O caminho de Donald Trump (e o nosso…)

Bom artigo de Thierry Meyssa publicado em Voltaire.net. Bom por duas razões: em primeiro lugar porque já está em português, o que significa que por uma vez não terei que traduzir nada; depois porque propõe uma leitura geral acerca da acção de Donald Trump.

Nas eleições presidenciais americanas de 2016 houve muito mais em jogo que a simples alternância de poder entre democratas e republicanos. Foi o confronto entre duas visões para o futuro. A primeira era a visão da simpática Hillary Clinton: a visão institucional, “progressista” (aspas necessárias), globalizadora, belicista, do politicamente correcto. Uma visão na senda da continuidade, dobrada aos interesses de Wall Street. A segunda era a visão de Donald Trump, (“a besta” para os amigos): aparentemente confusa, fora dos esquemas, ordinária, contrastada até pelo núcleo do Partido Republicano, sem dúvida uma visão “inovadora” (e também aqui aspas obrigatórias). Pessoalmente esperava na vitória de Trump: assim foi (com minha surpresa) e a besta não desiludiu. A política perpetrada desde então é aparentemente confusa, fora dos esquemas, sem dúvida ordinária (“classe”? O que é isso?), de roptura com o recente passado.

Que fique claro: estamos sempre a falar de Washington, inútil esperar milagres. Quem esperava uma política mais justa, uma luta em prol duma sociedade mais humana ou outras amenidades evidentemente tinha perdido o fio do discurso: os Estados Unidos continuam a ser os Estados Unidos, com todo o peso das enormes culpas (passadas, presentes e futuras) que costumam carregar na máxima descontração. Todavia um pequeno milagre já aconteceu: a globalização ficou com soluços.

Thierry Meyssa propõe uma leitura um pouco mais profunda, demonstrando que Trump é muito menos imprevisível de quanto seria possível pensar, pois na verdade está a seguir um projecto. Um defeito no texto de Meyssa? Sim, há. Mas disso falamos no final.

O que prepara Donald Trump

de Thierry Meyssan

O problema

Em 1916, durante a Primeira Guerra Mundial, Lenine analisava as razões que conduziram ao confronto entre os impérios da sua época. Ele escreveu então: O Imperialismo, fase superior do capitalismo. Neste obra, precisava assim o seu pensamento: «O imperialismo é o capitalismo chegado a um estadio de desenvolvimento onde se afirmou a dominação dos monopólios e do capital financeiro, onde a exportação dos capitais adquiriu uma importância de primeiro plano, onde começou a partilha do mundo entre os trusts internacionais e onde se completou a partilha de todo o território do globo entre os maiores países capitalistas».

Os factos confirmaram a lógica da concentração do capitalismo que ele descrevia. Num século, ela substituiu os precedentes por um novo império : «A América» (não confundir com o continente americano). À força de fusões-aquisições, algumas sociedades multinacionais deram origem a uma classe dirigente global que podemos ver a comemorar todos os anos na Suíça, em Davos. Estas pessoas não servem os interesses do povo norte-americano e não são, aliás, necessariamente norte-americanos, mas instrumentalizam os meios do Estado federal dos EUA para maximizar os seus lucros.

Donald Trump foi eleito Presidente dos Estados Unidos com a promessa de regressar ao estadio anterior do capitalismo, o do «sonho americano» pela livre concorrência. Pode-se, é certo, postular a priori, como Lenine, que essa recuperação é impossível, mas, entretanto, o novo Presidente comprometeu-se com essa via.

O cerne do sistema capitalista imperial é expresso pela doutrina do Pentágono, formulada pelo Almirante Arthur Cebrowski: o mundo está, de momento, dividido em dois. De um lado, Estados desenvolvidos e estáveis, do outro Estados ainda não integrados na globalização imperial e, portanto, votados à instabilidade. As forças armadas dos EUA têm por missão destruir as estruturas estatais e sociais das regiões não-integradas. Desde 2001, elas tem pacientemente destruído o «Médio-Oriente Alargado» e aprestam-se hoje para fazer o mesmo na «Bacia das Caraíbas».

