Em louvor ao Euro

Mario Draghi já não é o Presidente do Banco Central Europeu. Uma pena, sem dúvida. Com Draghi, a moeda única alcançou níveis de esplendor nunca antes imaginados.

Adoremos: o Euro, esta maravilha. Pensem nisso: antes foi emitida a moeda e só depois começou a tentativa de criar uma zona onde pudesse ser utilizada. Na prática, o prédio foi construído a partir do telhado. Genial. Com estas premissas, era óbvio que a chamada “moeda única” tivesse tudo para ser um sucesso. E que seja um sucesso está fora de questão: hoje é possível ganhar o nosso ordenado português em Euro e depois ir para outro País com a mesma moeda, como o Luxemburgo, e fazer aí o morto de fome. Qual outra moeda permite isso? Realmente é uma moeda única.

Claro, também o Euro teve os seus problemas. Mario Draghi no final de seu mandato foi festejado como o salvador da União Europeia e da moeda única e não há dúvida de que fez tudo para evitar o colapso do Euro e que conseguiu. Deus seja louvado. E paciência se a economia real não ganhou nada com isso: nos dez anos seguintes à crise de 2007, de acordo com dados do Banco Mundial, o PIB mundial aumentou 22%. Tudo graças à China e à Índia? Não, na verdade, os EUA cresceram 29%. E a Europa da UE e do mágico Euro? Em dez anos cresceu em 1.7% .

A Matemática explica: 22% – 1.7% = 20.3% de diferença. Mítico Euro. Estados Unidos? 29% – 1.7% = 27.3% de diferença. Estratosférico Euro.

Pensamos nisso: a Europa tem à sua disposição ciência e tecnologia, tanto quanto a América e a Ásia, e aqui também trabalha-se em média oito horas por dia. Americanos, japoneses e chineses tiram menos férias e têm menos meses de licença-maternidade, aposentando-se alguns anos depois. Ou seja: conseguem ser ainda mais escravos do que nós. Mas uma diferença tão abismal no crescimento económico e numa década não pode explicada pelas horas trabalhadas, que na Zona Euro “pesam” apenas 10 ou 15% menos no total. De qualquer forma, essa diferença existia mesmo vinte anos atrás, quando o crescimento europeu era comparável ao dos demais Países do OCDE (a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico). Então, o que aconteceu entretanto? Aconteceu isso: as políticas de crédito e de deficit público que o resto do mundo adoptou não foram implementadas na Europa. Doutro lado: não precisamos, temos o Euro, chega e sobra.

Aliás, na Zona Euro foi decidido tomar como unidade de medida a questão do deficit para distinguir entre bons e maus. Tens um deficit que ultrapassa 3% do PIB? Então és mau, um meio criminoso. O teu deficit fica abaixo de 3%? És virtuoso, um exemplo para as futuras gerações. Tens um deficit abaixo de 3% mas a tua economia não arranca? Acontece, provavelmente é culpa das estrelas ou do aquecimento global, do Euro de certeza que não é.

Mario Draghi

Infelizmente há pessoas obtusas que continuam a olhar para o vizinho, onde a relva parece sempre mais vede. Pegamos nos Estados Unidos: o PIB aumentou de 15.000 para 19.300 biliões, enquanto o deficit público aumentou de 10.000 para 21.000 biliões, mais do que o dobro em dez anos. E Washington continua com um deficit público de 1.000 biliões por ano. Uma vergonha. É verdade que no geral os cidadãos têm um rendimento bem maior do que os europeus, mas estão a ver a figura? Nós, aqui, temos o deficit abaixo de 3%; até podemos ligar para os nossos emigrantes que lá moram e dizer “sim, tudo bem ,estás melhor, mas eu tenho o deficit abaixo do 3%, tu não”. E são satisfações.

Nos EUA podem marimbar-se do deficit porque têm os Petro-Dólares? Então pegamos na China: aí a dívida total (incluindo aquela de empresas e famílias) era inferior a 10 mil biliões e em dez anos explodiu para mais de 40 mil biliões. E agora estão envergonhadíssimos: se atrás do balcão o Leitor encontrar um chinês que chora copiosamente, já sabe a razão.

