A crise da Argentina e o FMI

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O PMI Manufacturing é o índice de produção de um País. O PMI reflecte a capacidade de adquirir bens e serviços: leva em consideração novas encomendas, produção, emprego, entregas e estoques no sector manufactureiro. No Velho Continente, o PMI de vários Países está em fase de colapso, nomeadamente na Suécia ou na República Checa. Mas também a Alemanha está com problemas e bastante sérios até.

Na Grécia, a austeridade reivindicou outras vítimas. Todos os tratamentos de quimioterapia para pacientes com câncer foram suspensos: os tratamentos foram adiados indefinidamente, devido à falta de fundos. Os pacientes foram informados por telefone dessa decisão na passada Quinta-feira, enquanto alguns funcionários dos hospitais nem foram avisados e receberam as notícias dos seus pacientes e não dos seus superiores.

Estes são os resultados da austeridade, do controle obsessivo da Dívida Pública, do pagamento de juros da Dívida por parte dos Estados, isso é, por parte dos contribuintes. Este é monstro que assusta grandes e pequeninos.

Isso faz parte da mesma receita que arrastou a Argentina para um buraco do qual será difícil sair. Hoje é difícil imaginar que, no início do século 20, a Argentina fosse um dos Países mais ricos do mundo. Gozava de popularidade particular durante os anos da presidência de Perón (1946-1955). Naquela época, no País foi implementada uma severa reforma económica no interesse dos trabalhadores, o que limitou o apetite do capital local e estrangeiro. Como resultado, Perón foi derrubado pelos esforços dos EUA.

Posteriormente, foi estabelecida uma ditadura militar. Na economia argentina, no período 1975-1990, houve a chamada “grande depressão”. Desde o final dos anos ’80, a situação política interna parecia ter-se normalizado e a liberalização da política económica do Estado começou. As reformas foram realizadas com a participação activa do Ministro da Economia, Domingo Cavallo, e do serviços de consultoria do FMI. As portas para o capital estrangeiro (principalmente americano) foram abertas, os mercados foram completamente liberalizados, todas as barreiras à importação de mercadorias foram removidas, o regime de gestão da moeda (que ligou de forma apertada a moeda nacional ao Dólar) foi estabelecido.

A última década do século XX foi chamada de época do “milagre económico” na Argentina. E ninguém no País percebeu de como acabou numa ratoeira criada pelos grandes emprestadores de dinheiro do mundo. Porque as receitas do FMI são isso mesmo: uma ratoeira, construída em prol do capital internacional, não em favor da economia nacional. Perguntem aos vários Países africanos o que pensam dos programas do FMI e do Banco Mundial.

Em 2001, para os argentinos e muitos observadores estrangeiros, a grande surpresa: o Estado anunciava a incapacidade de pagar os títulos emitidos por um total de cerca de 80 biliões de Dólares. Impossível pagar 80 dos 132 biliões de Dólares de dívida pública.

O País entrou numa era de turbulência financeira e económica, que continua até hoje. Começou uma fuga do Peso, a paridade anterior entre Peso e o Dólar foi neutralizada, os bancos começaram a sofrer perdas gigantescas, o desemprego atingiu um nível crítico de 22-24%. Segundo o Banco Mundial, a percentagem da população abaixo da linha de pobreza na Argentina aumentou de 28.9% em 2000 para 35.4% em 2001 e atingiu o pico em 2002 com 54.3%.

A crise provocou distúrbios e tumultos em massa. Deve-se notar também que o padrão de falência técnica surgiu somente após do FMI, apesar dos pedidos persistentes do governo, ter recusado a assistência financeira. Os especuladores estrangeiros (principalmente americanos) ficaram extremamente satisfeitos com o incumprimento argentino e pela sucessiva crise, investindo em activos fortemente depreciados e aproveitando a desvalorização do Peso. Em 2002, a Argentina mal conseguiu evitar outra falência.

