Venezuela: dois Presidentes, dois fora de lei

Tentamos fazer um pouco de clareza no caos da Venezuela. Dado que tanto os pró-Maduro quanto os anti-Maduro exigem o respeito da legalidade, vamos o que diz a legalidade.

Começamos com o 2013, ano em que Nicolas Maduro venceu as primeiras eleições Presidenciais do após Chávez e obteve um mandato. De acordo com o artigo nº 230 da Constituição:

Artículo 230. El período presidencial es de seis años. El Presidente o Presidenta de la República puede ser reelegido o reelegida, de inmediato y por una sola vez, para un nuevo período.

Tradução: “Artigo 230. O mandato presidencial é de seis anos. O Presidente da República pode ser reeleito ou reeleito, imediatamente e apenas uma vez, por um novo mandato”.

Nos termos da Constituição, o mandato de Maduro deveria ter terminado oficialmente no dia 9 de Janeiro de 2019 porque na Venezuela os Presidentes tomam posse no dia 10 de Janeiro e acabam o mandato no dia anterior. Houve eleições, nas quais a maioria dos venezuelanos não participou (54% de abstenção): todavia a Constituição não prevê um mínimo de participação para a eleição do Presidente, fala simplesmente em maioria dos votos:

Artículo 228. La elección del Presidente o Presidenta de la República se hará por votación universal, directa y secreta, en conformidad con la ley. Se proclamará electo o electa el candidato o la candidata que hubiere obtenido la mayoría de votos válidos.

Tradução: “Artigo 228.º A eleição do Presidente da República é feita por escrutínio universal, directo e secreto, nos termos da lei. O candidato que obtiver a maioria dos votos válidos será proclamado eleito”.

Pelo que Maduro ganhou. Acabou? Nem por isso.

As eleições são o ponto de viragem da crise venezuelana: a oposição não reconhece a eleição de Maduro. Pode fazê-lo? Acho que não: na Constituição não encontrei nada acerca disso e a eleição deve ser considerada válida.

No dia 23 de Janeiro, Jaun Guaidó, Presidente da Assembleia Nacional da Venezuela, proclama-se Presidente interino do País invocando um emenda constitucional que permite ao chefe da legislatura liderar um governo provisório até que novas eleições possam ser realizadas. Guaidó tem legitimidade para fazer isso?

Vamos ver o que diz a Constituição acerca:

Artículo 233. Serán faltas absolutas del Presidente o Presidenta de la República: su muerte, su renuncia, o su destitución decretada por sentencia del Tribunal Supremo de Justicia, su incapacidad física o mental permanente certificada por una junta médica designada por el Tribunal Supremo de Justicia y con aprobación de la Asamblea Nacional, el abandono del cargo, declarado como tal por la Asamblea Nacional, así como la revocación popular de su mandato.

Traduzido: “Artigo 233. Serão faltas absolutas do Presidente da República: a sua morte, a sua renúncia ou a sua demissão decretada por sentença do Supremo Tribunal de Justiça, a sua incapacidade física ou mental permanente certificada por um conselho médico nomeado pelo Supremo Tribunal de Justiça e com a aprovação da Assembleia Nacional, o abandono do cargo, declarado como tal pela Assembleia Nacional, bem como por revogação popular do seu mandato”.

Maduro não morreu, não abdicou e nem apresentou as demissões. Todavia a Constituição fala de “revogação popular do seu mandato”: é legítimo que o Presidente seja revogado pelo povo. E aqui fica a dúvida: quantos venezuelanos seguem Maduro e quantos a oposição? Como vimos, a eleição presidencial viu uma abstenção de 54%, todavia seria incorrecto assumir que todos os eleitores que não participaram estivessem contra Maduro. Aliás, a eleição é feita mesmo para estabelecer qual o candidato que reúne a maior preferência: quem não participa abdica deste direito. Portanto Maduro deve ser considerado o legítimo Presidente enquanto Guaidó, eventualmente, tem de demonstrar de “representar o povo”.

