A Grande Obra

Continuemos na senda dos assuntos histórico-metafísico-hipoteticos-quemsabeoquê. E peço ao Leitor um pouco de paciência, não apenas por causa do comprimento do texto quanto do argumento em causa. Sei que, no geral, o Leitor prefere coisas “práticas” em vez que teorias abstractas; todavia, há alturas em que um conjunto de factos concretos podem fazer sentido se lidos através duma teoria superior que, a pesar de abstracta, parece ser uma das poucas capazes de fornecer um senso a acontecimentos de outra forma “desligados” e aparentemente quase desprovidos dum fim.

Para compensar, fala-se aqui de pessoas verdadeiras, pessoas bem conhecidas da história europeia. Como ponto de partida já não é mal.

(nota: no texto inseri ligações para Wikipedia versão portuguesa cada vez que possível; versão espanhola quando não presente a portuguesa; versão inglesa quando não presentes nem a portuguesa e nem a espanhola).

Os Rumor

Esta histórica começa no Norte de Italia, na cidade de Vicenza, na região do Veneto, uns 60 quilómetro a Oeste da mais conhecida Venezia. Vicenza é por acaso um bonito lugar que aconselho visitar, mesmo que se evite experimentar o famoso prato de “lebre à vicentina”, dado que de gato se trata (uso único em Italia).

Segundo as memórias do filho Paolo, o advogado Giacomo Rumor (lê-se Rumór) tinha nascido em Vicenza a 2 de Abril de 1906. Estudou Direito na Universidade de Pádua e enquanto frequentava o curso com o grupo de universitário católicos (entre os quais havia também Giulio Andreotti), ele tinha estabelecido uma discreta relação com Monsenhor Montini, o futuro Papa Paulo VI, do qual era a assistente. Durante a Segunda Guerra Mundial, Giacomo Rumor tinha participado na Resistência no Comité de Libertação Provincial, como expoente dos Democratas Cristãos. Entre a segunda metade dos anos Quarenta e o início dos anos Cinquenta, tinha trabalhado com pessoas que estavam directamente envolvidas nos estudos para as primeiras fases do projecto da União Europeia. Rumor tinha sido indicado pelo Vaticano como uma persona gradita, isso é, bem vinda aos olhos  da Santa Sede.

Tudo isso não admira: Giacomo Rumor era o primo de Mariano Rumor, um dos maiores políticos italianos crescidos no seio da Democrazia Cristiana (DC), o partido que participou em todos os governos depois do fim da Segunda Guerra Mundial até o ano de 1992. Também ele nascido em Vicenza, (numa das regiões “brancas” italianas, onde mais forte é o sentimento católico), depois do conflito foi eleito deputado no Parlamento começando assim uma carreira que o viu ser Secretário do Partido, várias vezes Ministro da Republica e cinco vezes Primeiro Ministro. A importância de Rumor cresceu até alcançar estatuto internacional: também ele foi uma das pessoalidades mais envolvidas na criação da actual União Europeia, chegando mais tarde a ser eleito como deputado do Parlamento europeu. Tudo isso, obviamente, sempre ficando em estreito contacto com o ambiente do Vaticano, do qual a DC era a referência política.

Portanto, aquela dos Rumor não era uma família qualquer: pelo contrário, era uma das mais poderosas não apenas na Italia nascida após a Segunda Guerra Mundial: um poder que continuou ao longo de décadas, sempre num estreito relacionamento com o Vaticano. Este aspecto é particularmente importante pois não estamos aqui a falar dum grupo de “alternativos”, de “radicais” com simpatia “conspiracionistas”: pelo contrário, falamos duma família de poder, desde sempre em contacto com os ambientes mais conservadores da Igreja romana. É neste seio que nasce o livro de Paolo Rumor, L’altra Europa: Miti, congiure ed enigmi all’ombra dell’unificazione europea (“A outra Europa: Mitos, Conspirações e Enigmas na Sombra da Unificação Europeia”). Publicado em 2017, o livro apresenta grandes segmentos das “Memórias Confidenciais” de Giacomo Rumor, pai de Paolo e figura de proa no DC do pós-guerra. No centro das memórias está a colaboração entre Rumor sénior (administrador de Monsenhor Montini, o futuro Papa Paulo VI) e Maurice Schumann, distinto estadista francês na altura do Tratado de Roma (1957), que é o primeiro passo concreto em direcção à União Europeia. É disso que vamos falar.

