O Testamento de Informação Incorrecta – Parte IV

Com a ajuda das ideias publicadas nos anteriores artigos, o Verdadeiro Poder lançou o seu ataque, algo que estava em preparação há muito. Tanto para ter uma noção: o Leitor sabe quando o Euro e o Banco Central Europeu (BCE) foram concebidos? Ambos foram planeados pelo economista francês François Perroux em 1943. Motivação? Oficialmente criar uma moeda forte como desafio à hegemonia do Dólar. Na realidade, o objectivo era diametralmente oposto: Perroux, e outros que veremos em breve, queriam retirar dos Estados o poder de administrar a sua própria moeda soberana como uma condição essencial para destruí-los, porque sem a capacidade de emitir dinheiro o Estado perde totalmente a sua razão de ser. Vale citar uma frase de um dos Pais do Euro, o francês Jacques Attali (o Economista actualmente apoiante do Presidente Macron):

E o que a população europeia acreditava, que o Euro era feito para a felicidade deles?

Mas criar as ideias não era suficiente, era preciso formar todo um movimento que pudesse impingir os conceitos nas mentes das massas (classe política inclusa), de forma ininterrupta e através de indivíduos conceituados. Mais: era preciso infiltrar o mundo académico, de forma que este falasse com uma voz só.

O Plano de Contiguidade

Para conquistar o mundo académico e, portanto, as mentes das eminências cinzentas sentadas nos ministérios dos nossos governos, as elites imaginaram um plano de contiguidade, criando estruturas adjacentes ao campus universitários e que financiem o ensino superior, a pesquisa e as bolsas de estudo; mas também capazes de lançar campanhas de (des)informação em massa para influenciar a opinião pública.

Essas estruturas consistiam em duas partes: as Fundações e os Think Tanks. As primeiras são entidades para a arrecadação de fundos e centros culturais; os segundos, geralmente, são grupos de reflexão e pesquisa.

Alguns nomes nos Estados Unidos:

  • Fundação Rockefeller
  • Fundo William Volker,
  • Fundação Olin
  • Freedom Network
  • Atlas Research Foundation
  • American Enterprise Institute
  • Cato Institute

…e podemos lembrar também as fundações Coors, John M. Ohlin, Sarah Scaife, Smith Richardson, Henry Salvatori, Carthage, Heritage and Earhart, Instituto Acton, Washington Policy Center, Manhattan Institute for Policy Research.

Na Europa:

  • Institute of Economic Affairs, Centre for Policy Studies,  Adam Smith Institute, Stockholm Network, Bruges Group, International Policy Network no Reino Unido;
  • A potente Mont Pèlerin Society na Suíça;
  • CUOA, Acer, CMSS, Bruno Leoni, Prometeia e Nomisma na  Italia;
  • Association pour la Liberté Economique, Eurolibnetwork, Institut de Formation Politique na França;
  • Institut fuer Wirtschaftsforschung Halle, Institut fuer Weltwirtschaft e Institut der Deutschen Wirtschaft Köln na Alemanha.

E assim os dogmas neoliberais e neoclássicos foram espalhados onde isso importava. O trabalho das Fundações e dos think tanks, teve um sucesso considerável, quase completo. Cito o historiador económico John F. Henry:

Além de financiar o desenvolvimento de programas específicos e currículos, bem como promover a pesquisa para o laissez faire em economia, a Free Market Foundations patrocinou mestrados e bolsas de estudo em Direito, Economia, Ciência Política e assuntos sociais. Promoveram cátedras universitárias, livros e projectos. Uma vez formuladas, as prescrições políticas e o espírito do mercado livre não são comunicados apenas aos funcionários do governo, mas também ao público através dos grandes meios de comunicação e jornalistas que essas fundações patrocinam.

