Breve história do jornalismo de guerra

Foi em 1853 que o facto ocorreu, na Crimeia. Pela primeira vez, um observador, uma espécie de testemunha neutra, foi chamado para falar sobre a guerra. Não um cantor ao serviço do príncipe, não um general de letras ou um lutador literato, mas um jornalista. Aconteceu quando a Rainha Vitória pediu ao Times de Londres para dar ênfase útil àquela guerra distante e impopular.

Roger Fenton

Já na altura muitas das escolhas eram solicitadas pelos poderosos. Mas o Times enviou para o local Roger Fenton, o primeiro repórter de guerra na história, que fez bem o seu trabalho: escreveu sobre a guerra da Crimeia de acordo com a prosa do tempo, com muitas palavras “importantes”, mas também com muito realismo e fotografias. Foi assim que os “caídos” tornaram-se mortos, as “retiradas” tornaram-se soldados em fuga e as batalhas foram contadas como confrontos selvagens e desordenados, com comandantes nem sempre heroicos mas muitas vezes incapazes e covardes.

Naquele distante ano de 1853, foi quebrada a tradição das guerras vistas como algo a ser administrado entre os privilegiados: generais, príncipes, reis e políticos. Até então, o camponês ao qual tinham substituído a enxada com uma caçadeira, frequentemente morria sem despertar escândalo: a guerra estava na ordem dos eventos naturais, como o granizo ou a doença. O sofrimento do soldado não fazia notícia. Doutro lado, havia grande cuidado em explicar qual o destino do Homem, “nascido para sofrer”, apesar de alguns sofrerem um pouco mais do que outros.

O caminho começado por Fenton em 1853 mudou a perspectiva ao longo dos anos seguintes: se a guerra era uma barbaridade e o jornalista podia relatar isso, o espaço dedicado à notícia era definido pelos jornais e não por quem escrevia. O mesmo poder político e económico que decidia as guerras possuía ou controlava os jornais, pelo que as palavras deviam ser escolhidas com atenção. Nasceu a propaganda.

Armas e palavras voam

Um salto até 1914. Por altura da Primeira Guerra Mundial, cada exército já tem os seus jornalistas-patriotas, técnicos de informação nas linhas da frente com a tropa. Aliás, com a “sua tropa”. Os cronistas vestem uniformes, têm o grau simbólico de oficial e escrevem do “nosso exército”, dos “nossos caídos”, do “nosso avançado” e, obviamente, do “inimigo”. Nem todos os jornalistas pensam da mesma maneira, entre eles há excepções como Ernest Heminguay. Mas não podemos esquecer que os soldados-jornalistas são utilizados pelos Comandos, que decidem quem e quando podem ver o quê.

Durante os anos 1900, tanto no mundo militar como no mundo jornalístico, ocorre uma verdadeira revolução. As armas e as palavras voam, literalmente. Na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) aparecem os primeiros aviões de asa dupla, armações de madeira e cobertura de tecido: e os telégrafos. Na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a aviação é agora a arma determinante enquanto as notícias chegam instantaneamente através da rádio. Guerra e comunicação movem-se a velocidades antes inimagináveis: são mais difíceis de controlar. Também porque as frentes de guerra multiplicam-se e com elas as possíveis fontes de informação: não apenas jornalistas, mas simples testemunhas civis. Portanto, aumenta cada vez mais a necessidade de impor uma versão dos factos através da propaganda.

Fazer propaganda significa tentar convencer as pessoas a compartilhar ou querer algo, seja uma ideia, um valor político, uma mercadoria, uma moda, uma paixão. A propaganda hoje é sinónimo de publicidade, e a publicidade é sinónimo de diários, televisões e internet. Aquele noticiário tentará convencer o público que aquele governo é sempre bom ou sempre mau: aquele mesmo noticiário escolherá entre as muitas guerras em andamento para focar-se naquela que merece mais atenção política. Uma escolha não baseada nos factos que acontecem mas no objectivo de convencer o público acerca duma determinada linha política.

As duas armas totais

Até a Segunda Guerra Mundial, a história da guerra nas mãos dos jornalistas ainda não alcança o nível de certas promoções “publicitárias”. O repórter de guerra é uma pequena roda no enorme mas lento mecanismo da propaganda. Mas na segunda metade de 1900 as coisas mudam: o fim da Segunda Guerra Mundial deixa como herança duas armas de destruição maciça.

Com a “nova ordem mundial”, da qual ainda experimentamos algumas consequências, aparecem no campo novidades chocantes, tanto no campo político-militar quanto no campo do conhecimento e da informação. Por um lado a bomba atómica, por outro a televisão. As duas armas totais. Os dois mundos, o da guerra e o da informação, desde então e durante todos os últimos sessenta anos, confrontam-se com essas inovações disruptivas, que existem num relacionamento às vezes perverso, mais frequentemente de cumplicidade.

A bomba atómica americana é testada em 1945 sobre a população indefesa de Hiroshima e Nagasaki, no Japão, com centenas de milhares de mortes. A televisão funciona em guerra e mostra todo o seu poder alguns anos depois, no campo de batalha vietnamita. As imagens dos soldados americanos mortos nas selvas do Sudeste Asiático chegam aos Estados Unidos na altura do pequeno almoço e perturbam a sensibilidade dos cidadãos: afinal na guerra morre-se e morre-se mal.