A Grande Obra

Nos anos imediatamente a seguir à entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, sob pressão de Roosevelt, tinha sido criada uma estrutura de peritos para estudar as premissas sobre as quais formar um esboço de uma União Europeia para levar à consolidação de uma economia liberal espalhada por toda a zona do mercado mediterrânico. Estes últimos tinham de ser estabilizados, harmonizados e tornados capazes de competir com aqueles que estavam previstos como novas entidades económicas emergentes do Oriente, que o mundo ocidental teria de enfrentar num período de tempo relativamente curto.

Aqui estava, contudo, um terceiro objectivo considerado o mais importante para aquele núcleo central e misterioso de personagens que tinham alegadamente dado um impulso à implementação do projecto. O estudo para a implementação da União Europeia tinha sido preparado há muito tempo, no ambiente e sob a protecção da Terceira Casa de Lorraine Vandémont, e tinha aguardado circunstâncias favoráveis para a sua implementação. O “esboço” do estatuto internacional de 1948, no qual a estrutura europeia subsequente foi enxertada, foi retirado de um documento chamado Acto de Intenção 20 de Julho de 1889, assinado por D’Angloise-Boile-Michelini-Kauffmann, depositado na altura na prefeitura de Augsburgo, depois transferido para Estrasburgo e para a sede político-histórica da União. O documento ainda existe apesar da sua localização não estar divulgada.

Não se pretendia que este trabalho dos estudos dos peritos interferisse nem com a política nem com a política externa dos governos, ao ponto de nem sequer os parlamentos nacionais terem conhecimento do mesmo. Durante algum tempo também o italiano Cesare Merzagora (que não por acaso estava no centro do Plano Solo/Gladio) tinha feito parte destas consultas. A Comunidade Europeia surgiu portanto com um aparelho estatal já preparado, nas linhas essenciais, pelas Comissões que tinham trabalhado nos anos 1944-1950 aproximadamente, com base no “Esquema” ou no “Acto”. Estas reuniões tinham sido efectuadas ou planeadas por Maurice Schumann, com a subsequente adesão do alemão Konrad Adenauer e do italiano Enrico De Nicola em execução de uma “ordem” proveniente dos Estados Unidos. Maurice Schumann confiou mais tarde a Jean Monnet a tarefa de valer-se de um contacto inglês e espanhol (Sevilha)  e de Bernard Baruch para os aspectos financeiros. Eles tinham resumido os estudos anteriores compostos entre as duas guerras mundiais, no início do século XX e antes.

Os primeiros passos práticos foram dados em várias áreas. Primeiro, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço foi criada em 1951; depois seguiu-se o Tratado Europeu de Defesa de 1952; depois o Tratado de Roma de 1957 e o Euratom. As modalidades de implementação destes acordos, e dos subsequentes adoptados até aos nossos dias, já estavam previstas nas linhas principais no final da guerra, porque faziam parte desse plano de “sistematização” da civilização ocidental, identificada nas suas primeiras expressões ainda na época da Restauração (1814-1831) e que passou a figurar como o terceiro objectivo entre os acima mencionados.

No período 1943-1944, os Estados Unidos tinham assinado com os representantes da Resistência italiana cláusulas políticas relativas às relações Leste-Oeste, e cláusulas económicas. Entre estas últimas houve um pacto com base no qual a Itália utilizaria, durante várias décadas, recursos energéticos provenientes de empresas americanas ou controlados por elas. Esta foi considerada uma forma indirecta e mais fácil de pagar pelo menos parte das despesas da guerra em curso e futuras. Na altura da adopção destes acordos não havia estruturas diplomáticas independentes do lado italiano (ou seja, fora do regime fascista), enquanto que o Comité de Libertação Nacional (CLN) não era considerado fiável por ser demasiado influenciado pelas correntes pró-comunistas. Assim, os Estados Unidos tinham utilizado nas suas negociações com a Itália e a França como canal confidencial o Vaticano bem como as pessoas envolvidas na Resistência em quem a Igreja tinha uma confiança segura e que, com toda a probabilidade, teriam ocupado, no final da guerra, posições importantes.

A rede destes interlocutores foi constituída no topo por:

  • James Jesus Angleton (para os EUA), um alto funcionário da OSS e depois da CIA (era o mesmo Angleton que mais tarde enviaria milhões de dólares aos democratas-cristãos);
  • Monsenhor Giovanni Battista Montini (para o Vaticano)
  • Luigi Gedda (Presidente da Acção Católica), que foi o porta-voz de Montini;
  • Bispo Francis Spellman (que se tornou Cardeal de New York em 1946), interlocutor confidencial do governo americano;
  • Monsenhor Joseph Ratzinger, o futuro Papa Bento XVI;
  • Alcide de Gasperi
  • Ivanoe Bonomi

mais alguns membros de importância secundária.