Uma dessas fundações merece algumas palavras: a americana Heritage. Fundada por um jovem e desconhecido activista de Direita, Ed Feulner em Washington. Feulner considerava as outras fundações como caracóis, pelo que inventou o marketing moderno das ideias: para manipular os políticos através dos jornalistas, era preciso simplificar tudo, criando rações de fácil consumo. Isso mesmo: preparar informações ideológicas sobre as principais questões da economia fáceis de engolir, de rápida assimilação, aqueles que ele mesmo chamou de “conceitos políticos sumários para legisladores que estão com pressa”. Verdadeiras “pílulas de desinformação”. E foi assim que, no final dos anos ’70, a Heritage tornou-se a ponta de lança das fundações. Peguem no programa económico dum Ronald Reagan: a Heritage está aí, toda.

Cedo, as Fundações entenderam também que jornalistas e media no geral desenvolviam um papel fundamental na entrega das ideias seleccionadas: fundamental mas não total. Era preciso algo mais, algo pensado especificamente para a classe política.. E aqui nascem as modernas lobbies, cuja importância na vida pública de hoje não pode ser ignorada, bem como a contribuição que deram para o sucesso do plano Neoclássico, Neomercantil e Neoliberal. Para sublinhar o que acaba de ser dito, alguns dados são suficientes: Washington está infestada de lobistas, entre 16 mil a 40 mil por ano, dependendo das sessões do Congresso, com um orçamento de cerca de 3 ou 4 biliões de Dólares por ano. Na UE, e especificamente em Bruxelas, cerca de 15 mil a 20 mil desses homens e mulheres vagueiam nos corredores da Comissão Europeia com 1 bilião de Euros para gastar.

Nos Estados Unidos, a lobby é uma parte tão importante da vida pública ao ponto que qualquer pessoa ou empresa que tenha um mínimo de importância faz lobby.  American Banking Association, Housing Finance Alliance, Private Investor Coalition, US Chamber of Commerce… toda Wall Street, de cima para baixo, faz lobby furiosamente e os lobistas são empregados por diferentes entidades privadas como National Rifle  Association, Christian Coalition, American Israel Public Affairs Committee, sindicatos, grupos de todos os tipos.

Na Europa, as lobbies são organizadas em grupos registrados e os mais poderosos são os grupos financeiros: Trans Atlantic Business Dialogue, European Roundtable of Industrialists, Liberalization of Trade in Services Group, European Banking Federation, European Employers Association, Business Europe… nomes que raramente (ou até nunca) os cidadãos ouvem. Mas nomes que contam, mais do que os mesmos cidadãos: todos os anos, o Trans Atlantic Business Dialogue apresenta
aos principais tecnocratas da UE uma lista dos seus desejos e espera que uma obediente Comissão Europeia lhe explique quais progressos foram feitos para satisfazê-los.

Em resumo, foi este Plano de Contiguidade que, através duma rede de institutos para a formação pós-universitária e para o financiamento de turmas de gestão, nasceu uma classe dominante mundial, os “globocratas”, que vivem sob a égide das elites neoclássicas, neomercantis e neoliberais, que pensam todos com a mesma mente, que repetem os mesmos conceitos, que agem pelos mesmos propósitos. Em caso de dúvidas, aconselho analisar alguns clubes nos quais esses “globocratas” costumam reunir-se anualmente para discutir as tendências económicas e políticas da altura: o Grupo Bilderberg fundado em 1954, a Comissão Trilateral de 1973, o Fórum Económico Mundial de Davos nascido em 1971 e o Instituto Aspen de 1950. Estes clubes são importantes não porque é a partir daí que as pessoas dominam o Mundo (grave erro de conceito este cometido por parte da informação alternativa, em particular acerca do mitificado Bilderberg), mas porque são estas as ocasiões nas quais o exército de tecnocratas globalizados recebe as ordens e porque representam uma das raras oportunidades nas quais parte da elite encontra os servos mais significativos.

