25 de Abril: Dia da Liberdade

– Sente-se, sente-se caro Luik. Então, feito uma boa viagem?

– Sim, Excelência, tudo correu lindamente, tal como a infinita sabedoria de Sua Excelência tinha previsto.

– Pois, caro Luik, chama-se “experiência”: é daí que tudo nasce. Pessoalmente tinha visitado aquela remota região da galáxia há muitos eones, quando ainda no céu brilhava a magnífica Actaron… coisas antigas, coisas do passado. Mas diga-me, caro Luik, diga-me como evoluiu a situação: na altura da minha viagem as coisas não estavam nada bem. Povos sempre em guerras, doenças, fome… o que encontrou afinal?

– Sua Excelência, preparei um meticuloso relatório que poderá consultar no Seu estúdio, quando assim desejar. Mas é uma grande honra poder antecipar já agora os principais conteúdos. E lamento informa-La de que a situação não melhorou, antes pelo contrário.

– Pelo contrário?!?

– Sim, Sua Excelência. Permita-me que possa falar-Lhe da organização social no planeta por nós conhecido como Hurdok.

– Avance, Luik, avance.

– Hurdok encontra-se dividido em três partes: Patriciado, Plebe e Trabalhadores.

– Já na altura tinha encontrado tal divisão: Aristocratas, Religioso e Plebeus.

– Pois, Excelência, mas agora as coisas estão um pouco diferentes neste aspecto. O Patriciado é absolutamente improdutivo, goza dos máximos privilégios. Justiça, política, sector dos negócios, fãs dos desastres, papoulas militares, segredos, bispos, migrantes, gânglios administrativos e oncológicos dos antigos Estados. O Patriciado é uma classe de absolutos parasitas.

– Não que no passado fizessem muito mais. Lembro que já na altura da minha viagem existia esta classe, mas pensava que com o tempo tivesse desaparecido, que a evolução tivesse seguido o seu caminho. E as outras classes, o que fazem? Não protestam, não lutam para que a Justiça triunfe?

– Nem por isso. A Plebe produz o que pode, relegada às margens, sem nenhum direito. Gosta de chamar-se “classe média” e vive numa condição de pequena subsistência, com algumas comodidades residuais. Residuais mas muito bem pagas. Os Plebeus são frequentemente estimulados, e com sucesso, contra os Trabalhadores quando estes tentam levantar a cabeça. Mas no geral, a Plebe contenta-se com ninharias electrónicas nas quais gasta boa parte do salário, com meios de locomoção e com um típico jogo local, o futebol.

– Como os vidrinhos coloridos e os espelhos das sociedades mais primitivas? Então regrediram. Uma pena. E os Trabalhadores?

– São os mais desgraçados. Em algumas zonas do planeta encontram-se em fase de rápida extinção, representando, talvez e de acordo com estimativas optimistas, 25% da população. São os únicos que produzem rendimentos, capitais, trabalho; no geral são eles que estabelecem as bases para que o sistema possa continuar.

– Não entendo: são os únicos que produzem… então devem ser ricos! Como é que não mandam?

– Nem pensar: os Trabalhadores pagam impostos e taxas mas não recebem benefícios em troca. Sistematicamente negligenciados pelo Estado, costumam ser culpados pelos piores crimes: evasão fiscal, fascismo, comunismo, racismo, populismo…

– Uhi quantos -ismos… Então tudo está nas mãos do Patriciado? E como conseguem isso?

– Elaboraram um esquema interessante, Sua Excelência. Aparentemente o Patriciado é variegado por dentro, mas possui algumas regras de ouro que, em caso de necessidade, são seguidas por todos os membros, independentemente da longitude ou da latitude. Tais regras são:

1. O Patriciado tem o único propósito de perpetrar-se.
2. Este propósito justifica a destruição de tudo, excepto do Patriciado.
3. Fora do Patriciado existem apenas indivíduos que devem ser combatidos ou manipulados.
4. O Patriciado é endogámico: os membros casam-se entre eles para não desperdiçar o património e o poder.
5. O Patríciado vive exclusivamente de dinheiro obtido com a usura e dos privilégios públicos (dívida, taxas, impostos).
6. O Patriciado glorifica exclusivamente os seus próprios membros
7. É possível entrar no Patriciado por uma questão de sangue, por posse de dinheiro público ou, mais raramente, por cooptação direta.
8. O Patriciado encena periódicas lutas internas para simular o dinamismo social com as eleições.
9. O Patriciado adora fazer-se passar por Plebeu ou até Trabalhador.

– Percebo: a velha aristocracia…

– Não apenas ela, Sua Excelência. Os tempos mudaram e hoje o Patriciado recebe exponentes de mais categorias. Além dos usurários profissionais e dos predadores de dinheiro público, há toda uma selva de indivíduos que gozam de privilégios absurdos em troca da manutenção inalterada da situação. Jornalistas, escritores, opinionistas, associações de duvidosa utilidade, advogados, sindicalistas, homens de espectáculo…

– Meu caro Luik, continuo a não entender: se o Patriciado for composto por estes indivíduos repugnantes, por qual razão as outras duas classes não tentam reagir?

