Mas hoje temos o smartphone!

Vivemos numa época feliz. É o tempo da democracia: nada de aristocracia e classes privilegiadas. Somos todos iguais. [wiki title=”Liberté, égalité, fraternité”]Liberté, Égalité, Fraternité[/wiki], assim é.

Depois vejo um velho relatório do CENSIS (Centro Studi Investimenti Sociali, um instituto de pesquisa socioeconómica italiana) com dados intrigantes:

  • os dez italianos mais ricos têm activos na ordem de 75 bilhões de Euros, o que corresponde aos rendimentos de 500.000 famílias de trabalhadores, todas juntas;
  • os dois mil italianos mais ricos possuem activos de 169 mil milhões de euros (sem incluir o valor das propriedades);
  • 1% destes cidadãos têm uma riqueza que é equivalente a 25% da riqueza nacional.

E sabemos que a nível global a situação não é melhor: 0.7% da população mundial possui quase metade da riqueza planetária; os activos dos 85 super-ricos é igual à metade da riqueza da população mundial. Caramba, são grandes diferenças. E ainda bem que estamos na época de Liberté, Égalité, Fraternité: imaginem o que acontecia no passado. Curiosos? Eu também, portanto um salto atrás até o XVII século.

Inglaterra, 1688 d.C., pouco depois do pequeno almoço

Estamos agora no 1688, na Inglaterra de [wiki title=”Jaime II de Inglaterra”]Rei Jaime II[/wiki], soberano amado por todo o povo. Ou por uma parte do povo. Talvez por alguém do povo, mas não muitos. Praticamente ninguém pode vê-lo e no final do ano Jamie II terá que abdicar e fugir para França. Mas agora ainda há tempo, pelo que vamos ver a situação.

Em primeiro lugar: melhor limpar as superstições ou as “razoáveis convicções” que podem popular a nossa cabeça. Nesta altura não há tamanhas desigualdades entre as várias classes. E nem podem existir: é normal medir a riqueza com base na terra possuída. Muita terra? Muita riqueza. Mas esta medida tem algumas características: a terra é um bem real, tangível, palpável, não como a riqueza imaterial e muitas vezes apenas digital (e virtual) de 2018. A seguir, a terra é uma medida finita: ou seja, há terra disponível, muita até, mas não é infinita, numa certa altura acaba. Em 2018, pelo contrário, o dinheiro pode multiplicar-se de forma exponencial até o infinito: o único limite é a nossa capacidade de inventar palavras que consigam descrever toda a “nova” riqueza.

Existem divisões entre as classes da sociedade? Sim, existem. E nem estão tanto ligadas à riqueza do indivíduo: as divisões existem e são porventura muito mais percebidas quando comparadas com o que acontece em 2018; mas trata-se mais de direitos herdados da época feudal ou do prestigio derivado da linhagem. Claro, é preciso ter presente que falamos duma época em que a vida era muito mais dura e o bem estar tal como entendido hoje nem existia em sonho. Mas sempre de riqueza falamos.

Muda a medida da riqueza e muda também a qualidade dos dados disponíveis. Não existe o CENSIS, não existem inquéritos e recolha de dados. Não é possível construir uma análise desses parâmetros. Todavia…

Todavia não é por acaso que foi escolhido o ano de 1688. Aqui vive [wiki base=”EN”]Gregory King[/wiki], economista, genealogista, engravador e estadista: o homem nunca pára. É a Gregory King que o rei pediu para fazer o ponto da situação: e nós podemos utilizar as tabelas compiladas por King sobre o andamento da sociedade inglesa. Cómodo, não é?

Entramos no específico. Nas “Tabelas dos direitos e das despesas das várias famílias inglesas, ano 1688″ podemos encontrar os nomes das 160 famílias de [wiki title=”https://pt.wikipedia.org/wiki/Lorde”]Lord[/wiki] seculares, a cúpula da pirâmide social: um total de 6.400 pessoas. Cada uma destas famílias recebe em média um rendimento anual de 2.400 Libras. A seguir temos as classes inferiores. Eis a tabela completa.

