Ainda com Wikileaks.
Um pesadelo.
Não param as notícias nos média: Assange preso, a Suécia quer a extradição, há uma acusação de estupro.
Nos blogues e sites independentes é ainda pior: Wikileaks é a última esperança de quem luta contra o Império do Mal, Assange um mártir.
Poucos são os que param e reflectem.
Reflectem acerca de quê? Acerca dum simples pormenor: Julian Assange está vivo.
Talvez para a maioria dos leitores isso possa parecer como um facto normal, mas não é: se Assange fosse verdadeiramente um perigo para os Estados Unidos e, sobretudo, para Israel, estaria debaixo de dois metros de terra. E não desde agora.
Pelo contrário, Assange é vivo e saudável.
Por enquanto no Reino Unido, onde Scotland Yard teve a cortesia de esperar antes de prende-lo, depois veremos.
Se os militares ingleses tivessem o mesmo respeito quando for altura de capturar os alegados terroristas inimigos do Ocidente, Guantanamo estaria meia vazia.
Mas como é possível duvidar de Wikileaks?
Ao ver Wikileaks e os média em geral que juntam as forças para expor a verdade nua e crua acerca da invasão dos EUA no Iraque, no Afeganistão e, mais recentemente, o que o Departamento de Estado dos EUA pensa acerca dos líderes mundiais? Podemos ter ainda reservas?
Quer dizer, isso é o que está a acontecer, certo?
Uma série de revelações históricas, não é?
Pois não é.
O que acontece é que os média estão a difundir notícias já velhas e incompletas. Só que agora têm uma camada de credibilidade graças ao bom Julian Assange, alto, louro, olhos azuis, um perfeito proto-mártir.
O que verdadeiramente consegue surpreender-me é o facto de sites de notícias alegadamente alternativas estarem a funcionar como um poderos eco para estas mentiras.
Difundem a história de Wikileaks sem algum espírito crítico.
Não vamos fazer nomes, não é simpático: mas falamos de sites que a cada dia podem contar com dezenas de milhares de visitantes. Um movimento impressionante para defender o mártir australiano. Tudo sem parar, sem pensar, sem duvidar, sem perguntar.
Toc toc: está ainda alguém por ai?
O leitor tem dúvidas acerca de quanto afirmado?
Então o leitor faça um favor: abra YouTube e procure alguma coisa acerca das atrocidades dos Estados Unidos no Iraque ou no Afeganistão.
E, uma vez encontrado, olhem para a data de publicação do vídeo. Velhinho, não é?
Pois é.
Os Estados Unidos utilizam esquadras de killer? Olha só a novidade: a notícia tem 7 anos e pode ser encontrada neste link do diário britânico Guardian.
Aliás, na notícia original é presente a informação segundo a qual estes killer são treinados pelos Israelitas.
Washington paga os média do Iraque e do Afeganistão para obter notícias mais favoráveis?
Wow! Quem poderia ter imaginado uma coisa destas?
Talvez o Lincoln Group, que em 2005 ganhou em exclusivo a possibilidade de controlar todos os média do Iraque. Esta revelação é tão perturbadora que está no Wikipedia desde 2005.
Quantos civis foram mortos no Iraque? Milhares? Ohhhhhh…esta sim que é uma revelação aterradora.
Querem uma ainda pior? Visitem Just Foreing Policy, que ainda faz as contas: já ultrapassou 1 milhão e 400 mil vítimas. Na verdade, Wikileaks apoia uma estimativa muito baixa que fica mais próxima das avaliações oficiais.
Mas se Assange ficasse por aqui até não seria mal.
Afinal é bom lembrar o mal da guerra, os sofrimentos envolvidos, o papel longe de estar limpo das “Forças do Bem”, Estados Unidos in primis.
O problema nasce quando Wikileaks avança com outro tipo de “revelações”.