Na altura Monsenhor Montini era um dos líderes dos Serviços Secretos do Vaticano (assim como, a partir de 1944, foi o Secretário de Estado). É preciso considerar, portanto, o bom conhecimento que Montini tinha de Giacomo Rumor, o facto deste ter vindo de uma família católica respeitada pela Igreja e, finalmente, da sua participação directa na Resistência em nome dos Católicos: estes foram os elementos que levaram Monsenhor Montini a usa-lo.

Giacomo Rumor encontrou-se em Viena, Estrasburgo e Verona com pessoas que tratavam destes assuntos como ele em nome da França, Alemanha, Áustria e Inglaterra. Ainda nos anos Setenta, Giacomo dizia ao filho Paolo que poucos políticos conheciam o trabalho que tinha sido feito “nos bastidores” para preparar pouco a pouco a nova ordem do Ocidente. A Europa tinha sido originalmente concebida como um “terceiro pólo” que se situaria entre os pólos americano (norte-sul continental) e oriental (sino-japonês). Acreditava-se que, a longo prazo, a Índia também caberia no pólo oriental. Portanto, a fim de contrabalançar a entidade futura, previsível e decisiva do pólo oriental, a europeia deveria ter absorvido ou incluído também a bacia mediterrânica, envolvendo os Países costeiros de língua árabe. Estes últimos, de facto, deveriam ter sido gradualmente ocidentalizados, em todos os sentidos, mesmo nas suas expressões institucionais e sociais.

Mas quando se entra na profundidade destes planos geopolíticos, já não é exacto referir-se a entidades nacionais da forma como estamos habituado a fazê-lo. Explica Paolo Rumor:

De facto, por detrás do aparelho oficial operam pessoas que raciocinam de acordo com objectivos que transcendem os estritamente estatais. Na realidade, o sentido geral do que pude compreender da leitura dos documentos do meu pai, bem como das suas explicações orais, é que existiu (e talvez ainda exista), a um nível muito elevado e diferente dos conhecidos, um Grupo ou Entidade (do qual algumas pessoas pertencentes a antigas famílias nobres faziam ou fazem parte) que trabalhou e trabalha num projecto importante para a Europa, mas também para além desses objectivos. […] Estas pessoas não hesitam em recorrer a técnicas de sugestão ou dissimulação para orientar a emocionalidade da opinião pública, as suas expectativas, as suas aspirações mentais e, consequentemente, para obter aceitação para mudanças estruturais envolvendo as comunidades nacionais. […] A actividade dos governos individuais não parece ter a capacidade de interferir com a programação acima referida […] uma vez que só estão conscientes dela no que diz respeito ao público e aos aspectos transparentes […] Os partidos políticos […] estão […] totalmente excluídos do que em jargão se chama “A Grande Obra” [nome que se refere inevitavelmente ao Opus Dei, ndt]. […] Governos e partidos sofrem a influência discreta mas incisiva de uma rede de estadistas e conselheiros colocados em áreas-chaves de funções estratégicas.

Mesmo durante a Segunda Guerra Mundial (mas na realidade o processo tinha começado muito antes) alguns círculos intelectuais ingleses, americanos e franceses tinham começado a trabalhar não só pela unificação económica e política da Europa, mas também por esta ser governada por uma liderança moral personificada por alguns membros de um ramo da antiga nobreza, que teve as suas raízes num passado distante, só em parte da extracção judaica.

Ainda Paolo Rumor:

Existem também protocolos sobre a matéria, e a este respeito lembro-me de um círculo político chamado Circuito [que depois se tornou a Gladio francesa, ndt] a que a Igreja se opôs, apesar dos prelados de alto nível, entre outros, terem participado no mesmo. No período da sua colaboração nos trabalhos para os estudos preparatórios da União, o meu pai tinha relações com Alain Poher (que tinha participado na Resistência Francesa; tinha ocupado cargos de regência provisória no governo; tinha-se tornado então membro do partido católico do centro, o Mouvement Républicain Populaire, e do Parlamento Francês); com Maurice Shumann (proponente da política europeísta baseada no entente franco-alemão); com Jean Monnet (que em 1952 deveria tornar-se o primeiro presidente da Alta Autoridade da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço); e com outras personalidades. este grupo de pessoas incluía alguns intelectuais que […] foram chamados de “Priores”.

