O que é e como funciona a lawfare

Lawfare: os Leitores brasileiros podem já ter ouvido o termo, aqui na Europa é um pouco mais difícil. Mas a lawfare é uma arma, existe e é utilizada. Vamos ver o que é? E vamos.

Diz a sábia Wikipedfia:

Lawfare é uma palavra-valise (formada por law, ‘lei’, e warfare, ‘guerra’; em português, ‘guerra jurídica’) introduzida nos anos 1970 e que originalmente se refere a uma forma de guerra assimétrica na qual a lei é usada como arma de guerra. Basicamente, seria o emprego de manobras jurídico-legais como substituto de força armada, visando alcançar determinados objetivos de política externa ou de segurança nacional.

E pronto, a lawfare é mesmo isso. Acabou o artigo, adeus.

É pouco? Ok, vamos acrescentar algo. E dado que muitos Leitores do blog são do Brasil, vamos falar do caso Lula. Isso é o que queriam vocês: na verdade vamos falar mas é do Equador e do caso Rafael Correa.

Um exemplo: o caso Correa

O que se passa com Correa é um bonito exemplo de alegado lawfare. Alegado porque estamos no meio dum processo que ainda deve ser concluído e o vosso humilde blogueiro não tem na mão a prova provada da inocência do Correa. O processo que ocorre no Equador tem perfis específicos porque o governo teve que distorcer a instituição judicial existente (para alguns de forma ilegal, para outros nem por isso, aqui reside a beleza da lawfare). A captura do Conselho de Participação (CPCC) designado pelo Preasidente Lenin Moreno (atenção: apesar de chamar-se “Lenin”, Moreno é o mau da fita!) com um referendo, foi um passo essencial para a mudança na instituição judiciária e no desenvolvimento da perseguição judicial de Correa. A CPCC, em apenas três meses, demitiu o procurador-geral e o Presidente do Conselho Judicial, abrindo o caminho ao governo, apoiado pelos banco e retirou a imunidade presidencial de Correa com uma ação duvidosa da Assembleia Nacional.

Moreno e a elite equatoriana estão a procurar em todos os lados, como evidenciado pela destruição das instituições, a fim de garantir a prisão de Correa, num processo judicial construído sobre uma base de suspeita grosseira, falsas testemunhas e falta de provas. É uma guerra judicial com múltiplos objectivos: deslegitimar a gestão do governo Correa, evitar o seu retorno em política, acabar com a sua imagem pública, e impedir uma crise de governo enquanto se aproximam as eleições de 2019.

Desde o ano passado, assim que o actual Presidente chegou ao poder, a versão do governo tem sido aquela da luta contra a corrupção para limpar “a pesada herança” do “correísmo”. Através de sucessivas etapas, o cerco apertou com julgamentos judiciais contra militantes da Aliança País (o partido de Correa), especialmente contra ex-funcionários do governo. Os media fizeram o papel deles: o escândalo dos subornos da Odebrecht foi usado para prender o vice-Presidente Jorge Glas e intimidar os partidários de Correa. O objectivo: quebrar as barreiras para a convocação do referendo que permitiu que Moreno nomeasse o CPCC e eliminasse a figura da reeleição presidencial.

Portanto, temos aqui um dos actores que não deveria ser tão importante numa lawfare mas que na verdade é fundamental: os meios de comunicação. Não deveriam ser tão importantes porque esta é uma guerra feita por decisões de tribunais, lutas entre advogados e especialistas jurídicos. Mas são fundamentais porque, fora do tribunal, é preciso cultivar e amplificar os acontecimentos de forma a influenciar a opinião pública.

Voltemos ao caso Correa. Obtidas a primeira purga de funcionários, na qual caiu também o vice-Presidente Glas, e com a construção da história de corrupção do governo Correa, Moreno acelerou a ruptura institucional com a nomeação de uma pessoa de confiança no CPCC. De lá foi orquestrada a tomada total do poder judicial, a demissão do promotor Carlos Baca e do Presidente do Conselho Judicial, Gustavo Jalkh, e de outros quatro conselheiros. Ações que permitiram que Moreno mantivesse preso o poder judicial para intimidar e manchar publicamente as forças anti-neoliberais.

