Carta Aberta Ao Governo Chinês Deixa Evidente A Hipocrisia Da Grande Mídia

de Daniel Lazare

 

Washington Post, New York Times e Wall Street Journal escreveram carta aberta ao governo chinês instando para que ele reverta sua decisão “prejudicial e inconsequente” de expulsar seus repórteres em meio a epidemia em espiral de COVID.

A carta invoca todos os argumentos usuais acerca de “livre fluxo de notícias e informações fidedignas” em meio a crescente emergência internacional. E, embora clichês, esses modos de pensar são corretos, visto que acesso às mais amplas fontes de informação é com efeito essencial para que o mundo possa superar a crise.

Nada obstante, a carta teria sido muito mais convincente se citados três jornais se tivessem manifestado em 2 de março, quando a administração Trump pôs-se em ação para expulsar sessenta jornalistas chineses que trabalhavam para cinco organizações de notícias que a Casa Branca vê como pouco mais que outfits de propaganda do estado.

(*) outfits – Outfit é organização, especialmente firma pequena. Macmillan

Além disso, teriam fincado pé em terreno mais firme se não tivessem ativamente aplaudido o mais perigoso esforço antimídia de todos, a repressão dos Estados Unidos – U.S. ao serviço noticioso de televisão RT, anteriormente conhecido como Russia Today, que começou em novembro de 2017.

A repressão do RT foi, sob certos aspectos, pior mesmo do que o mccarthyismo, visto que este último pelo menos dizia respeito a algo real e importante, vale dizer, a movimento comunista que controlava aproximadamente quarenta por cento da população do globo e pressionava o capitalismo de todos os lados. Se a classe dominante parecia assustada, pelo menos era pelo fato de estar enfrentando desafio de dimensões sem precedentes.

Desta vez, porém, a ameaça disse respeito a algo inteiramente inventado, isto é, a crença de que a Rússia tinha supostamente usado diversos artifícios de magia negra para induzir os estadunidenses a votar em Trump. O disparate começou em janeiro de 2017 quando Central Intelligence Agency – CIA, National Security Agency – NSA and Federal Bureau of Investigation – FBI “avaliaram” que Vladimir Putin havia interferido na eleição do ano anterior a fim de “solapar a confiança do público no processo democrático dos U.S., denegrir a Secretária Clinton, e prejudiciar a elegibilidade dela” e, no processo, impulsionar Trump. O relatório era inteiramente desprovido de evidência e, no entanto, a imprensa acolheu-o como evangelho. Pior ainda, o relatório de inteligência incluía anexo de sete páginas acusando o RT de proceder a “crítica dos governos de U.S. e do Ocidente, bem como promoção de descontentamento radical,” publicando “numerosos relatos de alegada fraude eleitoral e vulnerabilidades de máquinas de votação nos U.S.,” alegando que os resultados de eleições nos U.S. não eram fidedignos e não refletiam a vontade popular,” e entrevistando candidatos de terceiros partidos que asseveravam que “o sistema de dois partidos dos U.S. não representam os pontos de vista de pelo menos um terço da população e é uma ‘farsa.’”

Imaginem – serviço noticioso estrangeiro tendo a audácia de sugerir que a política dos U.S. tinha falhas! Se jornais como o Times ou Post tivessem o menor indício de respeito por si próprios, teriam morrido de rir daquela hipersensibilidade e mandado a CIA grow a thicker skin(*). Não o fizeram, contudo. Em poucos meses o New York Times advetia que “se há característica constante do RT é profundo ceticismo em relação a narrativas ocidentais e estadunidenses do mundo e defesa fundamental de Rússia e do Sr. Putin” e que, graças a gráficos atraentes e diálogos espirituosos, a rede montou “a mais eficaz operação de propaganda do século 21 até agora, a qual prospera no seio dos climas políticos febris que tomaram muitos públicos do Ocidente.”

(*) grow a thicker skin – Alguém que tem thick skin não se ofende com o que outras pessoas dizem ou fazem. ‘Se você deseja apresentar-se em público, precisará grow a thicker skin [precisará deixar de ser melindroso/deixar de ofender-se facilmente].’ ‘Ela tem bastante thick skin no tocante a críticas [Ela aguenta críticas numa boa].’ Merriam-Webster

Obviamente, pode-se observar que veículos tais como CNN e MSNBC caracterizam-se por profundo ceticismo em relação a narrativas russas e, portanto, qual é a diferença? Mas não seria justo dizer isso, pois todo mundo sabe que os Estados Unidos estão certos e a Rússia está errada, e qualquer comparação dos dois países automaticamente não tem validade, não é certo?