Foram os Priores a elaborar os famosos Protocolos dos Priores, mais tarde modificados por Sergei Nilus e renomeados como Protocolos dos Priores de Sião. Nilus, um místico anti-semita russo da metade do séc. XIX, pretendia desta forma descarregar toda a responsabilidade do conteúdo no povo judeu, quando na realidade havia nele várias fontes de várias posições, com a judaica limitada, no entanto, à seita “sionista” que, para dizer a verdade, nem sequer é exactamente judaica, uma vez que os seus objectivos são apenas políticos (a construção de um “Grande israel” no Médio Oriente), com cristãos, ateus e assim por diante que também aderem a ela.

Como há anos é repetido nas páginas de Informação Incorrecta, o Sionismo não passa duma das várias forças empenhadas em actividades “subversivas” e provavelmente nem é a mais forte. O papel dos Sionistas é amplificado por razões principalmente históricas e religiosas, mas concentrar-se unicamente neles excluindo as outras vertentes é um grave erro que impede a visão geral do projecto.

Continuemos com as palavras de Rumor:

Essa associação […] afirmava que a sua estratégia remontava a um passado extraordinariamente distante. Havia também um órgão de união muito mais elitista, dentro do primeiro, formado por dois círculos, Kreisau e Alpha Galates, que creio constituía uma forma de implementação ou intermédia […] Parte do órgão unionista europeu foi utilizado após a Segunda Guerra Mundial (pela CIA, os serviços secretos italianos e o Vaticano) para dificultar a propagação do Comunismo. Monsenhor Montini esteve activamente envolvido no planeamento da futura União Europeia […] e foi-lhe delegado na sua qualidade de chefe dos Serviços Secretos do Vaticano. […] O meu pai partilhava o que era mais do que uma suspeita amadurecida pelo povo de origem católica com quem trabalhava: ou seja, que a própria concepção e tradução prática de uma União das Nações Europeias revelava uma “mão guia” no trabalho durante algum tempo. Esta suposição foi então confirmada por Schumann, que afirmou que o “Projecto” remontava, como estudo, à primeira metade do século XIX, mas que este planeamento pertencia mesmo ao período dos Merovingios […], a um acordo assinado pelos Francos de Clovis em 496 com Remigio, intermediário do Papa Anastasius II, graças à influência de um promotor, Elisacardo (ou Elisacar), e com o apoio dado alguns anos antes por Zeno de Constantinopla.

No entanto, o planeamento tinha sido interrompido após a invasão árabe de 641 no Egipto e na Pérsia, que tinha separado a Europa continental das costas sul-mediterrânicas. Depois disso, o Projecto parece ter seguido uma estratégia bem definida, que no início consistia em utilizar algumas dinastias governantes – principalmente da franco-normanda e, mais tarde, das casas de Lorena e Habsburgos; depois, muito mais tarde, das estruturas políticas expressas pelos Impérios Centrais; mais tarde, pelas dos governos democráticos e mesmo de alguns governos totalitários; para chegar, finalmente, aos organismos supranacionais (MEC, CEE): tudo isto com o objectivo de completar a união geopolítica da Europa, o primeiro passo essencial para alargar a estrutura à bacia sul do Mediterrâneo, ou seja, à cintura que inclui os países situados entre Marrocos e a Turquia. […] A formulação das linhas essenciais desta “geopolítica” […] parece-me ter sido contida em Hieron, um papel produzido por volta de 1870 em França.

O autor de Hieron foi Felix de Rosnay, um esoterista da época, que nesta brochura pretendia ilustrar os objectivos de uma irmandade da qual era membro: o Hiéron du Val d’Or ou Hiéron du Orval. A publicação veio 30 anos mais tarde, em 1900, através da editora Alma Artis of Paray le Monial. O mesmo grupo era (e é) conhecido como o Philadelphes, Comité dos Olimpíadas ou Comité dos 300. A irmandade foi fundada em 1873 pelo jesuíta Victor Drevon e pelo Barão Alexis de Sarachaga na pequena cidade de Paray le Monial, no vale de Orval, no que é hoje a província do Luxemburgo. Paray le Monial foi o local onde a freira Marie Marguerite Alaconte teria tido várias visões de Jesus entre 1673 e 1675.

Em Paray le Monial, pode-se hoje admirar um mosteiro construído entre 1070 e 1124 pelos monges Rosacruzes (Priores de Sion) que vieram da Calábria (Italia) no séquito de Pedro o Eremita, os mesmos monges que, juntamente com o Duque de Bulhão, iriam liderar a Primeira Cruzada. Ainda antes, no mesmo local, havia uma pequena capela dedicada a Notre Dame de Romay e que albergava uma estátua da Madona Negra que remontava ao século IV d.C.