E aqui apareceu a política de Draghi no Banco Central Europeu: o BCE expandiu o orçamento em quase 3.000 biliões. Um toque de mestre porque esses biliões não foram utilizados para investimentos (por exemplo abatendo o nível de taxas e impostos), teria sido demasiado lógico, algo que qualquer um poderia ter feito e não podemos esquecer que as geniais regras de Bruxelas impedem isso; pelo que, os 3.000 biliões foram utilizados para comprar Dívida Pública, directa e indirectamente, sobretudo entregando-os aos bancos, que bem precisam de dinheiro contrariamente a cidadãos e empresas. Alias, é sempre uma boa norma emprestar dinheiro a quem pode cria-lo a partir do nada, faz muito fino.

Resultado: os 3.000 biliões serviram apenas para reduzir os rendimentos de todos os Títulos de Estado a zero (ou abaixo de zero), mesmo aqueles gregos. É isso algo que prejudica quem poupa? Decididamente sim: hoje depositar dinheiro num banco ou investi-lo num Título de Estado significa suportar custos sem ganhar nada em troca. Mas por qual razão alguém poderia desejar ganhar algo ou até poupar? Ter um Euro no bolso é já o melhor dos prémios e uma garantia para o futuro também.

Aliás, pensando bem, esta manobra de Draghi tem sido propedêutica: se atiras para zero o rendimento dos Títulos, quem quiser economizar deve gastar um pouco menos para compensar o rendimento que já não recebe das poupanças ou dos investimentos. Pelo que: o Euro ensina a fazer as contas e a viver com frugalidade. Na prática: uma moeda ambientalista. E ensina também outra coisa: jogar em Bolsa é perigoso, porque com taxas artificialmente tão baixas, fica mais fácil endividar-se para quem trabalha na especulação.

No resto do mundo, a crise foi encarada com políticas demasiado óbvias, monótonas, num penoso deja-vú: aumento dos deficits e do crédito para fazer circular mais dinheiro com todos os meios, mesmo entre famílias e empresas. Impostos cortados, gastos aumentados e bancos que foram pressionados a aumentar o crédito. Medidas sem fantasia, tão óbvias que até entristecem. As estatísticas globais da Dívida Pública e Privada mostram um enorme aumento da dívida empresarial, especialmente nos EUA e na China. Por qual razão? Porque as empresas destes infelizes Países entenderam que a dívida é basicamente moeda que circula e, se você quiser aumentar o dinheiro que circula, então precisa de aumentar a sua dívida. Ninguém entende melhor isso do que os japoneses e os chineses. De facto, como sabemos, o Japão tem uma Dívida Pública monstruosa e a China empurrou a economia global nos últimos dez anos, aumentando a dívida privada em 30 mil biliões! Conseguem ver a que o ínfimo nível alcançado por estes Países? Não admira que estejam à beira da falência. Ou quase.

Para boa sorte (ou será vontade dos Deuses?) o BCE não permitiu que o Deficit aumentasse e nem pressionou os bancos para conceder empréstimos às empresas: imprimir dinheiro com Draghi reduziu apenas as taxas dos Títulos de Estado (atenção com o spread, o terrível spread!) a zero ou abaixo de zero. Uma coisa nunca suficientemente louvada, que nunca aconteceu em 4 mil anos de história: o Estado que na prática diz aos cidadãos “não invistam comigo porque vão só perder dinheiro”. Esqueçam o Che ou Mao, esta é verdadeira revolução.

