Sua Majestade BlackRock, a raposa no galinheiro

A BlackRock é um gigante financeiro global, com clientes em 100 Países e os seus tentáculos nas principais áreas de actividade em todo o mundo; agora gere também as torneiras dos resgates bilionários da Reserva Federal. Nada menos.

O destino do Banco Central dos Estados Unidos foi colocado nas mãos de uma megalítica entidade privada com o objectivo de ganhar tanto dinheiro quanto possível. O discurso é um pouco complexo, pois aqui falamos de Bolsa, de títulos, de acrónimos desconhecidos… mas peço um pequeno esforço porque estamos perante duma pequena-grande revolução: a partir de agora, nada será como antes, pois os privados entraram na Federal Reserve (e isso não é novidade nenhuma) e utilizam a mesma para comprar os seus próprios títulos de forma absolutamente legal (e esta sim que é novidade).

A “profecia” da BlackRock

Para a maioria das pessoas, a BlackRock é uma gestora de activos que ajuda os fundos de pensões e os pensionistas a gerir as suas poupanças através de investimentos “passivos” que acompanham o mercado bolsista. Mas trabalhar nos bastidores é muito mais do que isso. E fora dos EUA, muitos até ignoram o nome “Blackrock”. Pena, porque a BlackRock é nesta altura a instituição mais poderosa do sistema financeiro, a empresa privada mais potente, um verdadeiro poder “oculto”: Bloomberg fala abertamente de “Quarto Ramo do Governo“. Um ramo totalmente privado.

BlackRock é o maior gestor de activos do mundo, maior do que o maior banco do mundo (localizado na China), com mais de 7 biliões de Dólares de activos sob gestão directa e outros 20 biliões de Dólares geridos através do seu software de monitorização de risco Aladdin. Apesar da sua dimensão e do seu poder avassalador, a BlackRock nem sequer é regulada como uma “instituição financeira sistemicamente importante” ao abrigo da Lei Dodd-Frank, graças à pressão do seu CEO Larry Fink, que há muito tempo mantém relações “íntimas” com funcionários governamentais (perguntar à simpática Hillary Clinton e ao seu grupo em caso de dúvidas).

A importância estratégica e o peso político da BlackRock foi evidente quando quatro executivos da BlackRock, liderados pelo antigo director do Banco Nacional Suíço Philipp Hildebrand, apresentaram uma proposta na reunião anual dos banqueiros centrais em Jackson Hole, Wyoming (EUA), em Agosto de 2019, para uma reestruturação económica que foi efectivamente implementada em Março de 2020. Reconhecendo que os banqueiros centrais estavam a ficar sem munições para controlar a massa monetária e a economia, o grupo BlackRock argumentou que era tempo do Banco Central abandonar a sua tão apregoada independência e juntar a política monetária (“zona” própria dum banco central) com a política fiscal (“zona” do legislador). Propuseram que o Banco Central mantivesse uma “facilidade fiscal de emergência permanente” que seria activada quando a manipulação das taxas de juro deixasse de funcionar para evitar a deflação. O mecanismo seria activado por um “perito independente” nomeado pelo Banco Central.

Isso, lembramos, em Agosto de 2019. Poucos meses depois, eis que milagrosamente aparece a crise da COVID-19, a oportunidade perfeita para implementar a proposta nos Estados Unidos, sendo a própria BlackRock a encarregada da sua administração. Em Março de 2020, foi-lhe adjudicado um contrato ao abrigo do Coronavirus Aid, Relief, and Economic Security Act (CARES Act) para a implantação de um fundo de 454 biliões de Dólares, criado pelo Tesouro dos EUA em cooperação com a Federal Reserve. Fundo que, por sua vez, poderia ser utilizado para fornecer mais de 4 biliões de Dólares de crédito à Fed.

Assim, enquanto o público é distraído com fantomáticos vírus e luta ao racismo, a BlackRock emerge subitamente das sombras para tornar-se o “Quarto Ramo do Governo”, gerindo o controlo do dinheiro a pedido do Banco Central.

Estamos perante uma reviravolta histórica: a Federal Reserve deu à BlackRock o controlo total do programa de compra de Dívida. Com isso, a BlackRock, que é o maior fornecedor de ETFs (Exchange-Traded Fund, um fundo de investimento negociado na Bolsa de Valores), pode comprar os seus próprios ETFs, ganhando o dobro. Olé.