O escritor Victor Emile Michelet (1861-1938), Grão Mestre da Ordem Martinista, falou do Hiéron du Orval nas suas memórias Les Compagnons de la Hiérophanie. Souvenirs du mouvement hermétiste à la fin du XIXe siècle. A menção aparece numa secção dedicada ao seu amigo Henri Favre, um ocultista que se autodenominava um “velho druida”. De acordo com Michelet, o Hiéron du Orval agiu sem perturbações, uma vez que era protegido pelo Papa Leão XIII. Pode então não ser coincidência o facto do Papa Leão XIII ser o Pontífice favorito de Bérenger Saunière, o pároco do famoso caso “Rennes le Chateau“, que tinha o lema do papa Lumen in Coelo esculpido no portal da sua pequena igreja.

Entre os objectivos declarados de Hieron estava a realização de “uma teocracia na qual as nações não seriam mais do que províncias, e os seus líderes não seriam mais do que procônsules ao serviço de um governo mundial oculto formado por uma elite. Para a Europa, o regime do Grande Rei implicava uma dupla hegemonia do papado e do império, do Vaticano e dos Habsburgos, com este que seria o braço direito do Vaticano. Nessa altura as Casas de Habsburgo e Lorena tinham sido reunidas pelo casamento de Maria Teresa de Habsburgo e Francisco III Estêvão de Lorena (celebrado em 1736), enquanto o conceito do “Grande Rei” realizava plenamente as profecias de Nostradamus (1503-1566). Neste contexto é importante realçar como Nostradamus não estava bem inserido em certos ambientes, mas muitas vezes as suas profecias são “programas”, enquanto que são os homens que estão empenhados em fazê-las acontecer. Nada de mágico, então.

O Hiéron du Orval procurou reconciliar os mistérios pagãos e cristãos; o próprio nome Hieron indicava um santuário pagão. A irmandade atribuiu particular importância ao sistema druida, que considerou parcialmente pitagórico. Na verdade, as ideias de Pitágoras (não sabemos se as originais ou distorcidas) serviram de princípios inspiradores para todas as Sociedades Secretas que surgiram em torno e em apoio das grandes famílias nobres. Segundo Rosnay “a verdadeira religião dos druidas foi a revelação da tradição primordial e primeira religião natural da Humanidade”. As Madonas Negras desempenharam um papel importante para a irmandade: foram de facto a versão “cristianizada” da deusa celta Danu (não diferente de Ísis), a “Mãe de todos os seres humanos” a quem foi atribuída a capacidade de trazer de volta à vida dos recém-nascidos mortos sem baptismo.

O estado a que o Hiéron aspirava teria realizado o antigo sonho de um “reino celestial” na terra, uma cópia ou imagem-espelho da ordem e da hierarquia do cosmos. Teria cumprido o antigo lema hermético de “como no céu, assim na terra”. A certa altura (antes de 1914) a irmandade desapareceu como uma unidade por direito próprio e passou a constituir degraus mais altos (pouco conhecidos até pelos que viviam no interior) no topo da escada maçónica comum. De facto, na Maçonaria existem 3 graus ordinários (1,2,3), 30 graus especiais ou escoceses (4,5,…,33, resumidos em 7 graus na Maçonaria de York) e 64 graus egípcios (34,35,…,97). É plausível que hoje em dia o Hiéron chegue até a centena, tendo criado aos graus 98, 99 e 100.
A ala armada do Hiéron (provavelmente uma das muitas) nos anos entre as duas guerras mundiais foi a organização terrorista de extrema-Direita Cagoule, que por sua vez foi configurada como uma sociedade secreta e operou através da infiltração no exército e no parlamento. O chefe da organização foi o esoterista Eugène Deloncle (1890-1944), assistido neste papel por François Plantard, primo daquele Pierre Plantard que em 1956 (re)fundou o Priorado de Sion.

O objectivo declarado de Cagoule era “estabelecer uma Nova Ordem Mundial sob o signo dos Estados Unidos do Ocidente”. O Presidente francês (e maçon) François Mitterand, aquele que em 1989 encomendou a famosa pirâmide do Louvre, foi acusado por muitos de ter tido ligações com Cagoule ou mesmo de fazer parte dela.

Para além do Hieron, entre os documentos de planeamento da Europa Unida, Rumor menciona os Protocolos dos Priores, elaborados em meados do século XIX. Rumor especifica que, a par destes, outros fictícios mas parcialmente semelhantes foram postos em circulação, enriquecidos com informação ridícula destinada a desacreditar todo o conteúdo do documento, caso este alguma vez se tornasse de conhecimento público. Esta cópia “retocada” teria sido forjada, como já lembrado , pelo místico russo Sergej Nilus, para chegar mais tarde às mãos de Alfred Rosenberg que, por sua vez, a entregou a Adolf Hitler.