O passo seguinte foi o distorcer as regras do Poder Legislativo para (com uma operação política) para garantir que a Assembleia Nacional declarasse ser incompetente para lidar com o “caso Balda”, decisão que foi interpretada pelos tribunais comuns como uma luz verde para processar o ex-Presidente. Correa perdeu a imunidade presidencial sem que o assunto fosse discutido e decidido por maioria qualificada, conforme exigido por lei, após que um dia antes, em sessão extraordinária, a tentativa tinha falhado na Assembleia Nacional.

A lawfare é má, muito má, mas…

Correa é culpado ou inocente? Não faço ideia. E aqui nem interessa: o que conta é entender o (possível) mecanismo duma lawfare. Algo que desfruta as leis existentes, que as interpreta de forma peculiar ficando assim numa zona cinzenta, num precário equilíbrio entre legalidade e ilegalidade. Mas é preciso realçar como a lawfare não esteja unicamente focado na resolução de conflitos locais: aliás, os mais antigos casos de lawfare falam de discórdias entre Estados. Por exemplo, a questão das Extraordinary renditions, onde os Estados Unidos capturavam e deportavam suspeitos de terrorismo em territórios estrangeiros: esta prática é proibida pelo Direito Internacional, mas Washington conseguia contornar a proibição com ações em sede jurídica.

Pelo que: o conceito do que é esta lawfare está claro. E parece uma coisa má. Temos a certeza disso?

A lawfare parece ser coisa negativa, sempre. Na prática, é um abuso das leis e dos sistemas judiciais para alcançar fins militares ou políticos estratégicos. Trata-se de manipular negativamente as leis internacionais e nacionais, as leis dos direitos humanos, para realizar fins que são o contrário daqueles para os quais foram originalmente promulgadas.

A lawfare mina princípios quais o estado de direito, a santidade da vida humana (inocente ou não), o direito à liberdade de expressão. A lawfare não é algo em que as pessoas se envolvam à procura de justiça; é uma operação com carácter negativo.

Todavia não podemos esquecer quanto escrito pelo Coronel Charles Dunlap: a lawfare é um método de guerra em que a lei é usada como meio para realizar um objectivo militar. Nesse sentido, a lawfare é mais humana do que um conflito militar. É bem frisar uma coisa: Dunlap considera a lawfare como uma “manipulação cínica do estado de direito e dos valores humanitários que representa”. Portanto: uma condenação sem apelo. Mas tentamos propor um exemplo prático: a alegada lawfare do caso Lula (assim os Leitores brasileiros ficam todos contentes).

Imaginemos que a Direita tivesse deposto Dilma Rousseff e preso Lula com o uso da força: isso teria desencadeado uma reacção que em breve poderia feito eclodir uma guerra civil. Com a lawfare não houve vítimas: é este um lado positivo desta arma.

Então, temos que agradecer a Direita brasileira para ter deposto a Rousseff sem a força? Nada disso. Mas existem pontos positivos que é bem não subestimar:

  • como vimos: não há vítimas. Ou preferem a guerra?
  • permite pôr em realce um sistema mediático desequilibrado: os Leitores brasileiros muitas vezes queixam-se da parcialidade dos media locais, o caso Lula exasperou as posições, cristalizando as posições das partes que são obrigadas a apoiar um dos dois lados.
  • permite frisar as fragilidades do sistema político: a lawfare explora zonas cinzentas da legislação, algo que deve ser corrigido de forma rápida para que tal prática se torne cada vez mais difícil ou até impossível.

Analisar com a lawfare

Portanto: não é nada bom, mas já que existe (e não faz mortos), pelo menos que a lawfare seja desfrutada para melhorar a nossa realidade ou, no mínimo, ficar com as ideias mais claras. Exemplo prático, voltando ao caso Dilma & Lula:

  • os media mais influentes estão nas mãos só duma vertente política? Qual a razão?
  • por qual motivo há amplas camadas da população que confiam nestes media?
  • o que impede que a parte atingida consiga ter o mesmo nível de difusão?
  • quais medidas anti-lawfare foram propostas pela parte atingida? Resultaram?
  • quais medidas foram discutidas no âmbito político nacional para combater a lawfare?
  • como foi possível que a maioria do Parlamento aprovasse medidas frutos da lawfare?
  • etc., etc.