Por mais de sessenta anos, todos as personagens mais poderosas do mundo gravitaram ao redor dessas organizações e nelas contribuíram decisivamente para o regresso ao poder do Verdadeiro Poder. Eis uma lista (amplamente incompleta) de nomes:

  • Peter Sutherland (ex-director da OMC, gerente da Goldman Sachs, ex-Comissão da UE, Bilderberg)
  • David Rockefeller (Comissão Trilateral, Bilderberg)
  • Paul Volcker (ex-chefe da FED, Instituto Aspen, Comissão Trilateral, Bilderberg)
  • Leon Brittan (ex-Comissão da UE, Comissão Trilateral)
  • Henry Kissinger (ex Gov. EUA, Aspen, Comissão Trilateral, Bilderberg, Fórum Económico Mundial)
  • John Micklethwait (Diretor do The Economist, Bilderberg)
  • Zbigniev Brzezinski (ex-governador dos EUA, ex Comissão Trilateral)
  • Condoleezza Rice (ex Gov. USA, Aspen, Comissão Trilateral, Bilderberg)
  • Henry Paulson (ex Gov.EUA, Bilderberg)
  • Edmond de Rothschild (Bilderberg)
  • Ben Bernanke (chefe do FED, Bilderberg)
  • Bill Clinton (Fórum Económico Mundial)
  • Etienne Davignon (ex-Comissão da UE)
  • Larry Summers (ex-governador dos EUA, Bilderberg)
  • John Negroponte (ex-diplomata norte-americano, Comissão Trilateral)
  • Karel de Gucht (Comissão Europeia, Bilderberg)
  • Jean Claude Trichet (chefe do BCE, Bilderberg)
  • Timothy Geithner (Sec. Do Tesouro dos EUA, anteriormente Comissão Trilateral, Bilderberg)
  • Carl Bildt (Ministro dos Negócios Estrangeiros sueco, Comissão Trilateral, Bilderberg)
  • George Soros (Fórum Económico Mundial)
  • Joaquin Almunia (Comissão Europeia, Bilderberg)
  • Carlos Ghosn (CEO da Renault, Fórum Económico Mundial)
  • George Papaconstantinou (ex Min. Finanças Grécia, Bilderberg)
  • Peter Brabeck Letmathe (Presidente da Nestlé, Fórum Económico Mundial)
  • José Zapatero (Premier Espanha, Bilderberg)
  • Cynthia Carroll (CEO Anglo American, Fórum Económico Mundial)
  • Josef Ackermann (CEO do Deutsche Bank, Bilderberg)
  • Neelie Kroes (Comissão Europeia, Bilderberg)
  • Christine Lagarde (Chefe do FMI., Bilderberg)
  • Bill Gates (Microsoft, Bilderberg)
  • Donald Graham (Editor Washington Post, Bilderberg)
  • Robert Zoellick (Pres. Banco Mundial, Bilderberg)
  • John Elkann (Presidente da Fiat, Aspen, Comissão Trilateral, Bilderberg)
  • Paolo Scaroni (CEO da ENI, Bilderberg)
  • Roberto Poli (ENI, Aspen)
  • Mario Draghi (Banca d’Italia, Bilderberg)
  • Mario Monti (Universidade Bocconi, ex Comissão Europeia, Aspen, Comissão Trilateral, Bilderberg)
  • Angelo Maria Petroni (Sole 24 Ore, Aspen)
  • Giacomo Vaciago (ex-Citibank, Aspen)
  • Domenico Siniscalco (vice Presidente Morgan Stanley, Bilderberg)
  • Marco Tronchetti Provera (Pirelli, Comissão Trilateral)
  • Franco Venturini (Corriere della Sera, Comissão Trilateral)
  • Giuliano Amato (Deutsche Bank, Aspen)
  • José Manuel Barroso (Ex-Primeiro Ministro de Portugal, ex-Presidente da Comissão Europeia, Goldman Sachs, Bilderberg)
  • Estrela Barbot (Redes Energéticas Nacionais Portugal, Bilderberg)
  • Fernando medina (Presidente da Câmara de Lisboa, Bilderberg)
  • Paula Amorim (Américo Amorim Group Portugal, Bilderberg)
  • Isabel Mota (Presidente Calouste Gulbenkian Foundation, Bilderberg)
  • Marcelo Rebelo de Sousa (Presidente de Portugal, Bilderberg)
  • Rui Rio (Político Português, Bilderberg)
  • José Sócrates (ex-Primeiro Ministro Portugal, Bilderberg)
  • Maria Luís Albuquerque (ex- Gov. Portugal, Bilderberg)
  • Carlos Gomes da Silva (vice-Presidente Galp Energia, Bilderberg)
  • Jair Bolsonaro (Presidente do Brasil, Fórum Económico Mundial)
  • Michel Temer (ex-Presidente do Brasil, Fórum Económico Mundial)
  • Roberto Azevedo (WTO, Fórum Económico Mundial)
  • Antonio Guterres (Secretário ONU, Fórum Económico Mundial)

