8 Março: para ser escrava modelo

Hoje é o dia 9 de Março. Isso significa que ontem era o 8 de Março. Acerca disso acho que todos podemos concordar, também porque tenho pessoas prontas a testemunhar. Para mim, o dia de ontem ficará na história como o dia em que fui retirar o carro da oficina e paguei 100 Euros. Nem foi tão mal assim. Para milhões de mulheres ficará na memória como outro dia 8 de Março, Dia Internacional da Mulher. O que é o Dia Internacional da Mulher?

Da página do PCP, o Partido Comunista Português:

O PCP assinala, como é habitual, o Dia Internacional da Mulher com acções em todo o País, tendo por base a distribuição de um documento dirigido às mulheres, que saudamos particularmente.

Nesta mensagem o PCP assume o compromisso de lutar por uma nova política que assegure os direitos das mulheres enquanto trabalhadoras, cidadãs e mães, porque essa é a condição necessária para que possam viver, trabalhar e participar em igualdade em todas as esferas da vida, dando-lhes igualmente a confiança para se assumirem como protagonistas das mudanças que desejam para as suas vidas. […] O PCP chama a atenção para a natureza das opções económicas e sociais de sucessivos governos da política de direita que inverteram o rumo de Abril, transformando Portugal num País mais desigual, periférico e dependente, acentuando as discriminações sobre as mulheres e criando novos obstáculos à sua participação em igualdade, enquanto trabalhadoras, cidadãs e mães.

A política de direita de sucessivos governos do PS, PSD e CDS é responsável pelo fosso entre a lei e a vida e as reiteradas promessas de igualdade têm servido para ocultar as consequências negativas na vida das mulheres, em resultado da generalização da precariedade laboral, desregulação de horários, salários baixos, discriminações salariais, degradação do estatuto sócio-profissional das mulheres no sector público e privado, privatização dos serviços públicos e degradação das funções sociais do Estado, ausência de eficácia nas medidas de prevenção e combate à violência doméstica, a par da ausência de mecanismos de protecção às mulheres prostituídas, uma forma brutal de violência deliberadamente desvalorizada e silenciada.

Reparem quantas vezes é repetido o conceito de “mulher trabalhadora”. Para as mulheres prostituída ou vítimas de violência doméstica só duas linhas: o resto é só “mulher trabalhadora”. Não é um acaso, pois nestes dias muito foi falado nos media do relacionamento entre mulheres e trabalho: acontece que as mulheres que desenvolvem as mesmas funções dos homens ganham menos. Isso é um absurdo: mesmas funções requerem mesmo salário, não há muito para dizer a não ser que a sociedade tem que apressar-se para eliminar esta que é uma indecência.

Nem vale a pena falar de violência domestica, exploração da prostituição ou até de “rituais” como a mutilação genital feminina, como lembrava Maria há alguns dias: todas práticas alucinantes que não podem encontrar espaço em nenhuma sociedade e devem ser combatidas com tolerância zero. Neste aspecto, a nossa sociedade tem ainda que empenhar-se com maior esforço para erradicar tais pragas (mas não seria mal falar também da violência doméstica sofrida pelos homens, porque existe).

Mas aqui gostaria de realçar um facto curioso: em nenhuma manifestação vi pedir o respeito dum direito da mulher, o direito de não trabalhar. Bom, na verdade este deveria ser um direito também dos homens, mas dado que o tema aqui é a mulher, vamos falar da vertente feminina.

Ponto de partida inalienável: todas as mulheres devem ter pares oportunidades no mundo do trabalho. Isso significa que é a mulher que tem que decidir o que fazer da sua própria vida. Quer trabalhar, ter sucesso, tornar-se uma CEO? Nada deve poder impedir isso, qualquer barreira deve ser eliminada: não podem ser admitidas dúvidas.

Mas se a mulher preferir ficar em casa, cuidar dos filhos? Não falamos aqui do estereótipo da mulher que cozinha, remenda, muda as fraldas, nada disso. Falamos duma mulher que não quer ser a enésima engrenagem da nossa sociedade esquizofrénica baseada no dogma produzir-consumir-morrer. Falamos duma mulher que deseje ser livre. Livre, por exemplo, de crescer os filhos, se assim desejar, em vez de depositá-los de manhã na creche para levanta-los só no final do dia. Ou livre de conduzir uma vida diferente: de estudar pelo prazer de aprender, não para ser enfiada obrigatoriamente no círculo escravagista do produtividade forçada.

