O Testamento de Informação Incorrecta – Parte V

E chegamos assim à última parte do Testamento.

Vimos nos artigos anteriores as ideias que foram utilizadas para construir, ao longo de décadas, a estrutura da nossa actual sociedade. Obviamente seria possível continuar na descrição dos acontecimentos em ordem cronológica, mas o objectivo deste artigo não é ré-visitar a história recente, apenas individuar as razões e os meios que o Verdadeiro Poder explorou para os seus fins. Os vários Reagan, Thathcer, Bush, Blair, Clinton, etc. com respectivas escolhas foram só as lógicas consequências dum modelo já estabelecido e que conduziu aos nossos dias onde o “livre” (com muitas aspas) mercado domina sem nenhuma séria oposição e determina o percurso de todos os governos nacionais (ou, em alguns casos, do que sobrou deles).

Mas há uma pergunta que ficou até agora sem resposta: o que fez a Esquerda durante este tempo todo? Qual foi o seu papel? Por qual razão não alertou os cidadãos, os trabalhadores e não tomou iniciativas? Por qual motivo não defendeu com unhas e dentes as instituições democráticas?

Esquerda: entre traição e ilusão

Do ponto de vista da Esquerda aconteceram alguns factos que, fique claro, não justificam nem absolvem os movimentos que deveriam ter ficado ao lado dos trabalhadores mas que, aos menos, conseguem fornecer uma explicação. Em primeiro lugar: a queda da União Soviética. Não vamos aqui analisar as causas (internas e externas) que levaram ao desmoronamento dum inteiro bloco de Países; nem vamos recorrer à ideologia, porque a União Soviética foi comunista durante, no máximo, algumas semanas no Outono de 1918, não mais do que isso. O que conta é que de Moscovo chegavam financiamentos, e muitos. Todos os partidos comunistas ocidentais recebiam dinheiro russo: vindo a desaparecer o financiamento, caída em desgraça a ideologia, o que era possível fazer?

Há depois outro aspecto que deve ser considerado: o absorção dos partidos da Esquerda por parte do Verdadeiro Poder tinha começado já antes, em particular na França dos anos ’80 com o então Presidente Francois  Mitterrand. Foi particularmente insidiosa a estratégia deste Presidente que, em teoria, era um líder esquerdista. Mitterrand foi capaz de iniciar em Europa a transformação da Esquerda socialista e social-democrata numa espécie de máquina política híbrida, que manteve a fachada de Esquerda apenas para esconder políticas Neoliberista. O resultado foi o “liberalismo social”, onde o governo faz os interesses das elites e o Estado tem que intervir apenas para reparar os desastres em termos de Deficit e Despesa (para os dolorosos problemas sociais que sempre se seguem) e para os resgates (com dinheiro público) dos bancos privados em condição de falência.

Na França, além do Presidente Mitterrand, outros homens menos conhecidos trabalharam desde 1981 até a completa mudança de pele da Esquerda. Lembramos os já mencionados Jaques Delors, Jaques Attali e Jean Claude Trichet. Esta transmutação perniciosa começou precisamente a partir dos socialistas franceses, em seguida, veio o New Labour inglês, depois o Centro-Esquerda italiano (na altura o PCI era o maior partido comunista ocidental): o resto dos esquerdistas europeus capitularam logo depois.

Não é um caso se foi o Centro-Esquerda (ex-PCI) a liberalizar em Italia a circulação dos capitais (essencial para a especulação das instituições financeiras), a permitir a fusão de bancos comerciais de investimentos (estilo Wall Street e fonte do desastre de 2007/2008) e a marcar o recorde europeu de privatizações no final dos anos ’90. Não é um acaso: tinha sido o Embaixador dos EUA em Roma, Richard Gardner (membro dos poderosos Council on Foreign Relations e Comissão Trilateral) a aprovar a entrada no governo dos herdeiros comunistas e o chefe da estação da CIA de Roma na época, Hugh Montgomery, escreveu em favor deste cenário porque o partido da Esquerda tinha sido reestruturado e tomando a forma duma moderna empresa capitalista, com amplos contactos nos sectores dos serviços e dos bancos: isso foi visto como uma garantia por parte de Washington.

Mesmo assim, isso explica a trajectoria dos partidos, que em menos de 20 anos foram transformados em máquinas neoliberais imbuídas de Livre Mercado e Histeria da Deficit, prontas a vender pedaços de bens públicos para a “classe dos predadores” que serviam com devoção. Mas o que aconteceu aos movimentos da sociedade civil da Esquerda? E os sindicatos? E os intelectuais progressistas? Porque todos estes, enquanto gritavam (e ainda gritam) contra as tácticas gerais da “classe predadora”, não entendiam o que estava escondido atrás do fantasma da Dívida e do Deficit? Porque até hoje quase ninguém na Esquerda consegue entender de onde vêm os perigos para a Democracia e o trabalho?

