Palavras: Giulio Tremonti

Depois e além do Coronavirus.

Simpatizo com Giulio Tremonti. Reconheço-lhe uma “visão “política, algo raro hoje em dia. Nunca votaria nele porque na realidade é um grandíssimo filho… Ok, é um malandro. Mas consegue ser simpático mesmo sendo uma pessoa que conhece, e bem, o Poder. De facto, é um dos mais importantes políticos italianos, mesmo agora que está na oposição. Frequentador do Bilderberg, do World Economic Forum de Davos, membro histórico do Aspen Institute e da Italy USA Foundation, deu uma entrevista ao site de informação alternativa L’AntiDiplomático, entrevista na qual concentra-se basicamente no post-Coronavirus.

As respostas? Em Marx, Goethe, Leopardi e Thomas Mann

Professor, nos seus livros sempre lançou chaves de leitura tentando prever o futuro, mas sempre numa perspectiva que tivesse em conta todas as variáveis globais. Antes de falar da crise europeia, talvez seja necessário compreender o que se passa na arquitectura financeira internacional que parece ter desmoronado e que procura uma alternativa que se esforça por tomar forma.

Para decifrar o cenário que se nos apresenta e fazer algumas previsões, são necessárias algumas premissas. O sistema de Bretton Woods (1944) manteve-se, apesar de ter atravessado a crise de 1971, até há poucos anos, e baseou-se na fórmula do “Consenso de Washington”, em particular no G7, que era um órgão político baseado em três códigos essenciais. Um código económico: o Dólar; um código político: democracia ocidental; um código linguístico: o inglês. Éramos seiscentos e setecentos milhões de pessoas em torno das quais giravam os outros milhares de milhões.

O sistema do G7 entrou em crise em 2008. A crise financeira determina a sua substituição pelo G20, que não é um órgão político e, em qualquer caso, já não se baseia nos códigos antigos: já não existe apenas o Dólar, já não existe apenas a democracia ocidental, já não existe apenas o inglês. Nas mesas do G20, todos falam com orgulho a sua própria língua.

O velho mundo era o Consenso de Washington e global order, após a crise tem surgido um mundo diferente, dominado pelo conflito entre os EUA e a China. A Europa, por si só, recuou gradualmente até, com o Brexit, perder os mares e transformar-se numa dimensão continental que não foi compensada por um possível alargamento aos Balcãs. Como disse um autor soberanista proibido (Nietsche): “A Europa sem Inglaterra não existe”.

Uma vez que esse sistema entrou em crise, é complexo o surgimento dum novo que tenha em conta o poder crescente, a China – e a Ásia em geral – e a redução do tamanho do Ocidente. Irá surgir, na sua opinião, uma nova ordem mundial baseada num acordo entre as duas grandes potências Washington-Beijing (“um consenso Washington-Beijing”) ou estamos destinados a um cenário de natureza hobbesiana, de perigoso conflito permanente?

O Globalismo Padrão estava escrito numa lógica não muito diferente da que inspirou Bretton Woods em 1944. Bretton Woods teve origem e foi inspirada pelos EUA, mas organizou-se com base num consenso muito amplo. Hoje precisamos de algo semelhante. Na nova geopolítica do mundo deveria certamente estar presente um acordo entre os Estados Unidos e a China, mas certamente não sem todos os outros actores, da Europa à Rússia.

Primeiro a crise financeira de 2008, depois esta crise pandémica tornou clara a fragilidade do mundo global tal como foi construído nos últimos trinta anos, começando com a queda do Muro de Berlim (1989), passando pela Organização Mundial do Comércio [OMC, organização criada com o objectivo de supervisionar e liberalizar o comércio internacional, ndt] em 1994 com a adição das regras, inventadas nos EUA com a segunda presidência Clinton, das finanças mundiais, para chegar em 2001 com a entrada da Ásia (especialmente da China) na OMC.