Mas como é que isto aconteceu e quais são as suas implicações?

Das sombras

BlackRock, empresa privada fundada e dirigida por Larry Fink (hebreu) e Robert Kapito (hebreu) em New York, EUA. Receitas em 2019: 14.539 biliões de Dólares. Lucros: 4.484 biliões de Dólares.

A BlackRock foi fundada em 1988 em colaboração com o Blackstone Group, uma empresa multinacional de gestão de private equity (participações privadas) que se tornaria famosa após a crise bancária de 2008-09 por subtrair casas hipotecadas a preços miseráveis e revenda-las a preços exorbitantes. Bom sangue não mente.

A BlackRock aumentou os seus lucros nos anos ’90 e 2000 ao promover títulos garantidos por hipotecas, os famosos subprimes que fizeram ruir a economia em 2008. Conhecendo o negócio dos subprimes a partir de dentro, foi então colocada à frente das estruturas da Maiden Lane da Federal Reserve: as estruturas da Maiden Lane eram “veículos para fins especiais”, isso é, estruturas utilizadas para adquirir activos “tóxicos” (na sua maioria contractos subprimes não comercializáveis) à Bear Stearns e à American Insurance Group, algo que a Fed não estava legalmente autorizada a fazer por conta própria.

No entanto, a BlackRock fez uma verdadeira fortuna com os ETFs, os fundos negociados em Bolsa. A empresa realizou biliões em activos de investimento após a aquisição da série iShares do Barclays Global Investors em 2009. Em 2020, a série iShares, altamente bem sucedida, incluía mais de 800 fundos e 1.9 triliões de Dólares em activos sob gestão.

Os ETFs, como afirmado, são fundos negociados em Bolsa, comprados e vendidos como acções, mas funcionam como fundos de acompanhamento de índices, seguindo passivamente índices específicos como o S&P 500, o índice de referência das maiores empresas dos EUA, sendo também este o índice em que a maioria das pessoas investe. Actualmente, a indústria dos ETFs está em rápido crescimento, controla quase metade de todos os investimentos em acções dos EUA e está altamente concentrada em poucas mãos. O sector é dominado por apenas três gestores de activos dos EUA: BlackRock, Vanguard e State Street, os “Três Grandes”, sendo a BlackRock o claro líder mundial.

Em 2017, os Três Grandes em conjunto tornaram-se os maiores accionistas de quase 90% das empresas S&P 500, incluindo Apple, Microsoft, ExxonMobil, General Electric, Coca-Cola. , Facebook, McDonalds, Deutsche Bank, Procter & Gamble, JP Morgan, Nike, Google, Amazon, Berkshire Hathaway, Walmart, General Motors, Michelin, Saint Gobain, Sanofi, Accor Hotels, Total, Axa, BPN Paribas, Renault, Peugeot, Danone, Bayer, BASF, DuPont, Monsanto… chega? A BlackRock também tem participações importantes em quase todos os mega-bancos e nos principais meios de comunicação social.

E é também por causa desta sua experiência com as estruturas do Maiden Lane e do software Aladdin que, em Março deste ano, a BlackRock “ganhou” a tarefa de desembolsar os fundos da Federal Reserve através de onze “veículos especiais” autorizados ao abrigo da Lei CARES. Tal como as estruturas da Maiden Lane, estes veículos destinam-se a permitir à Fed, que está legalmente limitada à compra de activos seguros garantidos, financiar a compra de activos mais arriscados no mercado.

Blackrock salva BlackRock

O isolamento nacional deixou cidades e empresas em estado de desesperada necessidade de ajuda por parte do governo. Mas, segundo David Dayen no The American Prospect, a partir de 30 de Maio (data do último relatório mensal da Federal Reserve), as únicas aquisições efectuadas no âmbito dos novos “veículos especiais” eram ETFs, maioritariamente propriedade da própria BlackRock. Entre 14 e 20 de Maio, cerca de 1.58 biliões de Dólares em ETF foram adquiridos através do Secondary Market Corporate Credit Facility (SMCCF), dos quais 746 milhões de Dólares, ou seja cerca de 47%, provinham da BlackRock. A Fed continuou a comprar ETFs após 20 de Maio, e os investidores seguiram o trilho, o que tem resultado em enormes fluxos de dinheiro em prol dos ETFs da BlackRock.