Cargo/Tipo de ocupação Nº famílias Rendimento anual
Lordes seculares 160 2.400
Lord eclesiásticos 26 1.300
Baronetes 800 880
Cavaleiros 600 650
Comerciantes 10.000 400-200
Funcionários 10.000 240-120
Donos de terrenos 180.000 84/50
Oficias da Marinha 5.000 80
Homens da Igreja 10.000 60-45
Homens de Ciência/Arte 16.000 60
Oficiais do Exército 4.000 60
Lojistas 40.000 45
Agricultores 150.000 44
Artesãos 60.000 40
Marinheiros/Pescadores 50.000 20
Trabalhadores genéricos 364.000 15
Soldados 35.000 14
Pobres 400.000 6.5

Feitas duas contas, isso significa que aqui, no final de 1600, um pobre tem um rendimento anual 430 vezes inferior daquele da pessoa mais rica, o Lord secular. Muito bem, temos os nossos dados: melhor voltar para 2018 antes que comece a “[wiki title=”Revolução Gloriosa”]Gloriosa Revolução[/wiki]”. Que de “revolução ” tem pouco: Jamie II vai ver o País conquistado pelos Holandeses. Acontece.

Italia, 2018 d.C., com massa e pizza na frente

Um salto de 330 anos e estamos outra vez em Italia. Vamos logo fazer uma comparação: quanto ganha um top manager hoje? Um indivíduo daquela que consideramos a elite (como um Benetton)? Ganha 7.5 milhões de Euro por ano. Não é pouco. Eu, por exemplo, ganhou ligeiramente menos. Considerado que um trabalhador da classe média consegue um rendimento de 25.000 Euros por ano, temos isso: a família dum top manager ganha 300 vezes o rendimento duma família da classe média. Dos pobres nem falamos, não vale a pena.

Qual era a diferença entre os rendimentos de 1688? Vimos que na altura a família dum Lord secular ganhava 2.400 Libras por ano. Consideramos como “classe média” os lojistas e os artesãos da época, com rendimentos entre 45 e 40 Libras. Isso significa que a elite da altura ganhava 50 e 60 vezes os rendimentos da “classe média” da altura.

Talvez seria mais correcto considerar como “classe média” em 1688 os funcionários dos escritórios ou os comerciantes (a futura burguesia inglesa)? Talvez. Mas aí os números seriam ainda mais frustrantes: a família dum Lord secular (2.400 Libras) ganhava apenas 6 vezes quanto obtido por uma família de comerciantes (até 400 Libras). Não, melhor ficar com lojistas e artesãos, é menos deprimente.

Outra comparação: desta vez entre a elite da altura com uma das classes mais numerosas, aquela dos trabalhadores genéricos. Estes ocupavam um dos degraus mais baixos da sociedade inglesa e de “classe média” nada tinham. Mas, em termos numéricos, podem ser comparados à classe média de hoje. Neste caso a elite ganhava num ano 160 vezes o rendimento dum trabalhador genérico. Portanto: hoje 300 vezes, em 1688 perto de 160 vezes. Assim está melhor: afinal é só pouco mais de metade da diferença que existe hoje…

Seria possível fazer uma última comparação, entre a elite de 1688 e a classe dos pobres de hoje. Objecção: não seria correcto, pois a nossa referência é a moderna classe média. Então mudamos um pouco: já que estamos no meio das contas vamos comparar os pobres de 1688 e aqueles de hoje. O limite superior da pobreza (isso é: os pobres mais “ricos”) é individuado em Italia em 1.100 Euros mensais, 13.200 Euros anuais. Tentamos ser generosos: acrescentamos também o subsídio de Natal e aquele das férias. Total do limiar superior da pobreza: 15.400 Euros anuais. Dado que o rico consegue sempre 7.500.000 de Euros por ano, temos o seguinte resultado: uma família da elite ganha 487 vezes o rendimento duma família oficialmente pobre. pobre. Isso hoje: mas em 1688? Na altura a família pobre ganhava 6.5 Libras, isso é: 369 vezes menos de que a família do topo. 487 e 369: os pobres hoje são mais pobres ou os ricos mais ricos?

Enquanto tentam responder, queria realçar dois dados:

  • 369 vezes os pobres em 1688.
  • 300 vezes a classe média em 2018.

Interessante, não acham? Os pobres de 1688 tinham uma fatia maior da riqueza, de pouco inferior daquela à qual tem direito hoje a classe média.