A primeira crise remonta a 2008 e é fundamental para a compreensão do hoje. Basta ler a OMC para compreender que se trata de um tratado político e não de um tratado económico: tal como os Estados trouxeram as guerras, também o mercado produzirá paz. É na ideologia do mercado que se desenha a deslocação da fábrica mundial para a Ásia, especialmente para a China. É curioso ler hoje como a China fosse vista como um País a ser favorecido porque ainda não estava desenvolvida mas era orientada pelo mercado para a democracia. É nestes termos que vamos para além da velha ordem capitalista, uma ordem que há dois séculos baseia-se nas “riquezas das nações”. A riqueza, mas também as Nações.

Um equilíbrio que rompe-se com a passagem de Libertè, Egalitè, Fraternitè para Globalitè, Marché Monnaie.

Na base desta passagem, com a sua intensidade, velocidade, não estava o pensamento liberal mas sobretudo a Esquerda que, tendo caído o Muro, moveu os seus penitentes derrotados de Moscovo para a City de Londres, para Bruxelas, para Wall Street, traçando assim a Terceira Via. Pessoalmente, sou nostálgico, mas hoje vejo o regresso do velho mundo liberal como era até aos anos ’90. Com os Parlamentos, o Estado de direito e o regresso à nossa Constituição com base num equilíbrio entre diferentes culturas: de Dossetti a Ruini, de Einaudi a Togliatti.

O que acontecerá depois da pandemia?

Após a crise financeira de 2008-2009, foram confrontadas duas visões. Uma deles, a minha, que continuo a defender firmemente, tomou nota do fracasso do mercado e da financeirização da economia e, por esta razão, solicitou a passagem do chamado Free Trade [comércio livre, ndt] onde oferta e procura fazem o preço) para o Fair Trade [comércio justo, ndt]. Free Trade: é o cruzamento entre a oferta e a procura que torna um produto justo em termos de preço. Fair Trade: significa subir ao longo da cadeia de produção do produto. Uma produção que deve respeitar algumas regras fundamentais. Tendo em conta esta visão, o Governo italiano escreveu, juntamente com a OCDE, um projecto de tratado multilateral, o GLS, que foi finalmente votado por unanimidade em Paris, na sede da OCDE. Talvez uma utopia, mas o ponto 4 previa o respeito das regras “ambientais e higiénicas”. Isso significa alguma coisa para si?

Contra o globalismo padrão, o Universo das Finanças opôs-se com o Financial Stability Board: não servem regras para a Economia, apenas algumas regras para a Finanças. Entre GLS e Financial Stability Board ganhou este último, garantindo à globalização mais uma década de desenvolvimento desenfreado, lubrificado pelo financiamento. Hoje restamos a recolher os frutos disso.

Por detrás do Financial Stability Board estava Mario Draghi.

Tenho um vazio na memória. [Tremonti é mesmo um filho de…]

Mas agora todos dizem “nada será o mesmo”. Mesmo esta “confrontação” entre duas visões será repetida e com que resultado?

No Outono de 2016, em Berlim, o Presidente Obama, reagindo à eleição do Presidente Trump para a Casa Branca, afirmou: “Não é o fim do mundo. Mas é o fim dum mundo”. Ele intuiu a fragilidade do mundo globalizado que tinha sido construído nos gloriosos “trinta anos dourados” que nos tinham sido dados pelos “Illuminati”.

Não previu, penso eu, a chegada da crise financeira devido a uma pandemia, mas assistiu certamente à chegada da crise daquele mundo. Neste momento, é difícil separar os efeitos da pandemia daquilo que está a acontecer na economia. O vírus que se desenvolveu em Wuhan seguiu a Rota da Seda e activou processos de reacção que não são fáceis de prever. Digamos que se se ligar uma luz vermelha no tablier do carro, não ficas a olhar para a luz, sai para ver o que aconteceu ao carro. Não é correcto falar de uma genérica “guerra contra o vírus” sem considerar que uma progressiva desglobalização também está a acontecer devido ao vírus.

