Platão e o mito do ecrã gigante

Há pouco tempo (Fevereiro de 2011 d.C.) escrevi um artigo acerca do Mito da Caverna de Platão. Eh sim, Platão é o meu ídolo. Não, na verdade os meus ídolos são os Genesis. E os Type O Negative. E a Sampdoria. E Plotino. E… Ok: Platão é um dos meus ídolos apesar de nunca ter tocado rock ou jogado na Sampdoria. Dado que o Leitor é preguiçoso e não vai abrir o link do velho artigo, eis o resumo (sempre simplificando ao máximo).

Há uma caverna, no fundo da qual vivem os homens. Na parede de fundo da caverna há sombras, projectadas pela luz que entra da abertura da caverna, abertura que fica mais acima do nível onde vivem os homens. Um dia um dos homens decide ir espreitar donde provém a luz. Com fadiga alcança a entrada e num primeiro momento fica cego por causa da força da luz, depois começa  a distinguir as coisas e entende: a vida, a verdadeira vida e também a liberdade, não ficam no fundo da caverna, que recebe apenas sombras. Ele poderia então voltar atrás, para os homens que deixou lá em baixo, e tentar convence-los da sua descoberta. Mas seria seguro? Não: com certeza não seria ridicularizado, até os homens lá em baixo poderiam mata-lo para conservar a ordem que reina no fundo da caverna.

Platão é simplesmente genial. Há aqui Matrix, há Gurdjieff (“O homem moderno vive no sono; nascido no sono, ele morre no sono”), há a toca do coelho de Alice no País das Maravilhas com séculos de antecedência. Há aqui o nosso presente, agora mais do que antes.

A caverna, profunda e escura, obviamente é o lugar onde nós todos vivemos, um lugar feito de ignorância. As sombras no fundo da caverna são o único espectáculo diário que podemos observar: as sombras não são realidade, são apenas imagens projectadas. A parede da caverna é um ecrã: é a nossa televisão, o nosso smartphone, o nosso tablet. São as ferramentas que toldam a vista e a mente: um muro virtual e omnipresente que não apresenta a realidade como ela é, apenas uma visão limitada e distorcida. Passaram séculos e agora conseguimos multiplicar o fundo da caverna de forma a que as ilusões vivam sempre connosco, nos acompanhem ao longo do dia todo. Ou será “acompanhem-nos”? Mas não há alguém capaz de inventar uma regra para esta coisa? Fogo…

Bom, dizia eu: é aqui que entra em jogo o conhecimento, que depois é o verdadeiro protagonista de todo o Mito. O conhecimento é a ferramenta que permite, não sem fadiga, sair da ilusão para observar a realidade. Não apenas ter uma visão distorcida, mas as coisas como elas são.

Bem gostaria neste ponto dizer que a informação alternativa é o instrumento para alcançar o tal conhecimento. Mas seria ridículo: em parte porque o conhecimento deve necessariamente ser também um processo interior de cada um; em parte porque demasiadas vezes a informação alternativa não é o que parece, não trabalha para abrir os nossos olhos mas atira o Leitor para os braços dos órgãos de comunicação mainstream; e em parte porque, contrariamente ao que se passa com os homens no fundo da caverna de Platão, hoje a verdade está ao alcance de todos, está mesmo aqui ao lado. Já houve pessoas que ao longo do tempo subiram até a entrada da caverna e nós sabemos o que está lá fora, sabemos que tudo isto é um engano. Mas mantemo-nos em silêncio.

Sabemos que trabalhar, estudar, sacrificar-se apenas para obter uma sombra, um objecto, uma mercantilização da felicidade, é um desperdício de vida. Um erro imperdoável. Levar uma vida frenética em nome do lucro vai fazer nos sentir realmente satisfeitos quando formos velhos e pensarmos no nosso passado? Será que a obtenção de objectos tão bonitos como fúteis nos fará sentir verdadeiramente aceites? Será que passar horas a filmar o próprio dia, ou imitar hábitos, guarda-roupa e estilo de alimentação é a chave do sucesso?

Platão já tinha chegado neste ponto há vários séculos ao descrever o Mito da Caverna. O filósofo grego conseguiu descrever o subtil fio que liga a sociedade dele, a helénica da época, e a sociedade de hoje: a incapacidade de ver com os próprios olhos o que é verdade na vida.