Esta lista é apenas um ínfimo excerto: só na reunião de Davos de 2019, por exemplo, houve 7 participantes de Portugal, 34 do Brasil… Não há necessidade de comentar mais.

O Powell Memorandum e The Crisis of Democracy

Um passo atrás. Em 1971, após sugestão de Eugene Sydnor Jr. da Câmara de Comércio dos Estados Unidos, o advogado (e futuro Presidente da Corte Sumprema dos EUA) Lewis Powell escreveu aquele que hoje é conhecido como Powell Memorandum, um ponto de viragem teórico, um importante acelerador do plano do Verdadeiro Poder. O seu diagnóstico era o seguinte:

Nós (da Direita económica, ndt) não enfrentamos ataques esporádicos. Pelo contrário, o ataque ao sistema corporativo é sistemático e compartilhado.

E este era só o começo. Existe uma “guerra ideológica contra o sistema empresarial e os valores da sociedade ocidental”. E a regra da guerra, em primeiro lugar, obriga a voltar a controlar os governos porque “poucos elementos da sociedade americana de hoje têm tão pouca influência sobre o governo quanto os negócios, as empresas e os accionistas […] Não é exagero dizer que somos os esquecidos”. E para validar esta declaração, Powell cita um dos mais poderosos economistas neoliberais de sempre, Milton Friedman:

É muito claro que os fundamentos da nossa sociedade livre estão sujeitos a um ataque em larga escala e poderoso, não pelos comunistas ou outros, mas tolos que imitam como papagaios e que se nutrem dum plano que não teriam compartilhado intencionalmente.

Powell concorda: grande parte do ataque é liderado por elementos comuns da sociedade americana, não tanto pelos comunistas ou por outros extremistas de Esquerda:

As vozes mais perturbadoras vêm de elementos muito respeitáveis ​​da sociedade, como campus universitários, igrejas, media, intelectuais, jornais, mas também artes, ciências e políticos .

A Direita tem que entender que:

a força reside na organização, no planeamento cuidadoso e de longo prazo, na coerência da acção por um período indefinido de anos, no financiamento disponível apenas através de um esforço unificado, e no poder político obtido apenas com umas organizações unidas e nacionais.

Isto é, formando um exército de activistas extremamente eficazes.

O ataque ao sistema das empresas não foi realizado em poucos meses […] e há razões para acreditar que a universidade é sua única fonte mais dinâmica.

As soluções?:

Estabelecer uma equipa de professores altamente qualificados em ciências sociais que acreditem firmemente no sistema […] Esses professores terão que avaliar os textos das ciências sociais, especialmente em economia, ciência política e sociologia. […] Teremos que desfrutar um relacionamento privilegiado com as influentes escolas de negócios.

Em 1971, na época dos esforços de Powell, os media já eram uma parte central para os jogos do Verdadeiro Poder, mas não na medida desejada. E aqui o advogado não gasta palavras em inúteis rodopios:

As televisões devem ser constantemente monitorizadas da mesma forma que os livros de texto universitários. Isso deve ser aplicado aos aprofundamentos nas televisões, que geralmente contêm as críticas mais insidiosas ao sistema empresarial.