Mas até aqui foi o caso da Italia. Em 1688 não havia internet, é por isso que havia poucos blogueiros; hoje temos internet, pelo que podemos espreitar uma grande quantia de dados. Por exemplo: vamos ver o que se passa do outro lado do oceano.

Brasil: bolinhos de queijo e feijoada

No Brasil o ordenado médio é de 2.100 Reais, o que significa um rendimento anual de 25.000 Reais. O salário dum dos CEO mais bem pagos ultrapassa facilmente 1 milhão de Reais por mês (o [wiki title=”Candido Botelho Bracher”]Presidente do Itaú[/wiki], por exemplo, ganha 3.4 milhões por mês), o que dá no mínimo cerca de 12 milhões anuais. Comparação? São 480 vezes o rendimento médio. Nada mal.

O limiar da pobreza é reconhecido em 387 Reais por mês (quase 90 Euros), 4.644 Reais por ano. Neste caso temo: a família da elite ganha 2.583 vezes o rendimento da família pobre. Nada mal mesmo.

EUA: cheeseburger e Tv Dinner

Estados Unidos? O salário médio dum trabalhador é de 3.274,74 Dólares, o que perfaz quase 40.000 Dólares por ano. O salário médio dum CEO na terra do Rato Mickey alcançou um novo recorde em 2017: agora é de 11.6 milhões de Dólares, 290 vezes o rendimento da classe média. Bem melhor da situação italiana ou brasileira, mas ainda assim muito longe dos “50 e 60 vezes” de 1688. Os pobres no EUA são tais quando ganham menos de 24.300 Dólares por ano, isso é, 477 vezes menos de quanto ganha um membro da elite.

O bolo

Paramos com os números e pensamos: “Mas é possível fazer estas comparações. Afinal o tipo de riqueza era diferente: antes estava limitada à terra, hoje já não há limites”. Exacto: são duas riquezas diferentes e isso piora a situação ainda mais. Em 1688 a riqueza era um bolo de dimensões limitadas pela mesma natureza limitada da riqueza, pela natureza do dinheiro, pelas dificuldades nas trocas comerciais: todos tinham que receber uma fatia do bolo mas as dimensões desta fatia tinham fortes limites, quase prefixados, porque aumentar as dimensões do bolo era muito complicado. Hoje o bolo é virtualmente infinito, não há medidas prefixadas: muita da riqueza é gerada com a criação de dívida ou até “nasce” nos computadores dos bancos e aumenta de forma substancial num curto espaço de tempo. Sendo mais fácil criar riqueza a partir do nada, o “bolo” da riqueza é bem maior: seria lícito esperar uma distribuição mais “democrática”, fatias maiores para todos.

O que acontece é exactamente o contrário: a riqueza aumenta mas não é distribuída de forma proporcional. Algumas das fatias são muito maiores mas acabam nas mesas de poucos. Os outros têm que contentar-se com fatias que, quando comparadas com aquelas do XVII século até são mais pequenas. E nem “pouco mais pequenas”.

Podemos pensar que afinal a fatia não é tão pequena assim: o rendimento duma família da classe média dos EUA, por exemplo, na verdade é de 90.000 Dólares anuais (“só” 129 mais pequeno do rendimento médio dum CEO). Mas é uma conta não correcta: hoje para perfazer os 90.000 Dólares é preciso que dois elementos da família trabalhem, em 1688 era raro que uma mulher da classe média trabalhasse.

Pelo que: Liberté, Égalité e Fraternité trouxeram à maior parte da população menos riqueza e a obrigação de trabalhar mais.

 

Ipse dixit.

Fontes: Gregory King’s estimate of population and wealth, England and Wales, 1688, Peter Lindert, Jeffrey Williamson – Revising England’s Social Tables 1688-1812 (ficheiro Pdf, inglês), Sole 24 Ore, DocumentazioneInfo, Época Negócios, Valor Económico, Site de Curiosidades, Forbes UOL, BBC Brasil, Diário do Centro do Mundo, Agência Brasil,

4 Replies to “Mas hoje temos o smartphone!”

  1. “…Pelo que: Liberté, Égalité e Fraternité trouxeram à maior parte da população menos riqueza e a obrigação de trabalhar mais…”

    Não foi a Liberdade – Igualdade – Fraternidade que trouxe à população menos riqueza e a obrigação de trabalhar mais, mas sim aqueles que a combateram e dela se apoderaram, para depois a deturpar.