Constata-se, forçosamente, que a maneira como o Pentágono apreende o mundo se apoia nos mesmos conceitos utilizados por pensadores anti-imperialistas como Immanuel Wallerstein, Giovanni Arrighi ou Samir Amin.

A tentativa de solução

O objectivo de Donald Trump consiste pois, ao mesmo tempo, em reinvestir os capitais transnacionais na economia dos EUA e reconduzir o Pentágono e a CIA da sua actual função imperialista para a da Defesa Nacional. Para o conseguir, ele tem de se retirar dos tratados comerciais internacionais e dissolver as estruturas intergovernamentais que fixam a antiga Ordem.

Desfazer os tratados comerciais internacionais

Logo nos primeiros dias do seu mandato, o Presidente Trump retirou o seu país do Acordo de Parceria Trans-Pacífico, que ainda não tinha sido assinado. Este tratado comercial havia sido concebido, no plano estratégico, para isolar a China.

Não podendo anular a assinatura do seu país de tratados em vigor, como o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA- ndT), ele começou a descontruí-los impondo diversas tarifas alfandegárias que violam o espírito, mas não a letra dos mesmos.

Reenquadrar ou dissolver as estruturas intergovernamentais

Relatamos isso frequentemente aqui, as Nações Unidas já não são um fórum para a paz, antes um instrumento do imperialismo dos EUA ao qual alguns Estados continuam a resistir. Já era o caso durante a política soviética da cadeira vazia (Guerra da Coreia) e é-o de novo desde Julho de 2012.

O Presidente Trump atacou directamente as duas principais ferramentas imperialistas no seio da ONU: as operações de manutenção da paz (que se substituíram às missões de observação previstas originalmente pela Carta) e o Conselho de Direitos do Homem (cuja única função é a de justificar as guerras humanitárias da OTAN). Ele desviou o orçamento das primeiras e retirou o seu país do segundo. Ao contrario, acaba de perder a eleição do director da Organização Internacional para as Migrações, deixando, de momento, o campo livre ao tráfico mundial de seres humanos. Não se trata para ele, evidentemente, de destruir a ONU mas, antes, de a reenquadrar para a levar de volta à sua função original.

Ele acaba de torpedear o G7. Este encontro, inicialmente previsto para trocar pontos de vista, tornara-se, a partir de 1994, uma ferramenta de dominação imperial. Em 2014, transformou-se num instrumento anti-Russo; em consonância com o que se tornara a nova estratégia dos anglo-saxões visando «ceder no acessório para conservar o essencial», quer dizer, evitar uma Guerra mundial delimitando o império às fronteiras da Rússia e isolando esta. O Presidente Trump empenhou-se durante a reunião de Charleroi em mostrar aos seus desamparados aliados que já não era mais seu suserano e que eles deveriam safar-se sozinhos.

Por fim, depois de ter tentado usar a França para dinamitar a União Europeia, virou-se para a Itália, aonde enviara Steve Bannon para criar um governo anti-sistema com a ajuda de bancos dos EUA [verdade: a visita de Beppe Grillo à Embaixada dos EUA em Roma está bem documentada, ndt]. Roma já fez uma aliança com cinco outras capitais contra Bruxelas [exagero de Messya, ndt].

Reinvestir na economia produtiva

Por meio de diversas medidas tributárias e aduaneiras, raramente votadas pelo Congresso e as mais das vezes tomadas por decreto, o Presidente Trump encoraja as grandes empresas do seu país a repatriar as suas fábricas (usinas-br) para o país. Seguiu-se de imediato uma retoma económica, que é praticamente a única coisa que a imprensa lhe credita.

No entanto, estamos muito longe de constatar um recuo do Financismo. Provavelmente este continua a prosperar fora dos EUA, sugando, pois, as riquezas do resto do mundo.

Reorientar o Pentágono e a CIA

Isto é, evidentemente, o mais difícil. Aquando da sua eleição, o Presidente Trump recolheu os votos dos praças, mas não os dos oficiais superiores e generais.