Imprensa e rádio não escapam: “Todos os possíveis veículos devem ser usados para a nossa promoção”; nem as revistas populares, onde “terá que haver um fluxo constante de nossos artigos”; nem as bancas de jornal, onde “há uma oportunidade de educar o público e onde, no entanto, hoje não encontramos publicações atrativas feitas por nós hoje”.

Depois, claramente, os patrocinadores porque quem trabalha neste projecto deve ser pago “ao mesmo nível dos mais famosos empresários e professores universitários”, porque “a nossa presença nos meios de comunicação, nas conferências, nas publicações, na publicidade, nos tribunais e nas comissões legislativas, deve ser soberbamente precisa e de nível excepcional”.

As consequência destes simples conceitos serão enormes: é aqui que nasce a moderna lobby, é assim que os actuais poderes económicos, aqueles que hoje elegem deputados aos quais pagam as campanhas eleitorais porque “o negócio deve aprender que o poder político é indispensável, que deve ser cultivado assiduamente e usado de forma agressiva se necessário, sem constrangimento”. E então:

Quem nos representa deve tornar-se muito mais agressivo, deve pressionar vigorosamente toda a política para nos apoiar, e não devemos hesitar em penalizar aqueles que se opõem.

Quatro anos depois aparece o livro The Crisis of Democracy, de Michel Crozier, Samuel P. Huntington e Joji Watanuki, obra comissionada pela Comissão Trilateral. Este relatório afirma, em termos inequívocos, que “alguns dos problemas do governo nos Estados Unidos hoje resultam de um excesso de democracia […], da necessidade de um maior grau de moderação na quantidade de democracia” e:

A democracia é apenas uma fontes de autoridade e nem sempre é aplicável. Em diferentes instâncias, quem tem mais experiência ou mais antiguidade na hierarquia ou é melhor, pode deixar de lado a legitimidade democrática no reivindicar autoridade para si mesma.

Os três autores escrevem as suas instruções sobre como as elites deveriam proceder em termos muito claros e com uma extraordinária premonição:

O funcionamento eficaz de um sistema democrático requer um nível de apatia por parte de indivíduos e grupos. No passado [antes da década de 1960, ndt] cada sociedade democrática tinha uma população de dimensões variáveis quem estava nas margens, que não participava na política. Isso é inerentemente anti-democrático, mas também foi um dos factores que permitiram que a democracia funcionasse bem.

E foi precisamente essa apatia que foi induzida nas massas do Ocidente por meio duma enorme operação mediática. A explosão do consumismo (onde já não se produz para consumir mas consuma-se para produzir), as actividades inúteis que canalizam as energias da maioria (o football omnipresente, as teorias da conspiração, etc.), a desinformação, a criação de falsos inimigos (psy-ops)… tudo isso desvia do activismo democrático, drogando as massa para que estas não consigam ver quais as suas reais necessidades e quais os seus direitos (atropelados).

Uma sociedade baseada no excesso de mercificação já não é capaz de funcionar como uma democracia deliberativa pois as massas não podem encontrar as forças para desenvolver a sua voz soberana. Uma sociedade deste tipo, tão profundamente transformada pelos media, esmaga permanentemente a capacidade de participar da vida pública. E o objectivo desenhado por Crozier, Huntington e Watanuki é exactamente este:

A história do sucesso da democracia está na assimilação de grandes fatias da população dentro dos valores, atitudes e padrões de consumo da classe média.

Isso significa matar a democracia participativa mantendo vivo o envelope da democracia funcional para as elites. Obviamente com uma boa dose de desemprego porque qualquer ideia de um Estado Social que “teria dado aos trabalhadores garantias e aliviado o desemprego” acabaria numa “deriva desastrosa […] porque teria dado origem a um período de caos social”. Que o Leitor tome nota: não há coisa pior do que um País onde todos trabalham. Quando todos tiverem um emprego, é altura do caos.