Mas Platão tinha entendido algo mais: tinha entendido que muitos entre nós não querem nem ouvir nem ver a realidade. E podem chegar ao ponto de ridicularizar e matar quem pensa de forma diferente. Ou, na nossa sociedade, censura-lo do meio digital, que na nossa sociedade é cada vez mais parecido com um óbito.

Platão tinha entendido que o homem é um animal de hábitos, que tem medo do desconhecido perante o qual quase sempre prefere a ignorância. Porque a ignorância implica um menor esforço; porque o conhecimento requer a coragem de pôr em jogo os nossos convencimentos; e porque não sabemos o que acontecerá uma vez conhecida a verdade. O fundo da caverna, o lugar frio povoado de sombras, pode ser uma mentira, mas é uma mentira que conhecemos, que não requer esforços, que não apresenta grandes traumas, onde tudo será sempre simples e familiar.

O conhecimento pode trazer também dor. Não é simples ter que admitir que a OMS não é um conjunto de boas pessoas empenhadas para a nossa saúde mas sim um grupo de corruptos ao serviço de quem tiver mais dinheiro; não é simples ter que admitir que a NATO não é uma organização de defesa mas uma máquina de guerra; não é simples ter que admitir que não somos nós que governamos o nosso País com a democracia; não é simples ter que admitir que ao comprar o nosso computador financiámos um doido varrido que utiliza as vacinas como armas; não é simples ter que admitir que boa parte do que foi nos ensinado e que acreditamos é falso. Tudo isso custa. É por esta razão que muitos preferem continuar a fixar o grande ecrã no fundo da caverna com as suas sombras.

Platão é o Morpheus que oferece a escolha entre os dois comprimidos: a via do conhecimento ou aquela do cómodo hábito. A escolha é apenas nossa. Dum lado a grande ilusão que torna todos escravos: é só ficar no fundo da caverna e continuar a ser escravo. Do outro lado a pesquisa do conhecimento, que não é simples, que implica paciência, erros e reviravoltas. E que não tem fim. Mas que pode oferecer a realidade. Não me parece pouco.

Última nota: Platão viveu em Atenas entre o V e o IV século antes de Cristo. Após 2.400 anos ainda estamos aqui com na nossa frente os comprimidos vermelho e azul. Quem que disse que o homem é o ser mais inteligente do planeta?

 

Ipse dixit.

13 Replies to “Platão e o mito do ecrã gigante”

  1. Acredito que a questão nem seja mais ver o sol fora da caverna e sim nos soltarmos das correntes que nos prendem dentro dela. Acredito que muito dos leitores e inclusive o max, já sejam de idade mais avançada, para nós os jovens, o que nos resta é encontrar uma forma de se sentir confortáveis dentro desta prisão. E uma pitada de budismo para aceitar a roda do sofrimento.

    LG.

    1. O conhecimento ou o cómodo habito ? O que vejo mais é o cómodo hábito de dizer que se procura o conhecimento , e mesmo possuindo algum conhecimento ( ou fingindo que o tem) dizem querer-se libertar de um sistema, para irem a correr entregarem-se noutro temporariamente menos tirânico ( ou não) que aquele onde estão , um literal saltar do lume para a frigideira ( mas nunca para fora da fogueira)
      É lamentável viver num momento de abundância de fontes de conhecimento e viver rodeado de energumenos que continuam a procurar a salvação em ideologias hediondas e bizarras masturbando-se intelectualmente perante a visão do seu líder, do seu sistema ou a sua crença dominarem o mundo; incapazes de ver que eles são a sua única salvação deles mesmos e que tudo o que transferem em veneração aos seus lideres e aos seus sistemas de eleição são uma amputação do seu próprio carácter… até nada restar…
      Amedrontados com uma alegada derrota iminente que apenas é derrota e é iminente dentro do seu doente cérebro, desconhecedores de que cada dia de luta é uma vitoria.
      Uma escravatura da humanidade por uma reduzida facção da mesma humanidade não ira suceder porque os opressores são inteligentes… mas porque a maioria vive hipnotizada com uma qualquer intoxicação ideológica ou uma apatia cronica.

      Neste aspecto Platão tinha a vida facilitada pois no seu tempo não havia os falsos buscadores da verdade.