Só um manípulos de visionários poderia projectar algo assim e, como sabemos, o futuro é dos visionários, como Elion Musk com os seus carros que custam um dinheirão e que desmaiam depois de 400 quilómetros (300 com ar condicionado ligado). A diferença entre o resto do mundo que cresce 22% e a Zona Euro que cresce 1% demonstra toda a razão de quem quis ousar: somos a área com crescimento populacional zero ou negativo, porque não gostamos de demasiadas pessoas, cada um tem que ter o seu espaço bem amplo e isso só pode ser conseguido com uma política económica que funciona como uma gaiola financeira que sufoca a economia e reduz o emprego (doutro lado trabalhar é cansativo). E, mais uma vez, a educação: a Zona Euro sacrifica as perspectivas das próximas gerações porque é demasiado simples viver com o dinheiro dos pais, que aprendam estes jovens a respeitar as “restrições financeiras e orçamentais”, basta de sexo droga e rock’n’roll, que trabalhem (sempre que consigam um emprego, óbvio), acabou o tempo da sopinha pronta, quem quer algo tem que trabalhar (meritocracia) e até pode não ser suficiente (azar).

O resto do mundo não quer saber de deficit abaixo de 3%, ignora os vínculos orçamentais? Também Sodoma e Gomorra ignoravam as leis do Senhor, depois sabemos como acabou. Existem aqueles que usam mais a Dívida Privada como os chineses (mas com bancos controlados pelo Estado), aqueles que usam a Dívida Privada e a Pública como os EUA e o Reino Unido, e aqueles que usam Dívida Pública como o Japão. E a propósito de Japão: os japoneses podem agora vangloriar-se com um aumento dos rendimentos per capita de cerca 7% nos últimos 10 anos, contra uma queda generalizada na Europa, mas isso só demonstra quão ligados estão aos bens materiais em detrimento dos verdadeiros valores (em particular do valor de 3%). Só uma palavra: tenham vergonha (que depois são duas palavras).

Christine, como Adam

Christine Lagarde

A política do BCE de Draghi impediu que a Zona Euro desmoronasse, mas agora é tempo de preocupação. O novo Presidente da instituição é Christine Lagarde, uma senhora francesa com um merengue em cima da cabeça. A simpática Christine já foi chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), uma organização de caridade que costuma espalhar alegria pelo mundo fora, e já recebeu a Ordem do Mérito Agrícola, pelo que parece a pessoa certa no lugar certo.

Todavia, durante os últimos anos, teve pontos de vista críticos perante a rigidez da austeridade que foi imposta. E isso preocupa mais do que o seu merengue: todo o árduo trabalho de Draghi pode ir pelo cano abaixo? Para nos consolar, lembramos como se define a mesma Christine nas páginas da revista hiper-cultural Vogue: “Como Adam Smith, isto é, liberal”. E isso consola, de facto: o espectro duma pessoa com cérebro a chefiar o BCE está arrumado.

Mas seria errado pensar que a moeda única tenha tido prestações fanstasmagóricas apenas no passado. O futuro é risonho também.

O diabólico plano de Scholz

Há alguns dias, espalharam-se rumores de que a Deutsche Bank teve nos últimos seis meses, teve uma hemorragia de 4 biliões de Euros e encontrava-se num estado de falência técnica. Obviamente é falso: nenhum banco que utiliza a moeda única entra em sofrimento. Mas a ocasião foi explorada pelo Ministro das Finanças alemão, Olaf Scholz, para lançar uma proposta inovadora, o próximo grande passo para um futuro cada vez melhor: os bancos de todos os Países, explica Scholz, devem tornar-se virtuosos; os Títulos de Estado dos Países mais endividados não podem ser tratados como “risco zero” nos orçamentos destes bancos; e cada banco deveria criar fundos “para cobrir os riscos da dívida soberana”.

Qual seria o resultado desta política? Uma desvalorização imediata dos activos dos bancos de vários Países europeus. E o que isso significa? Significa que quem ainda possui alguma liquidez poderia comprar aqueles bancos ou aqueles activos (imóveis, empresas, etc.) a preços mais baixos do que os actuais. Mais: dado que o sector bancário não é um compartimento estanque, a desvalorização dos Títulos de Estado nos orçamentos bancários teria consequências na Bolsas, com subida do spread e vários Países a entrar numa crise repentina.