– Sua Excelência, os Plebeus e os Trabalhadores não têm autoconsciência. Simplesmente “são” mas não sabem de ser. Enfurecidos, continuam a apoiar os membros do Patriciado na ilusão de que estes possam fazer algo para melhorar a condição deles.

– Plebeus e Trabalhadores acham que a classe que está a explora-los poderia mudar a tal situação? Isso não tem sentido nenhum!

– Exacto, Sua Excelência, exacto. Na base dessa ilusão, permanecem os conceitos risíveis, mas ainda muito eficazes pois elevados a um grau metafísico, de “direita” e “esquerda”. São os principais -ismos dos quais Sua Excelência falou antes.

– “Direita”, “esquerda”… o que significa isso?

– Vou fazer um exemplo. Um Trabalhador, de boa fé, acredita que a “direita” pode mudar as coisas. E, portanto, contra a “esquerda”, torce pela “direita” e para as personagens contíguas a esta área fantasmal. Na realidade, só apoia o Patriciado que, com razão pois está na natureza dele, continuará a cuidar dos seus próprios interesses. Quando a desilusão chega, o que é sistemático, o Trabalhador frequentemente acusa a “esquerda” ou alguns personagens da “direita” que não levaram em conta os verdadeiros princípios da “direita”: se o tivessem feito, raciocina o Trabalhador, se tivessem sido suficientemente de “direita”, não teríamos tido a desilusão. Esta forma mental faz com que o mal-entendido se perpetue sem fim.

– Uma espécie de ratito que continua a correr na sua roda.

– Exactamente, Sua Excelência: a roda da credulidade. Outro exemplo: um Plebeu, de boa fé, acredita que a “esquerda” pode mudar as coisas. E, portanto, contra a “direita”, torce pela “esquerda” e personagens contíguas a essa área fantasmática. Na realidade, só apoia o Patriciado que, com razão pois é na sua natureza, continuará a cuidar de seus próprios negócios. Quando a desilusão chega, o que é sistemático, o Plebeu muitas vezes acusa os personagens da “direita” ou os “esquerdistas” que não levaram em conta os verdadeiros princípios da “esquerda”: se o tivessem feito, raciocina o Plebeu, se tivessem sido suficientemente de “esquerda”, não teríamos tido a desilusão. Esta forma mental faz com que o mal-entendido se perpetue sem fim. É a tal roda da credulidade.

– Mas esta última é a mesma forma mental do exemplo anterior.

– Idêntica. Os dois exemplos, claro, podem variar com inúmeras nuances psicológicas, até chegar à inversão, com o Plebeu que, de boa fé, acredita que a “direita” pode mudar as coisas ou com um Trabalhador, de boa fé, que acredita que a “esquerda” pode mudar as coisas. Mas, em boa verdade, trata-se da mesma forma mental. E, no longo prazo, ninguém escapa desse domínio psicológico.

– E ninguém repara na perniciosidade deste esquema?

– Ninguém, Sua Excelência.

– Estou a ver: este Patriciado conseguiu estupidificar as outras duas classes… atingiram a imortalidade também?

– Nada disso, Sua Excelência! Se um Patrício não pode afundar os caninos no dinheiro público, deteriora-se num prazo de tempo muito curto e, nos casos mais extremos, pode até morrer. A velocidade com que esse processo ocorre assemelha-se ao caso do vampiro capturado pelos primeiros raios da aurora. O chicote da luz! Ele levanta os braços para defender-se daquela clareza inesperada; depois, oprimido, cai no chão, abalado pelas convulsões no meio dum sentimento muito forte e bestial, no qual o ódio, a consternação, a surpresa e sede de vingança são misturados. Depois o corpo, na verdade uma massa de carne apodrecida mantida viva apenas pelo dinheiro das vítimas, começa lentamente a fumegar numa fragrância pestilenta: até o ponto de consumir-se totalmente, sem que nada fica senão um traço muito fino.

– Que horror!

– Sim, um autêntico horror, Sua Excelência. Mas um caso extremamente raro. O infeliz Patrício costuma ser universalmente lamentado pelos outros membros do Patriciado num trovejante e lamentável concerto de sons no qual o ódio, a consternação, a surpresa, a sede de vingança coexistem, devidamente misturados. Mas repito, Sua Excelência: a dissolução deste Patriciado  vampiro representa um caso raríssimo. O Patriciado resistirá até a última usura, até o último tijolo público vendido em nome do lucro no leilão da civilização.

– E depois?

– Depois tratará as condições da sua rendição e entregará ao futuro inimigo as chaves das portas da cidade para que seja espalhado o sal.