Hoje a mulher não está livre: tem que trabalhar porque um ordenado só em casa não chega. Portanto todos os direitos reivindicados no mundo do trabalho (que, repito, devem ser reconhecidos como sendo iguais aos do homem) na verdade são apenas consequência duma escolha forçada. Dito de outra forma: não há a possibilidade para uma autêntica escolha, no máximo pode-se lutar para melhorar uma condição que é imposta.

Quanto dito no caso da mulher pode ser repetido no caso do homem: a moderna sociedade tem conseguido transformar ambos os país em trabalhadores forçados, independentemente do sexo. Repito: não há escolha. Hoje a família é aquela que é dividida de manhã (trabalho e creche) e consegue reunir-se só no final do dia, altura em que é preciso tratar de mil coisas: à família são dedicadas as sobras. Qual é o Dia da Família? Quantos sabem isso? Quantas manifestações há para o Dia da Família (dia 15 de Maio)?

Em Italia foi introduzida a reforma para as donas (ou os donos) de casa e fala-se agora dum bónus, isso é, um montante que o Estado paga de vez em quando a quem decide ficar a cuidar da casa (e, eventualmente, desenvolver um trabalho part-time). É algo, mas fica longe de ser suficiente: ficar em casa, cuidar da casa, da educação dos filhos, deveria ser visto como um trabalho e como tal regularmente remunerado. A mulher ou o homem que decidir ficar em casa não se limita a crescer os filhos (o que já por si é fundamental), mas revitaliza a instituição da família que volta a ser o centro da sociedade, tal como sempre foi, mantém vivos os laços interpessoais na comunidade, ajuda o comércio local e mais ainda. Se mais homens ou mulheres decidissem ficar em casa, não haveria bairros-dormitórios: haveria bairros com vida.

Tudo isso não tem lugar no Dia 8 de Março, que se torna assim o dia da mulher que sofre de “precariedade laboral, desregulação de horários, salários baixos, discriminações salariais, degradação do estatuto sócio-profissional das mulheres no sector público e privado” nas palavras do PCP. E nem falamos aqui dos delírios feministas, aos menos evitamos isso.

Dia 8 de Março: uma ocasião atirada pela janela.

 

Ipse dixit.

Fonte: Partido Comunista Português – O PCP no Dia Internacional da Mulher 2019

One Reply to “8 Março: para ser escrava modelo”

  1. Por traz de tudo isso jaz a compreensão do que seja uma sociedade, como o nome indica, sócios que inventam formas de organização para compartilhar a vida e garantir a sobrevivência de todos (as). As sociedades guardaram o nome, mas são um aglomerado de gente que unidos uns CONTRA os outros tentam sobreviver na forma piramidal. Uma inversão do pensamento neste sentido demanda tempo liberto da sobrevivência garantida pelo trabalho, convivência e diálogo, a quase impossível prática do compartilhamento por opção, por puro prazer. Devo estar delirando…é provável. Mas sei que é um grande erro chamar de trabalho apenas o que é feito para o aproveitamento de alguém indefinido, e chamar de não trabalho o que se faz para um próximo conhecido ou para si mesmo. E sei que está errado porque em geral o que chamam trabalho é uma atividade que as pessoas não gostam, ou pelo menos não gostariam de fazer o dia todo, e quase todos os dias. O fazem , e procuram por ele desesperadamente porque é o que lhe oferecem para garantir o sustento. Mas o uso compulsório do tempo das pessoas sabe-se que é fonte segura de alienação. Observo isso a minha volta. Quando os pais da Mariazinha viviam comunitariamente em Terra Âncora gostavam de ler, estudar, chegaram a organizar com o pessoal e comigo horas de assistência a filmes e posterior discussão comigo, pediram aulas e tínhamos tempo de viver tudo isso. Quando foram preferir ser funcionários, em função de uma suposta segurança, que hoje sabem não existir, acabou o tempo. Hoje lamentam que o que aprenderam foi naquela época. Mais uma oportunidade perdida.

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