A pressão sobe.
Foi Roma, mas antes tinha sido Londres, e Barcelona, e Madrid, e Paris.
Por enquanto são manifestações isoladas, nada que a policia não possa controlar.
Quando a panela de pressão começava a apitar, a minha avó costumava levantar-se para baixar a chama do fogão. Era o simples remédio para evitar que a pressão subisse até valores indesejados. E a cozedura continuava com chama lenta.
Porque agora a chama não pode ser baixada? Porque não é possível voltar ao nosso mundo onde poucas pessoas enriquecem de forma absurda enquanto todos somos obrigados a consumir cada vez mais e até agradecemos por isso?
Porque a situação é muito pior daquela que os factos podem deixar imaginar.
Na verdade estamos a percorrer um caminho bem apertado, onde qualquer desvio, por pequeno que seja, pode ser fatal.
O que talvez não ficou esclarecido é que esta transferência de poderes não será indolor. Poderia ser, mas provavelmente assim não será.
Não será porque o actual sistema económico-financeiro não pode mudar. É obrigado a continuar o próprio jogo, sem parar e sem mudar as regras.
É um sistema divertido enquanto houver dinheiro para gastar, enquanto houver crescimento.
Mas quando dinheiro e crescimento forem só uma lembrança, este sistema mostra a outra face: é cruel, extremamente cruel. E não pode ser diversamente: é uma questão de sobrevivência. Não a nossa, a dele.
Escreve o professor Robert E. Prasch, economista do Middlebury College, EUA:
A Irlanda podia simplesmente declarar a bancarrota, renegociar a dívida com os credores e deixar claro que a alternativa era aceitar ou deixar a proposta unilateral do governo de Dublin.
Mas o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a União Europeia entenderam esta solução e têm incluído nos termos do “resgate” que a Irlanda utilizasse como garantia para os investidores o dinheiro do Fundo de Reserva Nacional de Pensões. Simplesmente, a sobrevivência dos reformados da Irlanda vai ser mantida como refém deste acordo.
A Irlanda não respeita as condições do acordo para o resgate? Os investidores privados ficam com o dinheiro dos reformados. Simples e eficaz. Estas são notícias que os media não gostam de relatar.
E não se surpreende entre as condições do acordo para o resgate existem detalhes inexplicáveis, como a obrigação das famílias para instalarem um aparelho medidor de água com unidades separadas, uma condição essencial para a privatização do serviço. Ou a redução do salário mínimo, já escassos. Qual a ligação dos medidores de água e dos salários mínimos com a fraude bancária, a desregulamentação, a conduta idiota do governo idiota que criou e alimentou esta crise?
Os Irlandeses estão feitos. FMI, UE e o governo de Dublin concordam que a melhor maneira era de deitar os riscos e os custos associados ao resgate dos bancos por cima aqueles que não têm nada a ver com a fraude e que em nada beneficiaram de toda esta situação.
Terão impostos mais altos, ordenados mais baixos, propinas para os estudantes aumentadas, entrará em colapso a assistência aos pobres e aos desempregados, serão cortados os benefícios para as famílias com crianças pequenas; enquanto serão salvos o grupo de indivíduos rico, as corporações, quase todos os banqueiros e os especuladores estrangeiros.
Sem dúvida, os banqueiros e burocratas do FMI e da UE viram na crises da Irlanda uma oportunidade única para impor uma política económica decidida por um poder não eleito e fora de controle, assim como acontecia com a hegemonia britânica do século XIX.
O capitalismo da catástrofe chegou na Irlanda.
E não podemos não lembrar das palavras do actual presidente Comissão Europeia, Durão Barroso, no dia 14 de Junho deste ano:
Olha, se não aplicarem estes pacotes de austeridade, estes Países poderiam praticamente desaparecer como democracias. Não têm escolha, é pegar ou largar.
Dúvidas?
Mario Draghi, governador do Banco de Italia, membro do Conselho Directivo e do Conselho General do Banco Central Europeu, Governador do Banco Mundial, numa recente entrevista:
Temos que tornar as regras que já existem mais apertadas, mais rigorosas. Sanções, custos políticos e sanções financeiras terão que tornar-se quase automáticas, de modo que os Países com políticas fracas, incapazes de fazer a coisa certa, possam fazer a coisa justa corrigir-se.
A coisa justa.
Este políticos, estes economistas, estes financeiros, estes amigos e colegas dos banqueiros, estes servos das corporações, não esqueceram de algo?
Da reacção popular, por exemplo.
Não não esqueceram. Disso podem ter a certeza.
Têm suficiente experiência para entender que o que está em jogo e sabem, até antes do nós, quais as consequências.
É por isso que temos o medo da guerra: os Estados Unidos atacarão o Irão? E quando? E Israel?
A Coreia do Norte invadirá a do Sul?
Haverá uma guerra atómica?
E o terrorismo?
E Wikileaks?
E Obama?
E a gripe?
Tudo serve quando a prioridade é implementar medidas altamente populares.
A dúvida é: estas distracções serão suficientes?
O sistema não gosta de fazer o que está a fazer. Conhece os riscos, sabe que seria melhor, bem melhor, implementar estas medidas com o sorriso nos lábios. Mas não tem escolha, pois a crise de 2008, a crise que ainda não acabou, precipitou as coisas. Agora não há margens, há só um caminho que todos têm de seguir, a qualquer custo.
Vice-versa, o perigo é que alguém acorde. E se calhar que comece a questionar.
Este seria o fim.
É verdade que estamos estrangulados pelos ritmos da vida, é verdade que hoje combater este sistema é como atravessar um labirinto com paredes de borracha; é verdade que os chamados meios democráticos de luta são largamente uma fraude; é verdade que “eles” são cruéis.
Mas a apatia de milhões pode acabar, de repente, como por encanto. É suficiente que acabe o pão. Ou que as nossas condições de vida, o nosso bem-estar, sofra uma reviravolta improvisa, não prevista.
O Mahatma Gandhi predicou de enfrentar o inimigo com o sorriso nos lábios, sempre. Mas também disse que, ao não possuir os meios para faze-lo, a apatia nunca pode ser justificada, e então é pegar nas armas e atirar no inimigo. Isso foi o que Gandhi disse.
Eu continuo a pensar que haja uma saída e que esta saída não envolva a violência.
A violência pode levar a consequências indesejadas, pode bem provavelmente fazer que o sistema fique ainda mais repressivo. O que não é bom.
Vladimir Bukovsky, ex dissidente soviético:
Obviamente é uma versão mais “doce” da União Soviética.
Por favor, não entendam mal. Não estou a dizer que na Europa haja gulag. E nem o KGB, ainda não, mas temos que observar com atenção algumas estruturas, como a Europol.
O que preocupa é que esta policia terá provavelmente mais poderes do que o KGB. Terá a imunidade diplomática. Imaginem um KGB com imunidade diplomática.
Qual a distância entre manifestantes e terroristas? Curta, muito curta, sobretudo se quem está no poder controla os órgãos de informação.
Por isso, além das considerações morais, a violência deve ser evitada.
Mas a chama continua alta, a panela apita, e a minha avó, com minha grande saudade, já não se levanta.
Ipse dixit.
Fontes: Paolo Barnard, ECPlanet,