O novo Presidente, Nestor Kirchner, sucessor da ideologia de Juan Perón e que liderou o País entre 2003 e 2007, conseguiu estabilizar a situação no País. Nestor Kirchner quis construir um estado social independente. Para esse fim, fortaleceu o controle estatal sobre a economia, apoiou os produtores domésticos de todas as formas possíveis, estimulou as exportações, eliminou os deficits da balança comercial e dos pagamentos e conseguiu pagar muitas das dívidas externas, incluindo a dívida do FMI (que propõe receitas económicas de salvação mas ganha e bem com isso). Em 2007, a sua esposa Christina Kirchner, que continuou o caminho do marido (falecido em 2010), tornou-se Presidente do País, mas a pressão dos EUA sobre a Argentina intensificou-se e a a situação económica começou a piorar.

Em Julho de 2014, a Argentina viu-se num novo estado de default técnico, pela segunda vez desde o início do século XXI. O motivo foi a fim, em 30 de Julho de 2014, do prazo de pagamento da dívida de 1.3 biliões, pagamentos para alguns fundos como o NML Capital Limited e o Aurelius Capital Management, verdadeiros abutres. A agência de classificação Fitch rebaixou o rating soberano argentino para o nível de “inadimplência selectiva”.

Em 2015, o empresário Mauricio Macri, conhecido pelos seus laços com os Estados Unidos, venceu as eleições presidenciais no País. Macri inicialmente conseguiu fazer alguma coisa. Por exemplo, conseguiu colocar no mercado financeiro global, em 2017, de títulos de dívida de 100 anos no valor de 2.75 biliões. Isso parece indicar o facto de que o País desfruta de um alto nível de confiança por parte dos investidores.

No entanto, Macri fez a aposta principal no FMI. E este tem sido o seu trágico erro. Macri negociou com o Fundo para receber um empréstimo importante, que poderia fechar muitos dos buracos da economia argentina. Em Junho de 2018, o Fundo aprovou a concessão de 57 biliões de Dólares para a Argentina. Note-se que este empréstimo foi o maior da história do FMI. No entanto, no momento da decisão de conceder o crédito, o País foi condenado a efectuar vários pagamentos até o final de 2019 por um valor não inferior a 80 biliões de Dólares.

No entanto, o dinheiro do empréstimo saiu do País e foi direitinho para os cofres dos credores estrangeiros, sem trazer um alívio tangível à economia nacional. Até o momento, o FMI transferiu 44.1 biliões para a Argentina. Mas mesmo que o FMI transfira o restante do empréstimo, o seu “efeito anestésico” durará apenas alguns meses. O próximo ano, 2020, é considerado sombrio pelos habitantes da Argentina.

Três décadas de “colaboração” argentina com o FMI mostram a natureza destrutiva dessa organização, que é fortemente influenciada pelos Estados Unidos. O Fundo está a negociar com o governo argentino, exigindo reformas no espírito de Washington (liberalização completa da economia, por exemplo). Por isso fornece empréstimos, mas, como regra, não o valor total, apenas prestações para manter o País controlado com a trela curta. Portanto, é esperado um agravamento da situação e o Fundo recusa categoricamente, no momento agudo da crise, fornecer as prestações seguintes.

A fase de pilhagem começa quando os especuladores compram a economia argentina por nada e os “abutres financeiros” compram títulos de dívida depreciados. Mesmo em caso de default grave, o País que “beneficia” dos empréstimos do FMI deve cumprir regularmente as obrigações concordadas, caso contrário o Fundo organizará um isolamento contra esse País. Essa é uma regra geral para todos os Países e a Argentina não é excepção. Além disso, o FMI é uma ferramenta de Washington para influenciar o curso político dos Países e trabalha em estreita colaboração com as agências internacionais de classificação de risco, as Três Grandes Moody’s, Standard & Poor’s, Fitch.

Nas eleições primárias do passado 11 de Agosto, na véspera das eleições presidenciais, programadas para 27 de Outubro desta ano, a vitória com resultado de 47.65% dos votos foi obtida pelo candidato da oposição Alberto Fernandez, que representa o partido Frente de Todos, que apresentou a sua candidatura em conjunto com a ex-Presidente Cristina Kirchner, que, em caso de vitória de Fernandez, se tornará vice-Presidente da Argentina. O actual Presidente, Mauricio Macri, recebeu 32.08% dos votos.