– O Esquecimento…

– Pior, Sua Excelência, pior: a auto-absolvição: julga Deus pelas suas criaturas quando estas estiverem mortas? (1) A auto-absolvição para poder recomeçar.

– Pois, algo que tem de ser impedido. Faça fechar o inteiro quadrante, melhor que certas ideias não se espalhem nos outros mundos. Até pode ser infeccioso, quem sabe?

– Justo, Excelência, justo. Mas trouxe alguns presentes para Sua Excelência…

– Presentes? Foi muito simpático de sua parte, caro Luik.

– Ora essa! Eis os meus humildes presentes: uma bandeira usada nas manifestações que ocorrem no dia de hoje em duas zonas de Hurduk chamadas “Portugal” e “Italia”.

– Manifestações?

– Sim, Plebeus e Trabalhadores festejam… a Liberdade.

– A Liberdade?!? Mas são escravos! Aquele Patriciado trabalhou mesmo bem…

– Depois, Sua excelência, eis o holograma de Donald Trump, na prática o actual chefe do planeta.

– Tem cara simpática. Mas o que tem na cabeça?

– Não percebi, deve ser o gato dele.

– Sim, parece…

– Depois, Sua Excelência, a mais bonita das camisolas utilizadas nos vários campeonatos de futebol.

– Muito bonita, de facto.

– Sim, foi eleita também como melhor camisola do mundo. É da Sampdoria. Depois temos um link.

– Link de quê?

– Dum blog, tal Informação Incorrecta. O autor é Leonardo, um cão, enquanto quem escreve é supostamente um indivíduo chamado “Max”, nome que bem pode ser o pseudónimo do mesmo cão até. Mas o que conta são os Leitores, muitos dos quais comentam, e as ideias. Interessante: tentam entender o que se passa e apresentar um olhar alternativo sobre a realidade da qual falámos há pouco. E hoje mesmo o blog festeja dez anos de existência.

– Dez anos, ideias alternativas… então deve ter milhões de seguidores!

– Nem por isso: é um blog para poucos. Aliás, o verdadeiro autor, Leonardo, pediu-me para que Lhe entregasse uma sua mensagem pessoal.

– Uma mensagem do autor do blog?

– Sim, Sua Excelência.

– Que engraçado. E o que diz?

– “Tirem-me daqui!”

 

Ipse dixit.

(1) “Do you judge God by his creatures when they are dead?”, Genesis, Watcher of the Skies.

4 Replies to “25 de Abril: Dia da Liberdade”

  1. Parabéns a todos nós que ainda temos 2 neurônios que eu chamo tico e teco!! Será que temos? Prefiro acreditar que temos. Bom…para aí… Não sei se devemos congratularmos ou nos lamentar. Porcaria, não sei coisa nenhuma.
    Mas viva nós Max, não para festejar a liberdade, mas para comemorar nossa irmandade de 10 anos. Com o Léo, naturalmente.
    Abraços para todos. Ha, sem esquecer, magnífica peça literária!!!!

  2. Os méritos são todos seus, Max.

    Acompanho o blog há alguns anos e procuro divulgar seus posts a todo conhecido, que eu ache que vá se interessar pelo assunto em questão. É a minha forma de agradecimento.

    Moro numa cidade , onde de cada 20 eleitores, 15 , apoiaram o retrocesso cultural, a censura , o preconceito , o estado opressor. Como vc citou , é a Plebe (que se acha rica ) aliando-se ao Patriciado para obter mais regalias. E o que é pior ainda , usando o nome de Deus.

    Também não vejo muita razão em comemorar a liberdade, acho mais apropriado homenagear a todos que lutam para fazer com que as pessoas pensem um pouco fora da “matrix”. No final desse mês de Abril, fará 2 anos da morte do cantor e compositor brasileiro e nordestino, Belchior. Ele, apesar de ter optado pelo anonimato no final de sua vida, também usou sua palavra-cantada ( como ele mesmo dizia ) para instigar as mentes das pessoas. Cito suas palavras, como uma homenagem aos 10 anos do II e a sua comunidade:

    “Eu vos direi, no entanto
    Enquanto houver espaço, corpo e tempo e algum modo de dizer não
    Eu canto”

    “Divina Comedia Humana ” , Belchior ( 1946-2017)

    Forte abraço .

  3. Parabéns, Max. Tenho muito prazer em ler seus artigos e admiro muito sua cultura e inteligência ( pode ser que sejam fruto da convivência com o cão kkkk ) Aqui no Rio de Janeiro , além de termos que aguentar a estupidez do Bolsonaro ainda o povo elegeu um governador tão estúpido e incapaz quanto o Bozo ( esta é a forma carinhosa como trato o presidente ), e como nada está tão ruim que não possa piorar , o nosso prefeito é um pastor que parece ter o cérebro com muito poucos neurônios . Enfim , apesar disto vou sobrevivendo.

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