As escolhas do povo

No artigo anterior vimos o resumo da saída de Evo Morales. Tudo certinho, tudo relatado pelos órgão de informação e pelas páginas de informação alternativa. Mas não é que falta algo? Por exemplo: onde fica o povo nisso tudo?

Muitas vezes, nestas revoluções da América Latina, tudo costuma ser reduzido ao confronto entre os líderes locais e as forças apoiadas pelos norte-americanos, como se os cidadãos não existissem e não tomassem parte nos acontecimentos. Ainda nestas horas, as páginas de contra-informação falam do regresso de fascismo com marca EUA, realçam as alegadas mentiras da imprensa internacional e o papel do exército. Mas ignoram por completo os cidadãos: a Bolívia parece ser habitada por Evo Morales, as forças armadas e os revoltosos, mais ninguém. Uma visão bastante limitada e longe da realidade: a Bolívia conta com cerca de 10 milhões de habitantes e, até poucos anos atrás, a maioria deles apoiava Morales.

É aqui que as páginas da Esquerda apresentam uma explicação implícita: os cidadãos foram submetidos a uma lavagem cerebral por parte dos media. Portanto, não sabem o que se passa, não entendem e os media retiraram-lhes qualquer capacidade de reacção. Esta é uma interpretação que tende a defender sempre o povo excluindo a priori qualquer sua responsabilidade nos acontecimentos negativos. É como se o povo soubesse sempre quais as escolhas melhores e se não faz o que está correcto é só porque foi impedido, foi desviado por poderes ocultos.

Portanto: um povo perfeito, incrivelmente sábio e apenas vítima inocente de forças que operam nos bastidores (casos da Bolívia e, em parte, do Brasil). Vice-versa, quando o povo ocupa as ruas contra o poder de Direita, então é o triunfo da justiça porque os media não conseguiram distorcer as mentes dos cidadãos (ver casos do Equador e do Chile).

Como é evidente, trata-se duma leitura infantil, que pode satisfazer cérebros profundamente politizados mas que não consegue descrever uma realidade que é bem mais complexa. Por que não admitir que os cidadãos podem mudar de ideias? Por que não reconhecer que mudanças na condição económica, especialmente quando acompanhadas por erros de governação, podem variar as escolhas políticas dos eleitores?

Pegamos no caso do Brasil. Nas eleições presidenciais de 2006, a diferença entre o candidato da Esquerda, Lula, e aquele da Direita, Alckmin, foi aproximadamente de 20.700.000 de votos; nas eleições de 2010, entre Dilma Rousseff e José Serra, foi de 12.000.000; nas eleições de 2014 (Dilma Rousseff e Aécio Neves) foi de 3.500.000; finalmente, em 2018, a Direita de Bolsonaro ganhou com uma margem de mais de 10 milhões de votos.

Resumo dos resultados do PT em comparação com a Direita:

  • 2006: +20.700.000
  • 2010: +12.000.000
  • 2014: +  3.500.000
  • 2018: – 10.000.000

Pelo que, a vitória de Bolsonaro foi a confirmação duma tendência que tinha claramente dominado a cena durante os últimos 12 anos. O caminho era claro, o desfecho em favor do candidato da Direita era apenas uma questão de tempo. Mas, após a derrota, os apoiantes da Esquerda preferiram fechar os olhos e concentrar-se apenas em pormenores da última hora, como o “golpe” contra Dilma ou as acusações contra Lula, ignorando o quadro geral e sem tentar encontrar uma causa maior. A única explicação oferecida perante a perda de 31 milhões de votos numa dúzia de anos (uma média de 2.5 milhões de votos perdidos por ano, é obra) foi apenas a lavagem cerebral operada pelos media.

Mas o que tinha acontecido no Brasil durante aqueles 12 anos? Muitas coisas e uma em particular: fatias cada vez maiores da população deixavam a condição de pobreza para aproximar-se da assim chamada “classe média”. E as exigências da classe média não são as mesmas dos indigentes. Perfeitamente lógico, portanto, que haja uma transferência de votos a partir das camadas que querem subverter o sistema para áreas onde é pedida estabilidade, maior segurança e investimentos em prol do sector privado.

Isso significa que os eleitores votam “com a barriga”? Sim, exactamente. Uma barriga vazia empurra os cidadãos para as ruas (Equador, Chile) porque pouco ou nada têm a perder; uma barriga cheia procura continuidade, é mais conservadora.