Os emprestadores de dinheiro internacionais apostam em Macri. E por isso, no leilão do dia seguinte, em 12 de Agosto, o Peso argentino caiu 30% enquanto o mercado das acções caiu 12%, sofrendo a pior queda num dia desde 2008.

No dia 12 de Agosto, todos os analistas começaram a falar sobre o facto de que uma falência é esperada na Argentina e uma consequente reestruturação da dívida a seguir. Começaram a dizer que, como resultado da reestruturação, os detentores de títulos argentinos não poderiam receber mais de 40 centavos por cada Dólar. Já no início da terceira dezena de Agosto, os títulos eram trocados a um preço de 45 centavos por um Dólar. O Peso argentino continuou em queda e o pânico eclodiu no sector financeiro do País.

Na semana passada, a agência de classificação Fitch rebaixou o rating soberano argentino de “B” para “CCC”. E em 30 de Agosto, a agência de classificação S&P reduziu o rating da Argentina para o nível de “default seletivo” (SD).

Tudo isso tem consequências: agora é possível que a Argentina não seja capaz de pagar e nem administrar a sua dívida com o FMI, dívida que excede 44 biliões de Dólares. E se isso acontecer, será possível falar dum default particularmente grave. O não cumprimento das obrigações perante o FMI é o pior crime do mundo financeiro moderno.

Os emprestadores de dinheiro do mundo mostraram as suas ameaças ao povo argentino, com o objectivo de influenciar as eleições presidenciais. Eles precisam da vitória de Mauricio Macri e da derrota dos seus oponentes. No entanto, para as eleições ainda faltam algumas semanas e não é preciso ser um profeta para prever que, durante esse período, a situação sócio-económica do País só irá piorar.

Podemos esperar que, em caso de vitória de Alberto Fernandez e Christina Kirchner, o FMI pré-estabelecerá um total obstrucionismo da Argentina. O País estará num verdadeiro isolamento financeiro.

 

Ipse dixit.

Música: ¿Que? de La Tabù, gravado ao vivo em 05 de Fevereiro de 2014. ¿Que? by La Tabù  licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0 License.

4 Replies to “A crise da Argentina e o FMI”

  1. Não consigo acreditar que seja somente a visão de lucro imediato que esta dirigindo esse plano. Não é possível que não seja claro para quem gosta tanto do dinheiro que um financiamento a longo seja trilhões de vezes mais lucrativo (literalmente). Tem de haver algo mais que a gente não consiga enxergar, isso não se trata apenas de dinheiro e poder isso mais parece uma guerra de facções. Tempos estranhos estes em que vivemos

    1. Olá Pedro!

      E tens perfeitamente razão: o lucro não é de todo o único objectivo.

      “Além disso, o FMI é uma ferramenta de Washington para influenciar o curso político dos Países”

      E é mesmo. Uma ferramenta brutal porque faz alavanca com a situação económica para determinar o destino dos governos. A intenção é estabelecer um sistema, um único sistema neoliberal onde as possíveis oposições sejam continuamente ameaçadas pelos servos do poder de Wall Street & Companhia.

      O sistema neoliberal “deve” ser aceite, não há outras escolhas nos factos. Não podemos esquecer que a América do Sul é ao mesmo tempo o “quintal” de Washington e uma terra extremamente rica. A lista de quem tentou implementar algo diferente e pagou com a vida é bem extensa: Allende ou o Che Guevara são apenas os nomes mais conhecidos. Nos nossos tempos a principal arma é a economia, mas o resultado é sempre o mesmo: anula-se o adversário e defende-se o sistema neoliberal com o qual é possível o “livre” mercado.

      Uma vez implementado o “livre” mercado, é só preciso esperar: a homologação torna as massas mais fracas assim como uma eventual melhoria do poder de compras das famílias faz esquecer os tempos sombrios. Nasce a assim chamada “classe média”, por sua natureza conservadora. No prazo de um par de gerações, o País estará de joelhos, não economicamente mas politicamente. Algo que na China entenderam muito bem: a formação da classe média procede mas segundo os ritmos estabelecidos pelo governo.