Wikileaks, por exemplo, fornece as “provas”de que o Paquistão está ajudar os Talibãs. O Paquistão e não a CIA, como muitos suspeitam.
Resultado? O seguinte: o New York Times publica um artigo cujo título é
O serviço de inteligência paquistanês ajuda os revoltosos.
E a CIA agradece.
Avança o Guardian:
Wikileaks revela que Irão e Paquistão vendem mísseis aos Talibãs.
Doutro lado, que Teheran seja um dos principais objectivos destas “revelações” parece evidente.
Wikileaks, como o Irão concebeu um novo colete-suicida para Al-Qaeda no Iraque.
O quê? Mas nem nas fantasias mais selvagens de Tel Avive haveria espaço para notícias como estas.
Ainda o Telegraph:
WikiLeaks, o Irão obtém da Coreia do Norte mísseis com os quais atingir Europa.
Com certeza. Também Saddam Hussein tinha mísseis assim, lembram? Guardian:
O especialista da Defesa Adam Holloway afirma que o MI6 [o serviço de intelligence britânico, NDT] obteve a informação directamente dum taxista que tinha ouvido falar dois comandantes militares do Iraque acerca das armas.
E não é o caso de sorrir, o nível é o mesmo.
Mesmo na altura em que os Estado Unidos estão empenhados na demonização do Irão e têm um porta-aviões no Mar da China, eis que surge Wikileaks com estas estrondosas “revelações”. Maravilhoso.
E Israel? Ah, pois, Israel…
Eis o pensamento da terra de Rei David:
Em Israel, o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, disse que reivindicava as revelações de [Wikileaks, NDT] sobre a extensão das preocupações internacionais e árabes sobre o Irão e o seu programa nuclear.
“Israel não foi danificado de alguma forma pelas publicações de Wikileaks”, disse Netanyahu.“Os documentos mostram muitas fontes que apoiam as avaliações de Israel, particularmente acerca do Irão. A nossa região tem sido refém duma narrativa que é o resultado de 60 anos de propaganda que pinta Israel como a maior ameaça. Na verdade, os líderes entendem que esta visão é falsa. Pela primeira vez na história, há um consenso de que o Irão é uma ameaça.”
Netanyahu só não disse “Obrigado Julian”.
Talvez tinha pressa, esqueceu do pormenor. Mas o sentido é o mesmo.
Pergunto: mas é preciso dizer mais?
E percebem agora porque Julian Assange está vivo e em boa saúde?
Conclusão: Wikileaks foi uma operação bem pouco sofisticada, mas resultou. E afinal é isso que conta.
Por isso é preciso dar os parabéns aos autores. Cujos nomes podem ser intuídos sem grandes esforços cerebrais.
Em breve a poeira irá assentar-se. Os dados acerca dos civis mortos no Iraque serão esquecidos (“é normal, é uma guerra”). E quando alguém afirmar que o Irão é o Reino do Terror, poderá sempre acrescentar “Também Wikileaks disse isso!”.
E o circulo será fechado.
Sinceramente, pensava que fosse preciso algo mais.
Esperava que o 11 de Setembro tivesse ensinado alguma coisa, tivesse difundido o habito de não parar perante as aparências mas de ir um pouco além.
No mundo de internet há pessoas que põe em causa tudo ou quase, chegando a imaginar conspirações que envolvem alienígenas, mundos perdidos, Jesús Cristo, os Kennedys e a gripe das aves.
Depois é suficiente um australiano com recortes de jornais para que todos fiquem aniquilados.
Tal como disse: esperava que fosse preciso algo mais.
Culpa minha, peço desculpa.
Nota
Desejo realçar uma das outras poucas vozes que, tal como eu, pararam e tentaram reflectir: Prova Final. Caso tenha esquecido alguém, façam o favor de indicar! Obrigado!!!
Ipse dixit.
Fontes: Nexus, Guardian, Wikipedia, Just Foreing Policy, New York Times, Telegraph