Quem está a ler esta série de artigo já deve ter percebido que, uma vez que alguém for persuadido pelos dogmas económicos neoclássicos, neomercantis e neoliberais, é sugado dentro duma lógica perversa incessantemente reforçada pela actividade mediática (e não vamos esquecer os think tanks, as lobbies, etc.).

Se alguém fica convencido de que:

  1. o Estado virtuoso (com moeda soberana) deve equilibrar o orçamento encaixando dos cidadãos mais de quanto gasta;
  2. os impostos são usados ​​para fornecer ao Estado os fundos a serem gastos com cidadãos, assim o Estado virtuoso deve equilibrar o orçamento para não desperdiçar esses fundos;
  3. o Deficit do Estado significa que os cidadãos têm uma dívida a pagar, daí o Estado virtuoso deve equilibrar o orçamento;
  4. que, consequentemente, o Deficit é o máximo infortúnio económico, a menos que o Estado virtuoso não consiga equilibrar as contas

então há pouco que possa ser feito porque hoje a ideologia dominante é esta e os tais pontos são repetidos de forma ininterrupta não apenas pelos órgãos de comunicação como também pelo académicos (que até ganham Nobel com isso). Quem pode contrastar as ideias dum Nobel, praticamente um génio, que passou a vida a estudar o assunto? E com quais meios?

Mesmo perante os resultados que estão debaixo dos olhos de todos, na maioria dos Continente, a Esquerda nunca questiona estes pontos, aliás, concorda que os Estados devem ser geridos “como são geridas as famílias”, que o Deficit do Estado é “dívida dos cidadãos”, que os impostos “servem para os gastos sociais”.

O economista francês Alain Parguez (que nunca ganhará um Nobel) escreveu:

A crença nos limites do orçamento tem convencido todos que os impostos reciclam dinheiro retirado do sector privado. O Estado, acredita-se, poderia financiar as suas despesas sociais taxando os mais ricos. Os impostos devem então transferir um rendimento dos ricos para os pobres […]. Os impostos são a base de um “capitalismo social” porque poderiam financiar o bem-estar social etc. Essa mitologia tributária explica porque tantos políticos e economistas de esquerda abraçaram o dogma de um orçamento equilibrado.

E todos os activistas da Esquerda, que hoje gritam contra os mil pecados do Capitalismo, numa coisa concordam em pleno com o Verdadeiro Poder: o Estado deve pôr as contas em ordem, ou seja, gastar menos do que ganha. Estão convencidos de que, se o Estado fizesse isso, em primeiro lugar levantaria um tremendo fardo dos ombros dos cidadãos: a Dívida! Ignoram, e precisamente porque enganados pela continua propaganda das elites, que um Estado com moeda soberana pode enriquecer os cidadãos só se gastar mais do que os rendimentos tributados. Ignoram que os impostos destroem o dinheiro e nunca fornecem dinheiro para o Estado gastar. Ignoram que o dinheiro depositado num banco não é enviado para o Estado, o qual conta tudo formando pilhas de notas no cofre: simplesmente é destruído. Ignoram e com este ignorar perpetuam o plano do Verdadeiro Poder.

Afinal, quem é o Verdadeiro Poder? Informação Incorrecta já respondeu (parcialmente) a esta pergunta e fica no arquivo. A seguir eis os links:

O Verdadeiro Poder – Parte I
O Verdadeiro Poder – Parte II
O Verdadeiro Poder – Parte III
O Verdadeiro Poder – Parte IV
O Verdadeiro Poder – Parte V
O Verdadeiro Poder – Parte VI
O Verdadeiro Poder – Parte VII

Nota importante: esta série foi escrita em 2015, quando o blog Informação Incorrecta ainda era publicado na plataforma Blogger. Fui “ajustar” alguns pormenores estéticos mas não mexi no conteúdo dos vários artigos apesar de, entretanto, eu ter mudado algumas das ideias neles contidas: não achei correcto fazer isso, porque é lícito (e saudável) que as ideias mudem com o passar do tempo. Isso vale em particular para a Parte II, que hoje deveria ser escrita de forma diferente.

Mas porque é uma resposta apenas “parcial”? Porque naquela série de artigos são citados nomes (muuuuuitos nomes) que fazem parte daquela que podemos chamar “elite” ou “superclasse”. É esta elite o Verdadeiro Poder? Sim e não. Vou tentar explicar melhor aquela que é a minha pessoal impressão.

O prédio

Imaginemos que o verdadeiro Poder seja como um prédio, o mais bonito prédio da cidade, o mais requintado, onde vivem os mais ricos: há os inquilinos, há o homem que corta a relva no jardim, há o canalizador, os seguranças, o administrador… depois há o dono do prédio. Que, obviamente, é a pessoa com mais riqueza e poder.