Sobre o tema da desglobalização e das profecias chegamos ao seu último livro “As Três Profecias”. Notas para o futuro” em que menciona Marx como o “profeta” do nosso tempo, juntamente com Goethe e Leopardi. Tal como na sua carta ao diário Corriere Della Sera citou Togliatti para indicar o caminho a seguir hoje. Alguém poderá pensar que o senhor está mais à Esquerda do que grande parte da Esquerda actual?

Profecia por profecia, a fábrica das profecias encontra-a nas Escrituras: o Paraíso perdido, o Dilúvio Universal com a Arca de Noé, não acreditará na história da serpente e da maçã? As escrituras evocam quebras traumáticas que devem ter ocorrido naquilo a que agora se chama o ecossistema, os fenómenos que alteraram a condição humana. Certamente também os profetas sobre os quais escrevi o livro: Marx, no Manifesto, cumpre a profecia sobre os poderes subterrâneos que o Capitalismo internacional evoca sem poder controla-los; a profecia de Goethe sobre a passagem do real para o virtual, hoje de cogito para digito ergo sum, e sobre a letra de troca mefistofélica com que Faust vende a sua alma ao diabo; a troca de Faust é o antecedente da nota moderna; a profecia de Leopardi [um dos maiores poetas italianos, para mim o melhor em absoluto, ndt] que desce entre os segredos da história e revela o curso circular e não linear das civilizações, a crise de Roma quando esta se torna global: todos tornam-se cidadãos romanos mas ninguém sente-se cidadão romano e é assim que Roma cai.

Marx, Goethe e Leopardi não tinham iPad ou PC, mas compreenderam o futuro de uma forma brilhante, hoje tantas pessoas, com o iPad e o PC não compreendem o presente. O que determinou o triunfo do mercatismo – que é para o Liberalismo o que o bolchevismo é para o Socialismo, ou seja, é uma extremidade conceptual – repito, não foi o pensamento liberal mas sim a Esquerda que mudou-se de Moscovo para a City de Londres, Bruxelas e Wall Street.

Certamente que, ao chegar ao presente, na opinião pública algo mudou. Em comparação com 2008, os chamados banqueiros não gozam da reputação de invencibilidade da época. Se na altura Christine Lagarde do FMI descreveu os banqueiros centrais como “os nossos heróis”, hoje parecem mais desesperados aprendizes de feiticeiros face a um colapso que não conseguem gerir. Como avalia as escolhas dos grandes bancos centrais e que tipo de efeito podem ter nas economias reais a médio e longo prazo?

O futuro pode ser visto em várias linhas: uma linha horizontal, ascendente, descendente e uma linha segmentada. A horizontal: após o lockdown [o isolamento em casa dos cidadãos, ndt] você sai e encontra o mundo como antes. A linha ascendente: tal como as guerras, as crises geram desenvolvimento. A descendente: as crises trazem consigo outras crises. Uma linha segmentada feita de coisas positivas e negativas, de altos e baixos.

Os economistas globais são bastante pitorescos, citando todos os fenómenos em acção pormenor. Talvez o número certo a ter em mente hoje seja 1929, esperemos que não, quando os valores da Bolsa de Valores, infelizmente, se desligam dos valores reais. Esta é a dinâmica mais perigosa, estamos a ultrapassar a escalada da unidade de conta: em poucos anos passámos de biliões para triliões, sem que haja uma relação, uma dinâmica de crescimento subjacente correspondente na economia real.

O que realmente aconteceu é semelhante ao que aconteceu na pintura com a passagem de Picasso das figuras e das formas da natureza para o cubismo sintético. Nos bancos centrais vemos a acção dos modernos Picasso que têm líquidos em vez de sólidos, dívidas em vez de capital, taxas a zero ou abaixo de zero, activando assim um vórtice que tudo aspira para um vazio.