Para não ficar atrás, o Washington Post – slogan oficial: “A democracia morre nas trevas/na ignorância” – publicou não um mas dois op-eds(*) (aqui e aqui) conclamando o governo federal a exigir que o RT se registrasse como agente estrangeiro, medida que a administração Trump cordatamente faria cumprir apenas dois meses depois.

(*) op-eds – Op-ed é escrito que expressa a opinião de alguém, publicado na página oposta à dos editoriais [artigos que dão a opinião oficial do jornal]. Macmillan

Assim, pois, os dois grandes revelaram-se mais agressivos do que a administração Trump em reduzir a diversidade jornalística e em usar o poder do estado para solapar/debilitar/minar competidor estrangeiro. Finalmente, há apenas um mês, o Times publicou artigo de primeira página declarando – esperem pela música agourenta – que a Radio Sputnik, veículo irmão do RT, havia começado a “transmitir a partir de três estações de rádio da área de Kansas City durante o prime drive time(*).” Horror dos horrores, a estação estava bombardeando os habitantes do Missouri com propaganda russa criticando o impeachment, a mídia e o sistema político dos U.S. em geral e informando, nas palavras de um âncora da Sputink, que “as massas de pessoas pobres e trabalhadoras não têm acesso sequer às coisas mais essenciais.”

(*) prime drive time – O horário nobre de drivetime. Drivetime é o período durante o qual muitas pessoas estão guiando seus carros indo ou voltando do trabalho e ouvem rádio, principalmente no período da tarde. Macmillan

De onde é que a Radio Sputnik tirou essa ideia? Todo mundo não sabe que reina igualdade perfeita nos Estados Unidos e que qualquer pessoa que diga o contrário só pode estar a serviço de alguma potência estrangeira?

Na verdade, embora os Estados Unidos nunca se cansem de trombetear sua devoção à Primeira Emenda(*), perdem o controle quando serviço noticioso estrangeiro inverte a situação praticando jornalismo atrevido e irreverente. Querem imprensa livre, o que quer dizer, livre para repetir infindavelmente como os Estados Unidos são perfeitamente maravilhosos. Mas não acreditam em imprensa livre que permita a estrangeiros dizerem o contrário.

(*) Primeira Emenda – Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos. “O congresso não poderá fazer nenhuma lei a respeito de estabelecimento de religião, ou proibindo a livre prática de religião, nem limitando a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou o direito de as pessoas se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações de agravos.” Ver Wikipédia em português e espanhol.

30 de Março 30 de 2020

 

Nota: Os pontos de vista de cada contribuinte não necessariamente representam os de Strategic Culture ou de Informação Incorrecta.

Artigo original: Strategic Culture Foundation

Tradução by zqxjkv0

7 Replies to “Carta Aberta Ao Governo Chinês Deixa Evidente A Hipocrisia Da Grande Mídia”

    1. Não é um artigo de Pepe Escobar sobre a China, é um ensaio, sobre um livro de Kishore Mahbubani, portanto todas as ideias ali mencionadas devem o seu credito a Kishore Mahbubani e não a Pepe Escobar.
      Existe alguma diferença entre um artigo e um ensaio, nomeadamente um ensaio é um texto breve, situado entre o poético e o didáctico, peço desculpa pela intromissão mas como ultimamente me tenho dedicado um pouco a poesia ocorreu-me este breve contributo.
      Mas a recomendação de JF é plenamente válida e agradeço.

  1. A LÓGICA BASE DO PROCESSO DESENCADEADO NO MUNDO
    Os donos do sistema há alguns anos perceberam que a riqueza artificial tornara-se desproporcional a riqueza natural. É aí que está a ferida. E o que eles poderiam fazer para tentar reverter este quadro?
    Reduzir a riqueza artificial, não a deles, é obvio, mas a das populações em geral. Pois, se não fizerem isso, a própria riqueza artificial perderia seu valor. Em paralelo, há as questões geopolíticas. Há um documento oficial do governo alemão de 2012, que neste ano transitou pelo Congresso alemão, que antecipa praticamente o passo a passo do que o mundo está vivenciando. Teremos pela frente, a imposição da Lei Marcial, que remeterá poderes totais aos governantes nacionais.
    O que vamos enfrentar logo ali à frente é um empobrecimento coletivo. E de que forma? O dinheiro passará a ter menos valor. E esse empobrecimento aproximará os que hoje são distantes. Por exemplo, grosso modo, alguém que ganha 20 mil será nivelado ao que hoje ganha 10, o de 10 ao que ganha 5 e assim sucessivamente. E neste novo contexto, o topa tudo reinará.

  2. O mais recente artigo na Rede Voltaire, é extremamente interessante, como habitual.
    O Thierry Meyssan é uma mina.

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