ETF em crise

Agora, é importante realçar como, de facto, estes ETFs precisavam de resgate; a BlackRock usou a sua posição muito favorável junto do governo para o conseguir. Os complicados mecanismos e os riscos subjacentes aos ETFs são explicados num artigo do Professor de Direito Comercial Ryan Clements que pode ser encontrado neste link: What Have We Learned So Far About ETFs In The COVID-19 Crisis?, publicado nas páginas do FingRegBlog da Duke University School fo Law. E sim, é um discurso bastante “técnico” e complexo. Mas podemos resumi-lo desta forma:

Os fundos ETFs estão no cerne da crise financeira da COVID-19. Mais de quarenta por cento do volume negociado durante a selloff de meados de Março foi em ETFs. Os ETFs estavam a ser negociados muito abaixo do valor das suas obrigações subjacentes, que desciam na vertical. Alguns ETFs estavam a falhar completamente. Como explicou um artigo de 3 de Maio publicado pelo The National: “A indústria foi finalmente salva pelo compromisso da Federal Reserve dos EUA, em 23 de Março, de comprar […] ETF. Isto proporcionou a liquidez necessária para salvar as obrigações que estavam a afundar-se num mercado sem compradores”.

O Prof. Clements afirma que, se a Fed não tivesse adquirido, uma espécie de “ciclo do destino” poderia ter-se materializado, com a contínua das vendas dos ETFs que teria exacerbado a venda das obrigações subjacentes, e vice-versa, com consequências devastadoras. Ele observa:

Existe uma forma perturbadora de alquimia de mercado que ocorre quando as obrigações ilíquidas e de balcão são transformadas em ETF de liquidez imediata. A “transformação da liquidez” dos ETFs é agora apoiada pelo governo, tal como a transformação da liquidez em títulos garantidos por hipotecas e bancos-sombra foi apoiada em 2008.

Arriscámos um Armageddon bolsístico por causa dos ETFs? Assim parece. Sorte nossa, poucos meses antes a BlackRock, a maior detentora de ETFs, tinha previsto este possível cenário e, poucos meses, depois a mesma BlackRock foi assumida pela Federal Reserve para tratar da compra de ETFs. Casualmente, a BlackRock começou logo a comprar EFTs, 40% dos quais de sua propriedade. Foi mesmo sorte, não há dúvida.

Too Big etc. etc.

A BlackRock conseguiu um resgate sem qualquer debate no Congresso, sem taxas de juro “punitivas” do tipo das impostas aos Estados e cidades que contraíram empréstimos junto do Fundo Municipal de Liquidez da Federal Reserve, sem papelada complicada ou à espera na fila dos empréstimos da Administração de Pequenas Empresas, sem restrições. Safou-se dos problemas sem alaridos, com discrição e, obviamente, com dinheiro não seu, o que é a parte mais divertida.

Poder-se-ia argumentar que esta salvação era boa e necessária, uma vez que o mercado foi salvo de um “ciclo de desgraça” desastroso, tal como os fundos de pensões e as poupanças de milhões de investidores. É a história do costume: Too Big To Fail, demasiado grandes para falir. Empresas privadas atingem dimensões colossais e, ao encontrar problemas, põem em cima da mesa o ultimato: ou alguém ajuda ou aqui vai ser o caos total. E a classe política tem o álibi perfeito: não, eles não querem salvar os privados, mas têm que pagar para o bem comum, o bem de todos nós. De facto, os Too Big To Fail têm uma licença especial, a licença de errar involuntaria e voluntariamente porque afinal chegará o ultimato e com ele o dinheiro público.

BlackRock não é uma excepção. E, embora tenha uma participação de controlo em todas as grandes empresas do S&P 500, afirma não ser “proprietária” dos fundos, actuando apenas como “depositária” por conta dos seus investidores. Cómodo, não é? Mas a verdade é um pouco diferente: BlackRock e os outros Três Grandes dos ETFs votam nas reuniões das empresas: por conseguinte, do ponto de vista da gestão, são eles os proprietários. E, tal como referido numa pesquisa de 2017 da Universidade de Amesterdão (These Three Firms Own Corporate America), em 90% dos casos votam a favor dos gestores das empresas: isto significa que tendem a votar contra as iniciativas dos accionistas, contra o interesse público e em prol dos maiores accionistas (que são eles mesmos).