A antiga inflação era causada pela procura salarial. Agora os trabalhadores já não estão lá, estão na China, pelo menos por enquanto, agora há a Amazon. Os Bancos Centrais, em todos estes anos, agiram perseguindo a inflação como um amigo a alcançar e não como um inimigo a evitar. Não tiveram êxito. Espero que a inflação não volte agora, não como inimiga. Como um inimigo devastador, como foi em Weimar. O risco de Weimar, um modelo político trágico, mas talvez não tão longínquo se continuamos como antes. Talvez devêssemos ler não só o Faust de Goethe mas também a “Montanha Encantada”. Um livro objectivamente muito aborrecido, mas com algumas passagens fundamentais: a moeda, nascida como um sinal soberano, tornar-se-á soberana de si mesma até à completa demonização da vida; e depois o que Mann escreveu sobre a incumbente perspectiva de Weimar.

Marx, Goethe, Mann menciona frequentemente autores e referências alemães. A Alemanha do ordo-liberalismo de hoje parece tão distante destes gigantes culturais, mas, no fim de contas, é de Berlim que as regras são ditadas. Não será tempo de outros Países compreenderem que não há mesa de negociações para a Alemanha?

É difícil não falar da Alemanha, com toda a certeza. Mas não é apropriado falar apenas sobre isso. A Alemanha está ligada à França e dispõe de um vasto “pátio europeu”. A ligação com a França baseia-se no Tratado do Eliseu. Se o lermos, apercebemo-nos de que talvez exista algo mais debaixo, não escrito, apesar dos tratados secretos estarem proibidos, mas no eixo do Eliseu gira o pivô do poder na Europa. No meu tempo, mas acredito ainda hoje, antes de qualquer Eurogrupo ou Conselho havia o bilateral entre Alemanha e França… eram educados, antes da reunião com os outros países diziam sempre o que tinham decidido para todos.

A Europa que amávamos era feita de palavras simples: carvão, aço, agricultura… A Itália aderiu à CECA sem ter carvão e aço, mas por entusiasmo. Hoje a Europa, que deveria ser o templo das ideias, a acrópole dos valores, tornou-se uma mesa financeira baseada em acrónimos ilegíveis.

Portanto estará esta Europa condenada ao colapso para o despertar dos povos?

Não é certo que venha a ruir e que o projecto europeu acabe. A América tem atrás dois séculos com uma guerra devastadora no meio, nós temos apenas 70 anos de idade marcados pela crise destes anos, é verdade, mas não há razão para ser catastrófico, basta compreender que o défice real da Europa não é financeiro, é político. Façamos esta experiência: tiremos a fotografia do Tratado de Roma de 1957. Era a preto e branco, mas encontrarão todos os homens que têm gravitas [uma das virtudes prezadas pela antiga sociedade romana. Pode ser resumida com dignidade, seriedade e dever, ndt], tinham feito a guerra, tinha feito a resistência, passaram anos fechados em bibliotecas. Vamos compará-lo com as fotos de hoje. Estão a cores, mas parece ver um grupo empresarial numa viagem-prémio. Vamos fazer uma verificação da experiência? Vamos a um bar ou a uma cervejaria, lugares ainda democráticos, e perguntemos quem é o Presidente da União Europeia. Quem está lá dentro não sabe e não ajuda mostrar-lhes a foto do tipo em questão. […]

 

Ipse dixit.

4 Replies to “Palavras: Giulio Tremonti”

  1. Gostaria muito saber quem é a tal “ESQUERDA” que migrou de Moscou para os maiores antros da picaretagem financeira ocidental…

    1. É a mesma Esquerda que migrou para Wall Street ou a City de Londres. A Esquerda abraçou o mercado do grande capital, seja onde ele for.

        1. Na Europa é a Esquerda progressista. Praticamente toda ela, o difícil é excluir alguém.

          Na América do Sul é a Esquerda de Lula & Companhia, aquela que fez negócios com José Sócrates.

          Peguem num bom motor de pesquisa e procure:
          negócios Sócrates-Lula
          negócios Sócrates-Dilma
          negócios Sócrates-Chaves
          negócios Sócrates-Maduro

          Vai ter muito que ler pois escolhas não faltam. Boa pesquisa.

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