A versão original, completamente retirada da vista do público, é agora mantida em Chatsworth House, um grande castelo em Derbyshire, Inglaterra, a poucos quilómetros da cidade de Bakewell, lar dos Cavendish, duques de Devonshire. Curiosamente, o mesmo edifício abriga a primeira versão dos Pastores de Arcádia, a pintura de Nicolas Poussin (1594-1665) que aparece com insistência na história do Priorado de Sion. Uma segunda cópia dos protocolos poderia ser encontrada em Rosslyn Chapel, no sul da Escócia, perto de Edimburgo.

Em 1936 foi a vez dum manifesto do Movimento Sinarquista Europeu (MSE, um grupo de elite que defende a construção de um governo mundial de sacerdotes-reis) intitulado Pacto Revolucionário Sinarquista para o Império Francês. Aqui foi anunciada uma revolução vinda de cima, que começaria pela França e envolveria gradualmente todas as nações do planeta.

O Cardeal Spellman tinha enviado um envelope a Giacomo Rumor através da mediação de Monsenhor Montini. Continha uma série de folhas azuis nas quais eram mencionados os acordos feitos em 1943 e nos anos imediatamente seguintes entre os Estados Unidos, França, Inglaterra e Itália. O envelope continha também um aviso para o petroleiro Enrico Mattei que estava a tentar emancipar a Itália da sua dependência energética dos Estados Unidos. Especificamente, foi avisado sobre uma milícia chamada “Contingente Americano” (Mattei morreu num atentado em 1962). Desta milícia fariam parte André Malraux, Pierre Plantard (o fundador do moderno Priorado de Sion), a revista francesa Vaincre (dirigida pelo próprio Plantard) e a organização que tinha redigido e era proprietária dos Protocolos, em existência desde cerca de 1870. Podemos deduzir que tanto o Hiéron como os Protocolos foram redigidos pelo próprio Hiéron du Orval.

A carta também enumerou os princípios morais que teriam guiado a nova abordagem geopolítica do Ocidente. Eram utilizados termos como “tolerância e liberdade”, “fraternidade”, “moderação”, “equidade”, palavras que também foram resumidas ou rubricadas com a palavra me’e. Curiosamente, me’e é uma palavra egípcia que expressa precisamente o mesmo conjunto de valores. Com o mesmo significado é utilizado hoje em dia em rituais maçónicos.

Rumor continua com a descrição da entidade supranacional que supervisionaria a realização da “Grande Obra”. Banalmente chamada de “Estrutura”, embora especifique que ao longo da história foram utilizados vários nomes para se referir a ela ou a uma parte dela: União dos Melhores, École des hommes, Ordem das Ardenas e Ordem de Stenaj. Segundo Rumor, a Casa de Lorena teria agido como um “patrono” do círculo, e membros da família escocesa Sinclair desempenharam um papel importante na mesma.

A União Europeia foi considerada pela Irmandade como uma reencenação de uma união original que, alegadamente, teria existido no passado remoto, antes de uma série de catástrofes ter destruído a civilização urbana. O regime nazi também justificou a sua unificação forçada da Europa com base no mesmo princípio: “A Europa já estava unida na época dos Anciãos”, afirmou Himmler. Por mais louco que isto possa parecer, a ideia não é tão absurda: há indícios duma época de paz e prosperidade no Velho Continente, antes da chegada dos Indo-Europeus.

A irmandade estaria dividida em três níveis. O terceiro nível, o nível da implementação, seria composto pelos membros já introduzidos ou destinados a serem introduzidos nas instituições políticas e militares. Executariam as directivas impostas pelo grupo do meio (consultivo), que incluía as Comissões acima mencionadas. Rumor fornece alguns nomes:

  • Zaccai e Bar Lev do Histadrut (sindicato sionista dos trabalhadores judeus)
  • o esoterista arménio Georges Ivanovič Gurdjieff
  • o Presidente francês Charles de Gaulle
  • Maurice Schumann
  • Altiero Spinelli (fundador do Movimento Federalista Europeu -1943-, da União dos Federalistas Europeus -1946-, membro da Comissão Europeia de 1970 a 1976)
  • Cesare Merzagora
  • André Malraux e Alain Poher, colaboradores do jornal Vaincre (Winning, de Pierre Plantard). Poher foi presidente provisório de França após a demissão de De Gaulle (de 28 de Abril a 19 de Junho de 69), e esteve novamente sobre a morte de Georges Pompidou (de 2 de Abril a 27 de Maio de 74). É descendente de Arnaud, Conde de Poher, que, entre 894 e 896, tinha casado com a princesa Merovingiana Gemege (filha de Guilherme II, filho de Sigisbert VI). Ver a “Lista de Rumores”. O neto de Arnaud Poher foi Alain IV Barbaforte (917-952), Duque da Bretanha de 937. A 13 de Fevereiro de 1973, o Midi Libre publicou um longo relatório sobre o Priorado de Sion no qual Alain Poher foi apresentado como um “verdadeiro pretendente ao trono de França”.
  • o dramaturgo Jean Cocteau, protagonista daquela vertente “narrativa” que nos anos ’90 trouxe à tona a alegada descida de Cristo, Rennes le Chateau e o Priorado de Sion, em cujas listas Cocteau aparece com o disfarce de Grão Mestre.

Como pode ver, os nomes escolhidos não são, de forma alguma, aleatórios.

Para o nível consultivo, Paolo Rumor fornece uma lista de nomes extraídos de uma lista original de propriedade do seu pai. Infelizmente, a lista resultante é bastante empobrecida em comparação com a original. Cada um destes nomes foi rubricado como “líder do grupo”, agindo como referência para um pequeno grupo de outras pessoas, que por sua vez agiam como referências para grupos mais pequenos. Os membros de cada pequeno grupo só tinham conhecimento dos seus subordinados e colegas dentro do mesmo pequeno grupo pequeno. Esta técnica de “pirâmides dentro de pirâmides” é utilizada em praticamente todos os órgãos derivados da Estrutura, incluindo a loja maçônica P2. Se por um lado este sistema abranda a passagem de informação, por outro lado permite que a Estrutura fique camuflada tanto dentro como fora dela mesma. Afinal, a “Grande Obra” deve ser lenta por definição, porque “as pessoas só aceitam mudanças radicais se estas ocorrerem em graus, passando lentamente por fases intermédias”.

A lista contida no livro de Rumor, como afirmado, é pobre, todavia é possível integra-la com a lista semelhante fornecida por Fra’ Bernardino, nascido Tommaso Sale, um dos sete que após a guerra supervisionou a reconstrução da Abadia de Chiaravalle, em Milão. A obra de Fra’ Bernardino pode ser consultada no site de Francesco Carpeoro e inclui entre os outros:

  • Joachim de Fiore
  • Roger Bacon
  • Paracelsus
  • Thomas More
  • Giordano Bruno
  • Robert Fludd
  • John Dee
  • Tommaso Campanella
  • Francis Bacon
  • Johann Faulhaber
  • Renato Descartes
  • Wilhem Schickard
  • Isaac Newton
  • Francisco de Aquino
  • Wolfang A. Mozart
  • Johann Wolfang Goethe (maçom/Illuminati)
  • Victor Hugo
  • Eric Satie
  • Rudolf Steiner
  • Gabriele D’Annunzio
  • Jean Coucteau
  • Salvator Dali

Conclusões

O livro de Paolo Rumor transmite uma ideia clara: a Europa não nasceu como nos dizem nas últimas décadas, mas teria uma origem muito antiga. No livro fala-se do homem de Neandertal e do homem de Cro Magnon, de uma tradição esotérica que está ligada à convicção de que a história da espécie humana na Terra é muito mais antiga e suscita muito mais controvérsias do que a ciência oficial acredita.

O plano prevê uma Europa (mas não só ela!) a ser “governada por uma liderança moral personificada por alguns membros de um ramo da antiga nobreza, que teve as suas raízes num passado distante”. Um passado em parte de extracção judaica, em parte muito mais antigo com nome que trazem de volta os movimentos messiânicos dos séculos V e IV antes de Cristo. Como diz Paolo Rumor:

Havia finalmente várias terminologias… que me foram descritas por um perito como pertencendo ao âmbito linguístico mesopotâmica.

Tudo isso pode parecer fantasia, até mitologia. É difícil acreditar que seja possível encontrar nisso um vislumbre de verdade: falamos aqui de tradições milenárias, instituições que teriam conseguido atravessar os séculos. É possível?

Podemos responder com uma outra pergunta: não somos nós “ordenados” segundo um esquema religioso já com 2.000 anos de idade? Este esquema não continua a replicar princípios que apareceram em forma escrita por volta de 1800-1600 antes de Cristo? Feitas as contas, o livro que está na base do movimento cristão, e no qual os fieis continuam a acreditar, tem mais de 3.500 anos (na sua formas escrita). Portanto a resposta é: sim, é possível.