Mas atenção, é importante lembrar disso:

Artículo 70. Son medios de participación y protagonismo del pueblo en ejercicio de su soberanía, en lo político: la elección de cargos públicos, el referendo, la consulta popular, la revocatoria del mandato, las iniciativas legislativa, constitucional y constituyente […]

Tradução: “Art. 70. São meios de participação e protagonismo do povo no exercício da sua soberania, na política: a eleição de cargos públicos, o referendo, a consulta popular, a revogação do mandato, as iniciativas legislativas, constitucionais e constituintes, o conselho aberto […]”.

A Constituição põe no mesmo plano de importância tanto a eleição de cargos públicos quanto a revogação do mandato. Mas como funciona a revogação?

Artículo 72. Todos los cargos y magistraturas de elección popular son revocables.

Transcurrida la mitad del período para el cual fue elegido el funcionario o funcionaria, un número no menor del veinte por ciento de los electores o electoras inscritos en la correspondiente circunscripción podrá solicitar la convocatoria de un referendo para revocar su mandato.

Cuando igual o mayor número de electores y electoras que eligieron al funcionario o funcionaria hubieren votado a favor de la revocatoria, siempre que haya concurrido al referendo un número de electores y electoras igual o superior al veinticinco por ciento de los electores y electoras inscritos, se considerará revocado su mandato[…]

Tradução: “Artigo 72. Todos os cargos e magistrados de eleição popular são revogáveis. Depois de metade do período para o qual o funcionário foi eleito, um número não inferior a vinte por cento dos eleitores inscritos na circunscrição correspondente pode solicitar a convocação de um referendo para revogar o mandato dele. Quando um número igual ou maior de eleitores que o elegeram tivesse votado a favor da revogação, desde que um número de eleitores igual ou superior a vinte e cinco por cento dos eleitores registrados tenha comparecido no referendo, o mandato será considerado revogado […]”.

Portanto, só um referendo pode estabelecer a revogação (e depois da metade do mandato): o Presidente da Assembleia Nacional não tem este poder. O que fortifica a posição de Maduro e deslegitima as pretensões de Guaidó e de todos aqueles que o reconhecem como Presidente da Venezuela.

Dúvida: é possível haver um estado de excepção? Algo tão grave que precise de normas extra-constitucionais? Por exemplo: Guaidó pode declarar um estado de excepção e, como tal, actuar “fora” das normas constitucionais?

A Constituição da Venezuela prevê um estado de emergência. Trata-se de quanto contido no Capítulo II. De los Estados de Excepción, três artigos (os nº 337, 338 e 339) que estabelecem o que fazer em casos como este. O artigo nº 337 é claro:

El Presidente o Presidenta de la República, en Consejo de Ministros, podrá decretar los estados de excepción.

Trad. “O Presidente da República, no Conselho de Ministros, pode decretar os estados de excepção”.

Dado que Guaidó não é Presidente da República, não tem o poder de invocar excepções. Mas aqui começam os problemas do actual Presidente.

Nicolas Maduro declarou o estado de emergência no passado dia 11 de Janeiro e esta medida pode ser prorrogada até 90 dias. O facto é que Maduro governa desde 2016 proclamando ininterruptamente um estado de emergência atrás do outro. E isso é bem pouco democrático pois ao fazê-lo goza de poderes para “saltar” a Assembleia Nacional na tomada de decisões: Maduro pode adoptar medidas “urgentes e excepcionais” sem prestar contas a qualquer outra entidade estatal.

Quem aprova o Estado de Excepción é o Tribunal Supremo de Justicia (TSJ). O facto é que este é composto por fieis de Maduro, portanto nunca foram levantadas dúvidas acerca deste processo. Mas a Constituição é clara:

Se califican expresamente como tales las circunstancias de orden social, económico, político, natural o ecológico, que afecten gravemente la seguridad de la Nación, de las instituciones y de los ciudadanos y ciudadanas, a cuyo respecto resultan insuficientes las facultades de las cuales se disponen para hacer frente a tales hechos. En tal caso, podrán ser restringidas temporalmente las garantías consagradas en esta Constitución, salvo las referidas a los derechos a la vida, prohibición de incomunicación o tortura, el derecho al debido proceso, el derecho a la información y los demás derechos humanos intangibles.