      Esta é a situação europeia, por exemplo, onde ninguém se atreve a pôr em causa o “livre” mercado capitalista, hoje visto como única forma nos cujos moldes um Estado pode existir.

      Em Portugal, por exemplo, estamos em plena campanha eleitoral e a escolha é entre um partido que defende o “livre” mercado (o PSD) e entre um outro partido que defende… o “livre” mercado também (o Partido Socialista). O Partido Comunista encontra-se em via de extinção (para boa sorte, acrescento eu), o Bloco de Esquerda finge ser a alma esquerdista do governo (mas viabiliza as principais escolhas do PS), do CDS melhor não falar porque ainda tem saudade do Salazar.

      A única real diferença entre os dois maiores partidos (PSD e PS) está na parcela do orçamento que deve ser destinada ao “povo”: falamos aqui dos trocos que a União Europeia deixa nos cofres do Estado para que faça ainda algum sentido ter um Parlamento e uma classe política local (que, é bom lembrar, nem pode escolher livremente um orçamento de Estado, pois este deve passar o exame de Bruxelas).

      Não, Pedro, não é só uma questão de dinheiro. O dinheiro é apenas o instrumento utilizado para ampliar o poder neoliberal. Paradoxalmente, faz sentido. Enquanto para o “povo” o dinheiro é um objectivo, são os grandes grupos económicos que utilizam o dinheiro por como foi concebido e por aquilo que sempre deveria ser: um mero instrumento.

      Adios!

      1. Mas Max, o que mais querem as potências neoliberais? Digo em questão ao mundo ocidental, eles já nos têm em suas mãos, eles mandam em tudo por aqui. Eu sinceramente não consigo entender a necessidade de fazer uma nação inteira sofrer quando há outros instrumentos para conseguirem o que querem. Qual é o plano? Testar os limites da opressão? Eu realmente não enxergo a função das ações atuais.

  2. Ahhh…espetacular música argentina. Me recordo das primeiras impressões da Argentina do início dos anos 50. Meu pai,que considerava-se em casa quando íamos para lá, fez-me aprender a milonga dançando sobre os pés dele. Tudo me parecia fantástico, pujante, feliz, enquanto vagávamos pela Florida, naqueles cafés livraria únicos e lá eu começava a descobrir a fala dos italianos e espanhóis anarquistas amigos dele e a fala dos amigos e conterrâneos franceses dele, absolutamente nada anarquistas. Acho que foram os melhores dias e noites da minha vida, e o som que me ficou nos ouvidos era a balbúrdia alta das discussões que eu não entendia, com o tango e a milonga Mas as minhas impressões de criança acomodada nas cadeiras de gerdau e palhinha, degustando bife de choriso, vinho de Mendonça e alfagores como sobremesa (desde que me conheço por gente comia como os adultos) eram reais: a Argentina era pujante e Buenos Aires parecia ser a capital da América do Sul ( e para o meu pai, francês de origem, o era).
    Aquilo era e deveria ser a perene realidade da América do Sul, mas a realidade paralela que os hermanos viveram, conforme a linha de tempo desenhada pelo Max, sempre souberam superar, trata-se de um povo com cara de nação, mesmo que em muitas regiões do vasta Patagônia, não predomine os emigrados, mas muitos Mapuches.
    As mais recentes estatísticas da situação indica que um terço da população vegeta na pobreza e 3 milhões são indigente. Isso corresponderia no Brasil a 21 milhões de indigentes!! Mas os argentinos sairão do buraco ( e para mim toda miséria é gerada pela concentração de riqueza, política e economia se confundem). Contribuindo para essa mesma estatística, o ministro da fazenda de Macri, nesses anos aumentou seus haveres em 80%, ultrapassando os 250 milhões de dólares, a maior parte fora do país.
    Quanto a nossa realidade brasileira que ainda não alcançou este perfil, mas está fazendo muita força para tal, tem economista progressista daqui que escreve livro para dizer que o Brasil não cabe em quintal de ninguém. Quem sabe!? Não sou economista, não sou político, não sou blogueira, não conheço nada em profundidade,sou só, como diria, testemunha ocular dos acontecimentos, que em geral me desgostam.

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