Ou seja: estamos perante duma arma, sem dúvida, que como tal deveria ser desactivada e, sobretudo, eliminada. Mas uma arma que, contrariamente às outras, se bem explorada pode permitir uma maior consciencialização das massas e uma análise construtiva dos acontecimentos. Com uma bomba geralmente isso não acontece: contam-se os mortos, tratam-se os feridos, tenta-se reconstruir.

Por curiosidade, consultei cerca de 20 artigos, de blogues e sites, dedicados ao caso Dilma & Lula contra a lawfare. Além de chorar sobre o triste fado da dupla política, quantas propostas, sugestões, ideias, esboços de ideias para ultrapassar o problema da lawfare acham que encontrei? Dica: o total é um número inferior ao um. O que significa isso? Aos Leitores a resposta (que não é nada difícil).

E aqui paro: em parte porque quando escrevo do Brasil há sempre alguém que diz algo como “Você não mora aqui então não pode entendé”. Depois porque algumas sugestões para combater a lawfare podem ser feitas (mas já estou a ler “O cara não mora aqui, o cara não enxerga”), mas isso cabe também aos Leitores, não é?

 

Ipse dixit.

8 Replies to “O que é e como funciona a lawfare”

    1. Sr. Doutor EXP001, muito me espanta que V. Ex.ª, ilustre advogado deste blog não ofereça os seus doutos conhecimentos a Julian Assange, se o problema for o transporte presto-me desde já ao serviço de V.Ex.ª para conduzir o Sr. Dr. até Londres no meu mercedes 190 de 1989, aguardo a resposta de V. Ex.ª e despeço-me com elevada consideração e estima. Bem haja !

      1. Aproveita EXP
        Se não ainda muda de valores, o camarada P.Lopes, que agora lhe deu para rimar ou pessoas para o hospício mandar.

        Abraço

  1. Meu caro , se eu te disser que te vou dar um soco… certamente ficas indignado ( e com razão) mas se eu te disser logo a seguir para ficares tranquilo porque dar-te um soco é bem melhor do que te dar 3 pontapés e uma cabeçada, ficas mais reconfortado?
    Pois … comparar a lawfare com uma guerra civil para dizer que a lawfare é melhor … tem a mesma sensação, é comparar o incomparável. A lawfare ramifica-se e aprofunda-se ainda mais , escolhe juízes pela sua filiação politica … contrata ” determinados ” escritórios de advogados para fazerem leis com defeitos programados para deles tirar proveito … um claro exemplo de lawfare dos tempos modernos foi a ” sugestão” do ” dono disto tudo” ao Joseph Sócrates para um perdão fiscal que permitiu lavar dinheiro oriundo de paraísos fiscais, alias a criação de empresas em paraísos offshore é uma verdadeira “fabrica de armamento” para lawfare. Qual o resultado disto tudo? A justiça é cega é lenta é cara e tal como qualquer oura commodity …pode.se comprar e usar contra os adversários ou a nosso favor, muito haveria para dizer sobre isso mas estando aqui presente o douto advogado do blog, não tenho mais. :)))

    1. Na ausência do legítimo representante legal, invoco o direito à auto-defesa.

      “Meu caro , se eu te disser que te vou dar um soco… certamente ficas indignado ( e com razão) mas se eu te disser logo a seguir para ficares tranquilo porque dar-te um soco é bem melhor do que te dar 3 pontapés e uma cabeçada, ficas mais reconfortado?”

      Sim, fico. Porque já conheci os 3 pontapés e a cabeçada e sei que há diferença.
      O Brasil tem uma longa história de revoluções, mas sobretudo já viveu a ditadura. E não foi algo “soft” como aqui no burgo. No Brasil já sabem o que é levar com muito mais do que um soco. O soco representa um passo na frente, por incrível que pareça.

      Eu não digo de ficar tranquilo com o soco, nada disso: faço notar o facto de ter havido uma evolução. Antes, com a ditadura, não havia maneira de analisar os pontapés: era só apanhar. Mas os tempos mudaram e também o Brasil mudou: hoje o luta não acontece nas ruas (onde há outro tipo de luta) mas acontece nas instituições democráticas. Hoje os brasileiros podem não apenas apanhar mas observar, analisar, aprender e um dia, oxalá, melhorar o País deles. Claro: não agora porque a lawfare é utilizada por ambos os lados como argumento de luta (quem como agressor, quem como vítima) e não de crescimento.