Foi isso que aconteceu na Bolívia também? Não tenho dados suficientes para corroborar tal hipóteses, mas aquele indicador da pobreza que passou de 60% para 36% parece-me significativo. Afinal, onde estavam as massas dos cidadãos que deveriam ter ocupado as ruas para defender Evo Morales? Onde estavam os cidadãos de Vinto (Cochabamba) quando a Presidente da Câmara era arrastada pela rua, sujada com tinta e espancada pelos opositores? Provavelmente estavam onde tinha ficado a maioria dos brasileiros após a eleição de Bolsonaro: em casa. Fala-se dos “núcleos de assalto fascistas” e é bem provável que tenha havido isso nas ruas bolivianas. Mas onde estavam os “núcleos em defesa do Socialismo”? Não havia? E por qual razão?

É claro que o papel dos media não pode ser esquecido, mas seria um erro interpreta-lo como único responsável dos revés. Sinceramente: conhecem alguém que passou da Esquerda para Direita porque assim disse a televisão? Alguém que tenha dito “Olha, vi isso na televisão, basta, já não sou de Esquerda e vou votar pela Direita”. E mesmo que isso possa acontecer (afinal há pessoas para todos os gostos), não passam de casos pontuais, de pessoas que não constituem o núcleo duro da Esquerda: acreditam mesmo que mais de 30 milhões de pessoas abandonaram o PT e votaram em Bolsonaro porque assim tinha dito a televisão? A manipulação mediática não é uma exclusiva sul-americana: é algo que temos aqui também, na Europa, tal como existe em outras partes do mundo. E acerca do facto que exista não pode haver dúvidas. Mas raramente consegue criar uma situação a partir do nada (algo possível só no caso de eventos pontuais): para obter o efeito desejado, sobretudo no médio e longo prazo, precisa que já existam na sociedade sinais de desconforto.

Emblemático, por exemplo, quanto está a acontecer em Italia. Toda a imprensa e todas as televisões, sem excepções e com a colaboração dos máximos cargos institucionais, gritam ao perigo fascista contra o futuro candidato da Lega, Matteo Salvini. O qual, apesar disso, continua a subir em flecha nas sondagens, sem parar. A razão? É uma razão não tão distante das exigências da classe média brasileira: uma boa dose de conservadorismo, a necessidade de maior segurança e de defesa dos rendimentos alcançados. Um caso interessante porque demonstra como, quando não existem situações objectivas que a possam apoiar, a manipulação mediática não apenas falha mas parece obter o efeito contrário. E nem é o primeiro caso: nas eleições do ano passado, o Movimento Cinque Stelle foi o partido mais votado no País apesar da feroz campanha mediática (Lega e Cinque Stelle não têm santos padroeiros no mundo dos órgãos de informação).

Também o papel dos Estados Unidos é sobrevalorizado. Claro, Washington apoia os revoltosos da Bolívia tal como apoia todas as forças “democráticas” no mundo: esta não é novidade nenhuma. E de certeza que a queda de Morales sem dúvida é fonte de satisfação. Mas imaginar que os EUA criaram a situação de desconforto na Bolívia a partir do nada seria um outro erro: se fosse tão simples, não se entende como é que a China ainda esteja de pé. Washington e parte dos media da Bolívia tiveram apenas que alimentar, e eventualmente exasperar, um desconforto já presente no seio duma sociedade em fase de mudança. Vice-versa, falha qualquer tentativa de operar no mesmo sentido num País onde não há condições de desconforto social. Na China, o nascimento e a criação da classe média local está a ser gerido e supervisionado atentamente por parte do Estado. Claro, isso tem um custo em termos democráticos e as restrições sofridas pela população chinesa não são coisa pouca. Ma Pequim entendeu que deixar as portas abertas ao “livre mercado” significaria o fim do regime e escolheu explorar as oportunidades oferecidas pelo “livre mercado” ao mesmo tempo em que blindava o País.

Pelo que, é tempo de abandonar a imagem do “povo bom” que tudo sabe e que nunca erra, uma imagem muito querida à Esquerda mas fundamentalmente errada. O “povo bom” não consegue resistir aos chamarizes do “livre mercado”, gosta deles, deseja isso. E, uma vez obtidos os benesses, não quer voltar atrás e já nem quer saber daqueles que ainda estão em dificuldades: é a voz da barriga que fala mais alto.

É por esta razão que, no meu entender, qualquer tentativa de criar uma sociedade melhor é destinada a falhar se for actuada no âmbito do “livre mercado”: este tem um poder de atracção sobre os indivíduos que ultrapassa grandemente os outros valores. Os princípios da Esquerda clássica conseguem vingar apenas quando as condições económicas compactam a maioria da população contra a ordem constituída que oprime: uma vez ultrapassa esta fase, aqueles mesmos princípios ou tendem a ser gradualmente abandonados em favor da defesa do bem estar adquirido ou são mantidos com a força num regime autoritário.