A lição do Vietnam

A campanha do Vietnam, graças sobretudo à cobertura televisiva, perde o apoio popular, nacional e internacional: cai o consenso necessário para o governo americano levá-la adiante e impõe um retrocesso na política e no aparato militar. Primeira e última vez em que o poder da informação e da opinião pública conquista o aparato militar e de propaganda política.

Desde então, a modernidade das guerras nunca declaradas valorizaram a “lição do Vietnam”. Desde então, políticos e generais tentam de todas as maneiras manter os olhos do mundo afastados ou domar o testemunho jornalístico. Granada, Panamá, Falkland-Malvinas: guerras recentes quase invisíveis, nas quais os militares adoptaram a primeira “contra-ofensiva” anti-jornalística depois do Vietnam. Pequenas guerras distantes: mais fácil a censura, simplesmente impedindo ou limitando a presença de jornalistas, excepto aqueles dispostos a dizer coisas “simpáticas”.

A morte do jornalismo de guerra

Com a Guerra do Golfo de 1991 contra o Iraque de Saddam Hussein, o mundo político-militar dobra definitivamente o mundo da informação. Há de facto uma única fonte jornalística, aquela dos aliados anti-Saddam. Imagens dos atentados, a partir dos bombardeiros durante os ataques ou as esverdeadas das nocturnas invadem a televisão. Exército ou CNN? Não há diferença, é a mesma coisa. O mundo da informação curva-se ao esmagador poder do aparato político militar e torna-se no trompetista das novas “guerras santas”, aquelas em que há apenas um bem absoluto e um vilão absoluto. É a morte do jornalismo de guerra, que corre paralelamente à morte do jornalismo na sociedade.

A intervenção “humanitária” na ex-Jugoslávia, a “ação policial internacional” contra o terrorismo de Osama bin Laden no Afeganistão, a “libertação” da Líbia: em cada um desses casos, o poder político-militar reduziu o papel da informação para torna-lo parte da exaltação do “nobre” conflito.

“Idealpolitik” é definida pelos generais: serve para encobrir a vergonha das guerras, a “realpolitik” de destruição, a morte e o sofrimento. Uma espécie de medicina com sabor pestilento mas embala-da com muito açúcar e embrulhada com cores bonitas. Um truque de prestígio que acontece também com as palavras: “conflito”, “acção”, “intervenção armada”, “acções policiais internacionais”, “manutenção da paz”, “defesa activa”. Tudo para não usar a simples mas perturbadora palavra “guerra”. Até os “morto” mudam para “perdas” ou “danos colaterais”. As bombas são “inteligentes” porque não matam pessoas inocentes. Aliás, hoje é explicado que os bons sempre usam bombas “inteligentes”.

Pena que, ao reler os dados da guerra na antiga Jugoslávia, aprendemos que a força aérea americana tinha usado apenas oito por cento de bombas inteligentes. O que significa 92% de bombas deficientes, aquelas que atingem casas, escolas, hospitais, aquelas que matam inocentes. Tal como acontece em qualquer guerra, desde sempre.

 

Ipse dixit.

Imagens:

  • em abertura: o carro de Roger Fenton;
  • outras imagens: Guerra de Crimeia.

2 Replies to “Breve história do jornalismo de guerra”

  1. Tudo serve para adoçar a barbaridade animalesca do ser humano como algo necessário, resumida em toda a sua historia: Guerra e Morte.
    Cada vez mais a evolução humana caminha em um só sentido, contra o próprio ser humano.
    Comemos à mesa com a morte nas notícias como se fosse parte da ementa, sem sentido pelo sofrimento de um pai/mãe que teve o seu filho morto, por causas para benefício de alguns e pura hipocrisia de outros.

  2. Aqui pelas vizinhanças falta fotos, vídeos, documentários sobre Nicarágua, Honduras, Guatemala, Granada. Nomeio esses porque fala-se de acontecimentos beligerantes, mas na verdade, pouco se expõe. Prefere-se, creio, coisas que dão mais audiência, tipo: Venezuela e a guerra nuclear, a terceira guerra a caminho, estamos próximos do fim do mundo?. Eu não entendo porque os “espectadores” gostam tanto de perceberem-se protagonistas da terceira guerra mundial. Talvez devido ao espetáculo vibrante, colorido…mas seria mais rápido que um show musical, provavelmente. Só sei que esta perspectiva fascina a maioria dos humanos…a adrenalina, quem sabe. Sei que se ocorrer uso de energia nuclear, será em situações muito localizadas, de pouco alcance, usadas como dissuasão ou alerta, mas toda gente prefere aquela grandiosa, letal total…epopeia, embora jurem o contrário.
    Me parece curioso, mas ao longo do tempo as pessoas se aproximaram do gosto pela carnificina como espetáculo, e não ao contrário; e na medida em que falam de paz, necessitam da guerra sem fim para se sentirem vivas. Quem sabe seja o efeito da propaganda, como historia o Max, neste artigo que faz pensar.
    Já vi muita coisa da Síria, do Iraque, do Afeganistão principalmente , é claro, a favor da ocupação. Não alcanço o Iêmen, países africanos (com exceção da Líbia), os cantões perdidos da Ásia, acontecimentos do palco das operações. Vejo fotos e artigos sobre as consequências, como daquele menino iemenita, magérrimo, com mil ferimentos já em tratamento. Creio que aquela foto merece um Pulitzer porque o olhar do garoto conta a desgraça dos seus compatriotas, entre a surpresa, o desatino, a altivez e a desesperança. Mas ainda me surpreende o fato de se falar em demasia de alguns lugares e o silêncio sobre outros. Não sei se assim é em todo o mundo.

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