No caso da “Grande Obra” é preciso ir mais atrás ainda, num passado onde podemos encontrar as civilizações Egípcias e Sumeras. Falamos aqui da alvorada da civilização e tudo torna-se mais complicado ainda: é possível que crença daquela época tão remota tenham sobrevivido até hoje?

Para responder, mais uma vez podemos pegar na Bíblia cujo primeiro capítulo, a Génesis, foi extraída da Epopeia de Gilgamesh e revisitada em chave hebraica. A Epopeia encontrou forma escrita por volta de 2.100 a.C. mas refere-se a episódios perto do 2.600 a.C. (ou até antes): depois de quatro mil e seiscentos anos ainda estamos a ouvir a mesma história. Pelo que, e mais uma vez: sim, é possível.

Mas o facto de ser possível não significa que seja realidade. Escolhi falar da Grande Obra porque estamos na presença, repito porque é importante, de um membro de uma das famílias mais influentes do período do pós-guerra em âmbito europeu, com evidentes ligações aos níveis mais altos do Vaticano. Nada disso certifica a autenticidade de quanto até aqui referido: tudo poderia ser um mito gerado (até involuntariamente) no seio da Europa politica.

No entanto, quero acrescentar algumas observações que, eventualmente, podem ser úteis.

A primeira é relativa à resposta que o jornalista Paolo Barnard me deu quando perguntei-lhe de forma directa quem ficava atrás “disso tudo”. Barnard respondeu indicando famílias potentes (falou em “Reis”) que queriam recuperar o poder. Isso encaixa com quanto dito até agora acerca da Grande Obra.

O segundo ponto é o seguinte: sigo há anos o trabalho de Mauro Biglino e, apesar de não concordar com todas as teorias dele (a mim os Annunaki estão antipáticos, o que posso fazer?), sou obrigado a reconhecer-lhe uma preparação fora do comum em relação aos assuntos que trata, fruto também duma metodologia de pesquisa que contempla a colaboração de especialistas nas mais variadas áreas (arqueologia, genética, etc.). Embora o foco de Biglino seja constituído no geral pela Bíblia, já teve ocasião de ampliar o discurso englobando dados acerca das civilizações mais antigas, como por exemplo o Antigo Egipto (doutro lado, um assunto obrigatório ao falar dos povos semitas). E, de facto, ao seguir as pesquisas de Biglino parece possível encontrar um fio vermelho que liga tudo, uma espécie de continuum que atravessa as épocas.

Como simples exemplo: tentem descobrir qual, segundo a tradição, o Deus sumero que encomendou a fundação da cidade de Medina, e qual o símbolo deste Deus: e depois comparem com o símbolo da religião islâmica, nascida em Medina com a predicação de Maomé a partir do 610 d.C.

Encontraram o símbolo da meia-lua? Exacto: mesmo símbolo. Um pormenor, sem dúvida, algo insignificante e  absolutamente casual. Mas há muitos destes “pormenores” espalhados ao longo da história antiga. Há os crânios da ilha de Malta, idênticos aos do Antigo Egipto que por sua vez são a cópia dos crânios encontrados na América do Sul pré-colombiana.

Nenhum destes pormenores só por si é capaz de contar uma história completa. E quem tenta construir algo com base neles tem excelentes probabilidades de errar ou até de “ver” coisas onde há apenas o nada. Bem pode ser o caso da Grande Obra. Mas ignorar tais pormenores para considerar a História como um simples conjunto de factos estanques também apresenta riscos. Pelo que, acho que a coisa melhor é manter a mente aberta, não abraçar algo como “fé” ou “dado indiscutível” mas estar sempre prontos para, eventualmente, pôr em causa as nossas convicções. Depois é só deixar o tempo trabalhar.

 

Ipse dixit.

3 Replies to “A Grande Obra”

  1. A ler: “O Livro dos Mortos” como disse Max “manter a mente aberta, não abraçar algo como “fé” ou “dado indiscutível” mas estar sempre prontos para, eventualmente, pôr em causa as nossas convicções” interpretar as palavras por sentidos limpos das formatações científicas e deixar fluir “a alma”.

  2. O link abaixo é de uma palestra de Mauro Biglino, em Portugal, no ano de 2017, na FNAC.

    Tema – Lançamento do livro ‘A Bíblia não é um Livro Sagrado’

  3. Olá Max: quando tomo conhecimento de coisas assim como as expostas neste artigo, mais me convenço que só se pode acreditar em poucas coisas: que os homens são dirigidos por uma ânsia de dominação, que se unem para alcançar este objetivo, que riqueza e poder são os elos que unem estes humanos em suas ambições de mais poder e dominação.
    Beleza de exposição, Max.

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