Doutro lado, a morte do Estado Social é necessária porque, argumentam os autores, os gastos sociais podem causar uma inflação desastrosa:

A inflação […] poderia ser exacerbada por políticas democrática, e é muito difícil para os sistemas democráticos mantê-la sob controle. A tendência natural de possíveis reivindicações políticas num sistema democrático ajuda os governos a enfrentar os problemas das recessões económicas, em primeiro lugar o desemprego, mas impede o controle efectivo da inflação. Diante das demandas do business, o sindicato e os beneficiários da generosidade do governo, torna-se quase impossível para os governos democráticos reduzirem os gastos, aumentar os impostos e controlar preços e salários. Neste sentido, a inflação é a doença económica das democracias.

Nada menos: as democracias são inevitavelmente mortas pela inflação. E observe o Leitor o uso específico das palavras “generosidade do governo” em oposição às virtudes de “reduzir os gastos, aumentar os impostos e controlar os preços e salários”, associadas à ameaça final da inflação. Estes princípios são precisamente o credo fundamental e os espíritos dos economistas neoclássicos, neomercantis e neoliberais: são os princípios utilizados hoje.

A nossa sociedade, tal como é hoje, foi construída de forma voluntária e consciente ao longo de algumas décadas por estes teóricos ao serviço do Verdadeiro Poder. Depois podemos fechar os olhos ou tentar encontrar um bode expiatório (não acaso, internet é pródiga em fornecer os alvos: é o caso da conspiração dos Illuminati, da conspiração judaica, etc.), fazendo assim triunfar a obra destes pensadores que só desejam um cidadão alienado e inconsciente. Tudo isso não é conspiração, é teoria publicada preto no branco e que ainda é possível encontrar numa boa livraria (ou online: The Crisis of Democracy é gentilmente oferecido como ficheiro Pdf pela Comissão Trilateral; neste link da Washington and Lee School of Law o Powell Memorandum). Mas é uma escolha pessoal, de cada um de nós: queremos continuar a dormir ou, pelo contrário, assumir que estas ideias todas não ficaram no papel mas foram tornadas realidade?

O dinheiro é a chave para entender os mecanismos da actual sociedade. Mas os mecanismos da actual sociedade não nasceram sozinhos, não são acontecimentos frutos da Natureza: foram programados e impostos aos cidadãos através do dinheiro, que neste caso desenvolve paradoxalmente o seu papel original de mero instrumento. Sintetizando: sigam o dinheiro para entender os mecanismos da sociedade; depois sigam as pessoas que gerem o dinheiro para entender quais os objectivos delas e terão o quadro compelto.

Sobra apenas uma pergunta: mas a Esquerda que fez? É o que vamos ver na próxima e última parte do presente Testamento.

(continua)

 

Ipse dixit.

2 Replies to “O Testamento de Informação Incorrecta – Parte IV”

  1. Pós 1988/89/90
    Existem várias “esquerdas”.
    Umas compactuaram
    Outras não perceberam nada, até tarde demais.
    E as mais extremistas.

    N

  2. Caro Max: é como se estivesses escrevendo para os brasileiros (aqueles que ainda conseguem entender um texto, e são poucos). Pelo visto não vais apontar possibilidades, até porque ao que me parece, elas não existem. Não é um comentário pessimista. Aqui a indiferença é a regra, e faz muito tempo. Só para exemplificar. observem os dados : no golpe civil-militar de 1964, quando o nível de engajamento estava no ápice, entre militares, policiais, financiadores do golpe, terroristas, militantes e apoiadores de “esquerda”, a guerra alcançou uma média de 10 mil pessoas. Na altura éramos 90 milhões de humanos passíveis de engajamento em qualquer lado da guerra! Não lhes parece que a indiferença domina nossa gente? Não vou deixar hipóteses por que as respostas variam muito e eu não tenho uma definitiva. Apenas me espanto. E talvez o meu espanto apenas em reconhecer que perdemos.

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