Tirem da cabeça a ideia de que a força do “livre mercado” resida apenas no poder de manipulação dos órgãos de informação ou nos apoios da CIA: a chave é a irresistível atracção do consumismo, este é o câncer que corrói a partir do interior todas as boas intenções (que, segundo o ditado italiano, pavimentam a estrada para o Inferno). É por isso que a saída de Evo Morales, como a passada derrota do PT e a futura queda de Maduro, afinal era apenas uma questão de tempo. É preciso mudar, são precisas ideias novas (mas nem muitas, algo já circula e não desde hoje), é preciso deixar atrás as velhas e desgastadas ideologias. Sobretudo: é precisa uma nova teoria revolucionária que ponha como condição central e imprescindível um corte definitivo com este “livre mercado”, porque tudo será inútil se for feito apenas no interior dum sistema perverso e já em metástase.

 

Ipse dixit.

7 Replies to “As escolhas do povo”

  1. Portanto… se :

    ” uma sociedade melhor é destinada a falhar se for actuada no âmbito do “livre mercado” …”

    E se :

    “…são precisas ideias novas (mas nem muitas, algo já circula e não desde hoje)…”

    Então só me resta perguntar, como conciliar uma economia planificada ( ou fora do livre mercado) com uma democracia directa ?

    1. Democracia directa =”livre” mercado? A democracia directa é um sistema político, nomeadamente muito mais antigo da democracia representativa, e não determina de forma automática o sistema económico utilizado.

      Um bom exemplo de democracia directa em época não capitalista foi Atenas do V séc. a.C.; outro, mais difundido, foi a democracia directa nas cidades autónomas italianas por volta do XII séc. d.C. A primeira foi Valdobbiadene, na região do Veneto. E, para ficar na mesma região, também na Venezia do mesmo período a autoridade suprema pertencia à assembleia popular (chamado de Concio ou de Arengo), reuniões colectivas da população que escolhia o Doge e aprovava as novas leis.
      Na mesma época (em particular a partir do séc. XII), na Liga Hanseática (Alemanha) e na Flandres surgiram os municípios, novas agregações que deram-se instituições democráticas no interior dos muros da cidade. Nas praças principais, onde normalmente eram realizados os mercados, reuniam-se as assembleias populares ao som do sino cívico para eleger os funcionários do governo e para tomar as principais decisões.

      Nota: o conceito de economia planificada é perigoso pois inclui uma forte centralização. É o caso da China do Grande Salto e da União Soviética. Em ambos os casos: um fracasso atrás do outro.

  2. Sociedades imensamente desiguais culturalmente/economicamente tendem a se corromper pelo fator dinheiro. Como a precarização da maioria é pré-requisito na ordem capitalista, nos deparamos com um impasse, potencializado à partir de que a própria corrupção é “naturalizada”.

  3. Concordo em parte, caro Max.

    Escreveu nosso blogueiro , atualmente em resguardo:

    “Mas o que tinha acontecido no Brasil durante aqueles 12 anos? Muitas coisas e uma em particular: fatias cada vez maiores da população deixavam a condição de pobreza para aproximar-se da assim chamada “classe média”. E as exigências da classe média não são as mesmas dos indigentes.”

    Sim , os anseios da classe mais pobre mudaram. Mas não foi só isso, quando estes anseios começaram a ameaçar a zona de conforto dos antigos ocupantes da classe média, gerou descontentamento. Então, manifestou-se um sentimento que estava latente na sociedade brasileira: o preconceito social.

    Nas palavras do Lula: ” O cidadão do andar de cima, não gostou de ver a ascensão do cidadão do andar de baixo”.

    Desagradou a muitas pessoas, ver negro na universidade, aeroporto com jeito de rodoviária, encontrar a filha da empregada no shopping center, ver seus filhos disputando concursos públicos e empregos com outros menos afortunados.

    Este descontentamento foi extravasado no apoio ao golpe de 2016 e nas eleições de 2018. Houve outros interesses de forças internas e externas ( que já foi relatado pelo Max, Maria e outros ), mas que , para mim, só se fortaleceram porque encontraram ressonância num sentimento nefasto de uma parte influente da população .