      Para nós aqui na Europa a ideia duma “revolução” (mais ou menos violenta) com consequente guerra civil é uma hipótese bem remota. No Brasil é um pouco menos remota, por isso a comparação não é tão descabida assim.

      “A lawfare ramifica-se e aprofunda-se ainda mais , escolhe juízes pela sua filiação politica … contrata ” determinados ” escritórios de advogados para fazerem leis com defeitos programados para deles tirar proveito … etc. etc.”

      Pois, são 8 anos que repito que o sistema está podre, apesar de alguém uma vez ter-me dito que, apesar de tudo, estamos a viver na melhor época da Humanidade 😉

      O que penso é deveras elementar: o meu lado pessimista diz “Epá, está mal”, enquanto o optimista afirma “Sim, mas já houve melhorias”. Ficar só no “Está mal” não leva para lado nenhum, pelo que, por uma vez, esforço-me para ver o aspecto positivo em algo que é mau (o tal lawfare). A democracia (não apenas brasileira) será o que é: violada, corrupta, ao serviço de poucos. Não gosto dela tal como é hoje, sempre fui bastante claro nisso. Mas é sempre melhor do que uma ditadura. Porque, feitas as contas, a verdade é apenas uma: um soco é melhor de que 3 pontapés e uma cabeçada.

      Grande abraçooooooo!!!!

      1. Pois é meu caro Max, escolheste o Soco em vez dos 3 pontapés e da cabeçada… o facto de quem te deu a escolher só ter apresentado 2 opções não invalida que exista outra opção, a de ser tratado com respeito e dignidade, e essa é tua obrigação conhece-la porque é um direito teu. Os políticos usam frequentemente essa tática… e nos vamos escolhendo o “mal menor” e formatando a nossa consciência de que fizemos uma boa opção …e assim esquecendo os nossos verdadeiros direitos. A democracia é isso escolher se vamos levar um soco da esquerda ou da direita … quando na verdade não merecemos soco nenhum.
        Quanto a esse individuo que alegadamente terá dito que estamos na melhor época da historia da humanidade…Epá esse gajo é um visionário ! Infelizmente talvez a generalidade da população só reconheça isso tarde demais e daqui a uns anos vai dizer … ” no antigamente é que era…” Meu caro, o passado já não existe, o futuro ainda não chegou, o melhor momento é sempre o agora!
        E só para terminar… acho deplorável o estado a que o blog chegou, o bloguista aqui a ser massacrado com argumentos esmagadores apresentados por um velho marreta e o mui nobre advogado do blog não mexe uma palha, sem tugir nem mugir, quiçá receoso talvez de machucar a sua reputação… Sr. Dr. isto é inqualificável !

  2. Acho que posso contribuir, dando a minha explicação do porque os desmandos judiciais não demandam uma melhor compreensão de que “estamos em guerra”.
    Acreditamos piamente que existe democracia (e ela é o melhor dos mundos) quando ela aparece no sentido estritamente liberal, ou seja: existe os três poderes em funcionamento (não importa como), existem eleições, populares ou parlamentares, e isso garante a justiça, a ordem, o progresso e sobretudo o mito da sagrada democracia. E só. Esse conceito formal de democracia é extremamente restrito e apaga o fundamental de um regime democrático: o regime de direitos, a soberania popular e nacional. Posto isso de lado, basta que a formalidade do regime exista, e pronto, estamos conversados, não há o que discutir, muito menos se os poderes constituídos nada mais são que aparência de uma democracia viciada, que não funciona. É o que eu vejo no Brazil, e não só.

  3. Why the Whole World Should Be Up in Arms About the EU’s Looming Internet Catastrophe

    “In exactly one week, the European Parliament will hold a crucial debate and vote on a proposal so terrible, it can only be called an extinction-level event for the Internet as we know it.

    At issue is the text of the new EU Copyright Directive, which updates the 17-year-old copyright regulations for the 28 member-states of the EU. It makes a vast array of technical changes to EU copyright law, each of which has stakeholders rooting for it, guaranteeing that whatever the final text says will become the law of the land across the EU…”

    https://www.activistpost.com/2018/09/why-the-whole-world-should-be-up-in-arms-about-the-eus-looming-internet-catastrophe.html

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