      1. P. Lopes, você está uma camada adiante do meu pensamento, senhor fala de mobilização social, enquanto eu vejo o ser humano doente, se sentindo incapazes de promover mudança, apenas observando o desmonte do mundo. A força jovem não possui poder revolucionário, não vê saída, uma geração “aceita que dói menos”… Mas minha impressão de mim e da minha geração pode estar equivocada, e assim espero.

        1. Quem quiser aceitar porque “doí menos” …Aceita! Quem se quiser revoltar …Revolta-se ! Existem muitas mais formas de lutar do que de se acomodar. Lutar contra o sistema é em muitos casos simples se feito por muitos, o lamentável e que de nada serve lutar contra um “sistema” para implementar outro idêntico mas com outros slogans ! O ser humano tem uma necessidade cronica de seguir lideres, modas, correntes na tentativa de preencher um vazio que a sua preguiça de pensar lhe provoca. Por isso o termo ” opinion maker” se tornou popular, basicamente é adoptar as ideias de outros em vez de pensar por si e correr o risco de ser ostracizado pelos seus pares, e a necessidade de aceitação social a isso obriga as mentes fracas.

    2. Baixar os braços não é nem nunca foi solução, a vida é feita de desafios e experiencias, boas ou más todas têm valor e completam a vida Humana.
      Entender Platão não é facil…o Sol…, a luz que nos ilumina tambem traz a sombra a escuridão, a eterna dualidade que permeia a vida Humana.

  2. E não é simples constatar que somos nós próprios que construímos a nossa caverna, aquela caverna onde gostamos de estar, porque percebemos que a mentira tem um aspecto melhor que a realidade, mesmo sabendo-se que esse aspecto é enganador, como o bife do Cypher em The Matrix.

  3. Ser autonômico dá trabalho. Fora a ilusão de mudar o que está “fora”, mudar o “mundo” e nunca mudar. A nossa arrogância é a nossa derrota, não nossa cegueira, pensamos em mudar o mundo quando mal deixamos nossos próprios hábitos ou fazemos nossas próprias escolhas.

  4. Conhecer a realidade já é um parto difícil. Pior é tendo a realidade por conhecida, ela dar um salto a frente e nos deixar perdidos. E nós de novo no escuro…e nos sabendo ainda uma vez mais na caverna.

  5. Enquanto metáfora, muito válida. Mas sua representatividade é insuficiente em 2 aspectos fundamentais. 1º, que para mudar algo, não bastaria alguns poucos saírem do fundo da caverna, mas ao menos uma parte significativa da civilização conjuntamente; 2º, que enxergar a realidade é muito mais complexo e trabalhoso do que simplesmente enxergar o mundo com cores mais brilhantes (até pq nem tudo que reluz é ouro), o que faz com que nos convencemos da impossibilidade de superar, não uma caverna, mas um abismo… Ou forma-se um novo homem com novos paradigmas ou nada feito…

  6. Buscar a verdade beira o fantástico e até mesmo a hipocrisia. Se nem mesmo a verdade que está dentro de cada um de nós é buscada, como buscar a verdade que “está lá fora”?
    E como identificar a tal verdade, se as narrativas e o conhecimento são peneirados, conforme os interesses jogados?
    Os Snowdens da vida são cometas, e mesmos eles, no máximo, mostram fragmentos da verdade, que se perdem entre tantas verdades difusas. Buscar a verdade é quase como buscar o infinito. Desista!
    A esperança estaria noutro caminho. O caminho do ENTENDIMENTO DOS PROCESSOS QUE NORTEIAM AS RELAÇÕES DE PODER E DOMINÂNCIA ENTRE OS HOMENS.
    Se fôssemos movidos por outros valores, seria o suficiente para mudarmos o status quo civilizatório. Mas vivemos sob o império do capital, principal valor que nos move, que o corrompe, e pior, não manda aviso, e ainda pior, passa a vida toda à tiracolo, despercebido…
    Sempre digo, quer saber teu verdadeiro tamanho existencial? Pergunte-se: O que faço e o que penso que não envolva direta ou indiretamente o dinheiro? O que sobra são cinismos, vaidades, incapacidades, medos, distrações, tolices…
    Portanto, esqueça a busca da verdade, pq a verdade é uma “verdade” num mundo com valores corrompidos.

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