Fonte: Zero Hedge

Parece um plano muito mal pensado? Não, mais uma vez é propedêutico (quem não respeita as regras tem que sofrer) e demonstra a típica coragem de quem tem a clara noção de ter a melhor moeda do mundo. É por isso que Angela Merkel apoia o plano de Scholz (havia dúvidas?). De repente, o Deutsche Bank não seria mais a ovelha negra do sistema bancário europeu, haveria novas ovelhas, porque no paraíso do Euro é a união que faz a força.

É esta união que faz de fundo para a proposta final de Scholz: a garantia europeia sobre os depósitos dos cidadãos até 100 mil Euros. Alguém mais malicioso poderia pensar: “Olha só a Alemanha que agora que tem a Deutsche Bank em apuros pedem o dinheiro de todos para salvaguardar as poupanças dos cidadãos alemães! Nada disso aconteceu quando em dificuldades eram os bancos da Grécia…”. Sim, não aconteceu com a Grécia antes e acontece agora com a Alemanha. Mas acreditem: é um mero acaso, a empatia é o lema da Zona Euro. Como demonstra o caso do MES.

O MES

Última mas não menos importante prova da potência do Euro. A Comissão de Ursula Gertrud von der Leyen (a Presidente da Comissão Europeia após a saída do sommelier Junker) decidiu modificar o mecanismo do MES, o suposto Mecanismo Europeu de Estabilidade, algo que deveria impedir que Países do Euro entrem em dificuldades por causa dos endividamentos orçamentais.

A novidade é a seguinte: todos os Países deverão apoiar o fundo (que significa: pagar) mas, em caso de crise, os Países mais endividados não poderão pedir ajuda. Primeiro deverão reduzir a sua dívida e só depois poderão receber o apoio do MES.

Traduzindo: um País com uma elevada Dívida não pode utilizar todos os fundos disponíveis para abate-la, mas deverá sempre destinar algumas dezenas de milhões (dinheiro do contribuintes, claro) para o MES. Em caso de dificuldades, o MES não dá um tostão e o País é obrigado a reduzir a Dívida cortando nas despesas, o que significa primariamente cortes nos serviços públicos e privatizações. Assim, os contribuintes pagam duas vezes: antes com os fundos para o MES, depois sob forma de uma redução nos serviços, cortes nos salários da função pública, etc..

Qualquer pessoa normal acharia isso uma bestialidade absoluta. Mas no mágico mundo do Euro este chama-se… olhem, não sei. Talvez seja mesmo uma bestialidade.

 

Ipse dixit.

One Reply to “Em louvor ao Euro”

  1. Só quem é doido(a) varrido(a) ou mal-intencionado(a), é que entrega a sua soberania monetária a terceiros, e é curioso que não existe (nem nunca existirá) uma política económica comum aos países que fazem parte da união europeia (ue), de maneira a corresponder às suas necessidades básicas como o trabalho, educação, saúde, e cultura.

    Experimentem perguntar a familiares ou conhecidos quais as vantagens e melhorias que o «euro» trouxe nos seus orçamentos e qualidade de vida, e terão duas respostas: «nenhuma» ou então o silêncio por parte da pessoa inquirida.

    Depois temos uns seres pensantes (que fazem parte da minoria que beneficia deste esquema corrupto e desigual apelidado de «euro»), que dão a seguinte resposta: «o euro é benéfico porque agora posso ir a vários da Europa e não preciso de cambiar a moeda».

    Ou seja, a maior barbárie que pode existir e já existiu para um cidadão Europeu na óptica destas criaturas, é ter de ir a um balcão trocar escudos por pesetas (isto a título de exemplo); já desemprego em massa e pobreza generalizada por uma moeda única falida, são feijões.

    «…quem quer algo tem que trabalhar…»

    Pelo menos em Portugal isso não se aplica, pois o trabalho, para além de praticamente não existir, é negado ao cidadão onde até para empregado de balcão se entra por cunha.

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