    Isto não é uma crítica ou um modo de contrariar o que escreveu, pois entendi perfeitamente o assunto que aborda no texto, e efectivamente o esquema de saque/roubo que gera a riqueza, está a tornar-se ineficiente para atender a tanta demanda levando a que até aqueles que se encontram na base do topo da pirâmide tenham dificuldades em conseguir o seu quinhão.

    Mas não podia deixar de fazer este reparo, porque por vezes surgem leitores(as) mais incautos que interpretam mal o que se lêem e acabam por confundir tudo.

  2. O teu artigo me fez conjecturar sobre o que os valores que mencionas permitia/permite aos sujeitos das diversas faixas de ganhos. No Brazil os sujeitos da faixa média, considerando as cifras que obtivestes, pagariam: moradia e respectivas taxas (água, luz, impostos), alimentação e deslocamento, a grosso modo, e dependendo se no interior do país, pequena cidade, capital, etc. Com esses valores, aquisição de mobiliário e eletro-eletrônicos (nem falo de aquisição de casa própria ), tratamento de saúde, educação, vícios, lazer, viagens, vestuário… ficariam fora do alcance do cidadão médio. Então, este cidadão médio trabalha só para subsistir, nada mais. Claro que na vida concreta, a maioria, nestas condições tenta associar-se com familiares, parceiros etc, que acabarão por utilizar a mesma casa, o mesmo transporte etc, aliviando as despesas individuais. Significa que médios e pobres, que são a maioria, apenas subsiste, garantindo com seu trabalho uma sobrevivência física, que não alcança larga faixa de muito pobres, que depende quase exclusivamente de subsídios estatais, que a medida que vão cessando jogam muitíssima gente na pobreza absoluta. Isso é normal? Isso faz algum sentido? É certo que a maioria tenha vida vegetativa e até a reprodutiva esteja nesses casos sob dúvida, no mundo capitalista financeiro de hoje?
    Ocorre que, além do teu artigo, muitos estudos sugerem que, à medida que os ricos tiveram ganhos ilimitados,com o advento do capitalismo e seus desdobramentos macabros, as limitações dos médios para baixo vem aumentando, ou seja, o roubo de uma minoria sobre quase todos se intensificando, e a distância entre os que tudo podem e os que quase nada podem, também.
    No meu entender, o sistema econômico que preside a maior parte do nosso mundo moderno e contemporâneo mais ainda, é muito mais assassino que os em tempos distantes.
    Não sei o que pensavam de si próprios os servos nos campos, os artesãos, os pequenos comerciantes nos tempos do medievo. Sei o que nós pensamos: que somos livres, que somos iguais e que somos fraternos. Para ver o ponto de estupidez que os das elites conseguiram que alcançássemos, nós os médios e pobres deste planeta, o que não é de estranhar, se refletirmos pelo viés da vida vegetativa que a maioria de nós é levado a levar. Mas, com um celular na mão, temos certeza que somos livres, iguais e fraternos. Banalizamos e naturalizamos nossa própria miséria material e intelectual. Juramos que nosso esforço pessoal, um pouco de sorte, alguma esperteza, um pouco do estudo (do jeito que as elites desenham para a gente engolir) podem nos levar ao desejado céu, onde só as elites estão. Com os celulares/internet aprendemos tudo ao contrário. Eles nos contam que lugares/tempos que viveram/vivem/tentam viver, minimizando os efeitos do capitalismo financeiro, quebrando o sistema ou reformando seu funcionamento e burlando suas leis,(que fazem uns mais iguais que outros) nunca deram certo, que as elites estão constantemente trabalhando para melhorar nossa situação, que por sinal, se não avançamos é devido a nossa incompetência.

    1. A Maria já disse tudo.
      Se há séculos atrás trouxeram espelhinhos para os nossos nativos. Hoje nos trazem modelos mais sofisticados, veem com musica, imagens e diversão. É a recompensa do circo, depois da árdua luta pelo pão.

      “Nos deram espelhos
      E vimos um mundo doente”
      Renato Russo ( Índios )

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