não resistem às maçãs? Sabia. 

E os planos de Deus? O Bem, o Mal?
Pois…

Judas e a conspiração

Judas merece mais algumas palavras. De facto, há várias teorias acerca desta figura. Na visão gnóstica, Judas não foi um traidor mas um servo fiel que fez o que lhe tinha sido ordenado de fazer.

Nomeadamente, há quatro possibilidades:

  1. Jesus não previu a traição de Judas;
  2. Jesus não foi capaz de impedir a sua acção;
  3. Jesus permitiu que Judas traísse;
  4. Judas foi cúmplice informado do destino planeado de Jesus
Cattura di Cristo nell’orto, Caravaggio, 1602

Os Evangelhos deixam entender que Jesus permitisse a traição. Mas também aqui as implicações são profundas e são do mesmo género das já tratadas: Judas teve a possibilidade de escolher?

Sem a traição de Judas, não haveria Crucificação e não haveria Ressurreição. Na prática: não haveria Cristianismo.

Judas é também o tema de muitos tratados filosóficos, incluindo The Problem of Natural Evil, de Bertrand Russell, e Três Versões de Judas, de Jorge Luis Borges. Ambos realçam as contradições presentes nos Evangelhos:

  • Se Jesus prevê a traição de Judas, então Judas não tem livre arbítrio e não pode evitar de trair Jesus.
  • Se Judas não pode controlar a sua traição, então a sua punição como um traidor e a consequente representação na cultura ocidental não é merecida.
  • Se Judas foi enviado ao inferno por causa da sua traição, e sua traição foi um passo necessário para a morte de Jesus Cristo e a salvação humana, então Judas foi punido para favorecer a salvação humana.
  • Se Jesus sofreu ao morrer na cruz e, em seguida, subiu ao Céu, enquanto Judas tem que sofrer para a eternidade no Inferno, então Judas sofreu pelos pecados da humanidade, mais do que Jesus e o seu papel na penitência é, portanto, muito mais importante.

Delirantes fantasias anticlericais? Não, pois até um cristão como o teólogo Hugh J. Schonfield, por exemplo, aceitou a ideia de Judas como executor duma conspiração organizada por Jesus.

E mesmo sem ir tão longe, temos de admitir que a questão é complexa.
E pode ser resumida nesta pergunta: qual a origem do Mal?

Podemos pensar “É a vontade de Deus, não vale a pena perguntar” e dormir descansados. Ou podemos tentar conectar os poucos neurónios disponíveis.

O leitor é que sabe.
Ámen.

Ipse dixit.