O dono não vive no prédio, vive numa mansão só dele, é dai que dirige as actividades do prédio. E não existe apenas um prédio, há vários, assim como há vários donos. Não muitos, mas mais do que um.

Na série de artigos O Verdadeiro Poder (ver acima) há isso tudo, desde o homem que corta a relva (o Presidente da União Europeia, por exemplo) passando pelos inquilinos, para chegar até a alguns donos. É claro que uma pessoa como Henry Kissinger não pode ser definido como um dos donos: será um dos inquilinos, se calhar um dos mais abastados, poderosos e particularmente influentes, mas sempre inquilino. Henry Kissinger é Poder, disso não há dúvida, porque ele tem de facto um enorme poder, é alguém que pertence à superclasse e algo mais do que isso. Tem um grande poder de decisão, assim como os vários Bill Gates, Rockefeller, Elion Musk, etc.. Mas vive num prédio do qual não é dono, isso é: trabalha num plano que não foi criado por ele, do qual não goza dos frutos de longo prazo, goza “apenas” (por assim dizer) dos frutos imediatos (riqueza, influência, capacidade de decisão…).

Para entender quem são os donos dos prédios (e, portanto, a camada mais profunda e poderosa do o Verdadeiro Poder, aqueles que trabalham não para o imediato mas para o longo prazo) pensem naquilo que está escrito no presente artigo: o plano para regressar ao poder vem de longe, muito antes duma qualquer Goldman Sachs, duma JP Morgan, duma União Europeia, duma Segunda ou Primeira Guerra Mundial, duma Revolução Francesa… São aqueles que o jornalista Paolo Barnard definiu como “os Dez Reis”. E estes Dez Reis (e, como é óbvio, o termo “Reis” aqui não significa exclusivamente monarcas) vêm de longe, de muito longe.

O Leitor está a pensar nos Rothschild? Faça um esforço e tente ir um pouco mais atrás ainda, não limitando a visão a apenas uma família. Procure acerca da Nobreza Negra, aquela de Venezia e Genova, as suas sucessivas ligações com a aristocracia europeia, com as casas reais, o clero, as suas origens. As classes dominantes (as monarquias, as aristocracias, o clero) foram formadas ao longo de séculos e conseguiram manter-se no poder durante aquele tempo todo: não desapareceram dum dia para outro só porque alguém na França inventou a guilhotina (e Waterloo é um bom exemplo do que acontece quando os recém chegados desafiam o Verdadeiro Poder). É possível fazer rolar algumas cabeças, mas a trama de amizades, de influências, riquezas e sabedoria mantém-se. Lembra-se o Leitor de quanto escrito acerca dos Kennedy/Cennétig?

Importante: não confundimos esta descrição com a figura do “Grande Velho” que tudo dirige a partir dos bastidores. Não há nenhum Grande Velho, não há ninguém que mexe os cordéis enquanto está a rir-se diabolicamente: tudo isso é ridículo. Há pessoas, há famílias, há empresas, há dinheiro. A camada mais poderosa do Verdadeiro Poder permanece no anonimado e não aparece nas capas dos diários simplesmente porque não é esta a função dela: no prédio cada um tem um papel preciso.

Há umas teorias que circulam no mundo da informação alternativa segundo as quais nada acontece por acaso, tudo é programado. Não é assim: há um plano, mas nenhum ser humano pode evitar o imponderável (ou acaso). E o Verdadeiro Poder não é composto por um Grande Velho que tudo pode, vê e prevê: é composto por humanos que erram também ou que, simplesmente, podem ser apanhados de surpresa por acontecimentos imprevistos. A força do Verdadeiro Poder reside no facto de ter um plano particularmente abrangente, capaz de ultrapassar ou absorver as adversidades; de ter meios quase ilimitados; de ter profundos conhecimentos acerca da natureza humana e do funcionamento duma sociedade; de poder contar com uma rede de servidores (os inquilinos) bem treinados, dotados (quase sempre) de inteligência, perspicácia, diplomacia. O Verdadeiro Poder tem tudo isso, mas sempre por seres humanos é composto.

É um discurso muito amplo, terrivelmente amplo e complexo. Mas é um discurso que, só ele, precisaria dum novo blog. E eu já estou a fechar este, imaginem se me passa pela cabeça de abrir outro.

Agora um último (breve) artigo para as saudações e depois fim.

 

Ipse dixit.

Um agradecimento especial para o jornalista Paolo Barnard, cujo ensaio serviu como base do qual foi extraída e adaptada esta série “O Testamento de Informação Incorrecta”.

Obrigado por participar na discussão!

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