    1. Ué mas é o que ele quis dizer com o termo “votar com a barriga” é a tua dita ressonância. Ou por que tu acha que muitos ex pobres/novos classe média optaram por votar no atual imbecil? (Atual por que todos são na política atual, até mesmo o Lula. Nunca esqueça o tempo de poder que exerceu em cargo e nada mais fez que “dar o peixe diretamente nas mãos do povo”)

  4. Bolívia já falei, mas faltou uma coisinha. Evo nunca nacionalizou as minas e o petróleo. E os mineiros e petroleiros sofreram todo tempo “as facilidades” que empresas privadas, nomeadamente estado unidenses costumam destinar aos índios. Estabeleceu-se um regime de concessão que concedia poucas fatias ao Estado. Porque? porque nossos líderes sul americanos acreditam piamente que estando de bem com o império, haverá possibilidade de dar comida aos pobres. Lula inclusive se orgulha disso, e deu no que deu, e no que ainda dará.
    Então…algumas anotações sobre o Brasssssillllll:
    Toda suposta direita e suposta esquerda está de acordo com o voto sem impressão, de forma que toda apuração e demais demandas das votações está sob o comando do GSI (serviço de informações do exército). Esta forma de pleito pode ser adulterada com a maior facilidade, sem direito a recontagem de votos ( Max, é melhor a gente confiar no olfato da gente do que em certas estatísticas)
    Tanto a suposta direita como a suposta esquerda, quando no poder faz a famosa aparelhagem do Estado, mas não só do Estado como também de boa parte das privadas. (O PT colocou 150 mil petistas em cargos chave do governo). E aí todo mundo que se crê eterno e com as costas largas faz e desfaz e fica com o “rabo sujo…mas muito, muito sujo”.
    Qualquer alteração das peças no jogo para liza especialmente a esquerda porque ela é que se diz não corruptível. A direita, mais esperta só se diz conservadora. Isso explica, ou pelo menos me explica, porque a CUT ( central única dos trabalhadores no Brasil) nunca mobilizou uma peninha que fosse para a liberdade do Lula, a vigência da “adorada” democracia, a imposição do último golpe. Não é preciso dizer que o legislativo e o judiciário está tão comprometido com seus interesses, e sujeito aos grupos econômicos que o manobram, que são apenas joguetes e nada mais.. Existe raríssimas exceções, o que não muda nada significativo. As mídias não só majoritárias como a maioria das alternativas tornaram-se empresas, obedecendo a quem paga.
    O povo, de quem o Max reclama a voz, nesse meio, fica na mais absoluta confusão, alimentada ainda pelas redes sociais.
    Estimo (é pura estimativa minha) que hoje 20% do povo é lulista fanático, sem saber bem porque, provavelmente pela empatia que o Lula exerce em contato com as multidões trabalhadoras e pela inequívoca melhoria da condição de vida no período lulista. Estimo que outros 20% são fanáticos bolsominions pelas mesma razões e uma invertida. A paixão que o Lula desperta nos humildes é a mesma paixão que os completamente idiotizados se vem retratados no líder. que além de sujo, tem também a boca muito suja. Sem esquecer que o fanatismo religioso pentecostal defende abertamente a posição dos bolsomínios e o alimenta. Outros 20% seriam indiferentes, e os 40% restantes nem sabem do que isso tudo trata. Não entendem nem mesmo o que o jornal nacional diz, o assistem por um costume de 50 anos, por achar o Bonner bonito, a Renata simpática, por entendê-los como quase fazendo parte de suas famílias, quando elas existem. No meio disso há um bando de “intelectuais” que não se sentem povo, e que falam uns para os outros apenas. Profissionais liberais vivem no seu mundo e só prestam atenção quando ouvem falar de alguma coisa que possa mexer nos seus salários, o mesmo para funcionários públicos com poucas exceções. Eis o povo brasileiro Max, na minha humilde concepção. E não por falta de potencialidade, criatividade, inteligência, mas por falta de liderança, organização, conhecimento.Esse povo só vota e participa de ajuntamentos ditos políticos quando tem show de música e dança em palanque improvisado. Também tem o povo que sente calado sob o tacão da mílicia, do narco tráfico e que tais que tanto lhes dá segurança, quanto lhes tiraniza a vida e o bolso. Estariam disseminados em todas as fatias já descritas.
    O que mais falta é organização e direção de demandas, avanço de quem não tem rabo preso. Mas atualmente o medo se dissemina, um medo surdo que a maioria não sabe, mas sente, e que paralisa, emudece.
    O que acontece no mundo político, judiciário, econômico, midiático é surreal. Um simples exemplo substantivo: Lula já poderia ter acabado com a Lava Jato faz séculos. Bastaria ir a Suíça tomar as 15 mil páginas do dossier da Odebrecht, que o Dallanhol só copiou e usou 12 mil. Não o fez, não o faz, não o fará.E Moro ainda será, de acordo com minha bola de cristal presidente deste país que será um exemplo de Estado policial e terrorismo de Estado O jogo está sendo montado, e todos que tem poder, de uma maneira ou de outra, querem participar dele..

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