Trad.: “São definidos expressamente como tais [os estados de excepções, ndt] as circunstâncias de ordem social, económica, política, natural ou ecológica que afectam seriamente a segurança da Nação, das instituições e dos cidadãos em que as faculdades disponíveis são insuficientes para enfrentar tais factos. Nesse caso, as garantias consagradas nesta Constituição podem ser temporariamente restringidas, excepto aquelas relacionadas aos direitos à vida, à proibição das comunicações ou à tortura, ao direito ao devido processo legal, ao direito à informação e a outros direitos humanos intangíveis”.

Reparem no adverbio: temporalmente. Uma situação que, nos casos limites, poderá será prorrogada até 180 dias. Mas Maduro utiliza este processo de forma ininterrupta há seis anos, defraudando os poderes da Assembleia Nacional e, portanto, os poderes democráticos. De facto, Maduro governa a Venezuela usurpando um poder constitucional, o que o põe fora da lei.

Temos assim uma situação bastante caricata: um Presidente da Assembleia Nacional que invoca a revogação do mandato presidencial sem pode-lo fazer e que se auto-proclama Presidente interino sem ter legitimidade para isso; um Presidente da República que governa o País abusando dum instrumento constitucional concebido como “temporário” e que, nos factos, aboliu a Assembleia Constitucional eleita pelo povo (e também as indicações da Constituição). Como dizem aqui em Portugal: venha o Diabo e escolha.

Para acabar: nenhum dos apoiantes de Maduro ou Guaidó realça os graves erros cometidos pelo seu herói.

 

Ipse dixit.

Fontes: El Impulso, Constitución de la República Bolivariana de Venezuela (ficheiro Pdf, castelhano).

2 Replies to “Venezuela: dois Presidentes, dois fora de lei”

  1. Sabes Max, as ilegalidades cometidas de ambos os lados são legítimas, dependendo do lado que se está. Eu condenaria Maduro por outras razões, ou seja pela demissão de dezenas de funcionários da petrolífera estatal, opositores a ele, pela provável prática de tortura, pelos erros crassos do ponto de vista econômico, não diversificando a produção, erros que ocorrem na maior parte das ditas “democracias”. Teu artigo não foi no sentido de apoiar ou rejeitar esse ou aquele, compreendi perfeitamente, apenas analisastes de um ponto de vista inusual Mas, se possível, eu queria deixar minha posição, que não é ideológica porque aí não existem socialismos. Aí se quer acabar com a soberania do país, com a existência de um Estado que tem condições de ser forte, tornando-o Estado fantoche (igualzinho ao Brazil, à Nicarágua, A Argentina, à Colômbia, enfim a América do Sul e Caribe). Como defendo Estados fortes e independentes, não poderia estar a favor de uma pantomina midiática para desestabilizar países soberanos.

  2. Olá Max, Isso vai justificando o injustificável mesmo sem o muro de Berlim, e são tantos que não cabem aqui.
    Olha que bom, não temos que concordar sempre em tudo. 😉

    Já agora é por controle de Tv ou melhor com o guido(sem slang) teleguiado (qual Guidó …lol ) e toda a rapaziada que representa interesses alheios, este é ?auto proclamado? por ele próprio e …. a farsa que já nem é farsa:

    https://www.youtube.com/watch?v=xHxxP6PjArM&ab_channel=Progressista

    Doutrina Monroe na Venezuela | John Bolton confessa que ditadura não é problema em tv legendado (acho que admite é o hemisfério deles).

    Eleições não imposições

    lol tem razão e gosto do penteado:
    https://youtu.be/6mClfdi2mIw

    resumo aqui:

    youtube adoro quando admitem o que está visto à muito e desculpas inventam-se muitas, é ver links no youtube:
    https://www.youtube.com/results?search_query=john+bolton+monroe+doctrine

    ps: Nigéria (threads atrás)
    https://www.bertrand.pt/ebook/os-falcoes-do-biafra-fernando-cavaleiro-angelo/22855112
    https://observador.pt/especiais/os-falcoes-do-biafra-como-os-aviadores-portugueses-chegaram-a-guerra-civil-da-nigeria/

    Same shit different smell.

    nuno

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