Numa análise de 2018 intitulada Blackrock – The Company That Owns the World, um grupo multinacional de investigação denominado Investigate Europe concluiu que a BlackRock:

mina a concorrência através da propriedade de acções de empresas concorrentes, esbate as fronteiras entre o capital privado e os assuntos governamentais trabalhando em estreita colaboração com os reguladores, e apoia a privatização dos planos de pensões para canalizar o capital de poupança para os seus próprios fundos.

Daniela Gabor, professora de Macroeconomia na Universidade da Inglaterra Ocidental em Bristol, concluiu, após uma série de debates em Bruxelas, que já não eram os bancos que detinham o poder financeiro, mas os gestores dos activos:

Dizem-nos muitas vezes que um gestor está lá para investir o nosso dinheiro da nossa velhice. Mas é muito mais do que isso. Na minha opinião, a BlackRock reflecte a renúncia do estado-social. A sua ascensão ao poder anda a par com as constantes mudanças estruturais; nas finanças, mas também na natureza do contrato social que une o cidadão e o Estado.

O livro branco BlackRock, de Agosto de 2019, que apresenta a reestruturação económica que foi agora implementada com a BlackRock ao leme, demonstra que estas mudanças estruturais são planeadas e deliberadas.

As raposas no galinheiro

Hoje em dia, a política pública é feita de uma forma que favorece o mercado bolsista, que é considerado o barómetro da economia, embora tenha pouco a ver com a força da economia real e produtiva. Os gigantes fundos de pensões e outros fundos de investimento controlam em grande medida o mercado bolsista, e os gestores de activos controlam os fundos. Isto coloca efectivamente a BlackRock, o maior e mais influente gestor de activos, no lugar do condutor no controlo da economia.

Como observa Peter Ewart num artigo de 14 de Maio (Foxes in the Henhouse)”, hoje o sistema económico:

não é um Capitalismo clássico, mas sim um Capitalismo monopolista do Estado, onde as empresas gigantes são regularmente apoiadas por fundos públicos e as fronteiras entre o Estado e a oligarquia financeira são praticamente inexistentes.

Se os oligarcas corporativos são demasiado grandes e estrategicamente importantes para serem ameaçados pelas leis antitrust, em vez de os salvar, deveriam ser nacionalizados e postos directamente ao serviço do público? Poderia ser uma solução. No mínimo, a BlackRock deveria ser regulamentada como uma instituição financeira importante do ponto de vista sistémico. Melhor ainda, deveria ser regulamentada como um serviço público: nenhuma entidade privada não eleita pode ter tamanho poder sobre a economia. E a BlackRock tem este poder, sem algum dever fiduciário juridicamente vinculativo.

Foi alcançado o tal ponto depois do qual “nada será como antes”: caiu também o último véu, aquele da formalidade. Os privados entram em força na Federal Reserve que, é bom lembrar, gere a moeda mais importante do planeta, o Dólar. Os privados entram e começam logo a utilizar o dinheiro público para fins privados, salvando os bancos de investimento privados e aumentando o lucro deles: tudo isso pode ser feito agora sem burocracia, sem tediosas sessões e justificações no Congresso, sem grandes títulos nos jornais. Nós comuns mortais costumamos passar numa caixa automática para levantar o dinheiro do almoço; BlackRock nem essa fadiga tem que fazer: tornou-se a caixa automática.

 

Ipse dixit.

2 Replies to “Sua Majestade BlackRock, a raposa no galinheiro”

  1. O interesse privado de segmentos dominantes SEMPRE sobrepujaram os Estados, sejam eles reinos, impérios, repúblicas, etc.
    O que estamos vivenciando é uma brutal aceleração deste processo histórico de controle do comércio do capital. E, o mais desastroso é saber que não há qualquer força que possa ameaçar seu desenrolar.
    Não é sem razão que um tal Chaplin insiste em dizer que não existe democracia além da propaganda dos mesmos segmentos.
    Pesquise nas entrelinhas da historiografia e verão que inúmeros reis tinham poder apenas nominal, eufemismo de simbólico/fantoche, no mínimo, sujeitado a uma elite, historiograficamente, sombra. Exemplo? O Senado romano. Patrícios…mas quem eram…

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