Donald Trump entrou na política a 11 de Setembro de 2001. Ele contestou imediatamente a versão oficial dos acontecimentos. De seguida, mostra-se espantado com as contradições do discurso dominante: enquanto os Presidentes Bush Jr. e Obama declararam querer eliminar os movimentos jiadistas, observamos, pelo contrário, uma multiplicação drástica e uma globalização do jiadismo durante os seus mandatos, indo até à criação de um Estado independente no Iraque e na Síria.

Foi por isso que, desde a sua entrada em funções, o Presidente Trump se rodeou de oficiais gozando de uma reconhecida autoridade o seio das tropas. Era para ele a única opção, tanto para prevenir um golpe Estado militar como para se fazer obedecer nas reformas que desejava empreender. Depois, deu carta branca aos militares, no seu conjunto, para tudo o que concerne a táctica no terreno. Por fim, ele não perde nenhuma ocasião para reafirmar o seu apoio às Forças Armadas e aos Serviços de Inteligência.

Depois de ter retirado o seu lugar permanente ao Presidente dos Chefes de Estado-maior e ao Director da CIA no seio do Conselho de Segurança Nacional, ele ordenou a paragem do apoio aos jiadistas. Progressivamente, viu-se a Alcaida e o Daesh (E.I.) perder terreno. Esta política prossegue hoje com a retirada do apoio dos EUA aos jiadistas no sul da Síria. Agora, estes já não conseguem organizar exércitos privados, mas apenas grupos dispersos utilizados para acções terroristas pontuais.

Na mesma linha, primeiro ele fingiu renunciar à dissolver a OTAN, se esta aceitasse acrescentar à sua função anti-Russa uma função anti-terrorista. Agora, começa a mostrar à OTAN que ela não dispõe de privilégios eternos, como se viu com a recusa em conceder um visto especial a um antigo Secretário-geral. Acima de tudo, ele começa a cortar a sua função anti-Russa. Assim, ele negoceia com Moscovo o cancelamento das manobras da Aliança na Europa de Leste. Por outro lado, assume actos administrativos atestando a recusa dos Aliados em contribuir, ao nível dos seus meios, para a defesa colectiva. Desta forma, prepara-se para fazer implodir a OTAN assim que o julgar conveniente.

Este momento chegará apenas quando a desestruturação das relações internacionais acontecer em simultâneo com concretização das acções na Ásia (Coreia do Norte), no Médio-Oriente Alargado (Palestina e Irão) e na Europa (U.E.).

O que deve ser retido

– O Presidente Trump não é, de modo nenhum, o personagem «imprevisível» que nos descrevem. Muito pelo contrário, ele age de maneira perfeitamente reflectida e lógica.

– Donald Trump prepara uma reorganização das relações internacionais. Esta mudança passa por uma reviravolta súbita e completa, dirigida contra os interesses da classe dirigente transnacional.

(Tradução: Alva)

 

Então, repararam no defeito do texto? É o seguinte: Meyssa parece partir da ideia de que Trump seja o verdadeiro e único artífice da política desta Administração. Mas sabemos que assim não é: nenhum Presidente americano actua sozinho. Ninguém ganha uma eleição presidencial sozinho, ninguém tem o poder de manter-se no topo sem ajudas. E que ajudas…

Trump não está contra Wall Street: está contra uma parte dela, sem dúvida, mas nunca poderia ignorar os poderes económico-financeiros. Trump é apoiado por aqueles poderes que durante as Administrações Obama, Bush ou Clinton foram empurrados para um canto. São os poderes ultra-conservadores (mais conservadores do que Bush & companhia. o que já diz tudo), porque Trump é um ultra-conservador: a sua ideia de Estados Unidos é primordial, básica. Pode ser menos perigosa para o resto do planeta no curto prazo (com a simpática Clinton já haveria uma guerra, disso tenham certeza), também porque muitos dos esforços de Trump são absorvidos na luta interna aos EUA; mas no médio e longo prazo fica longe de ser um mar de rosas. É uma luta entre elites, o povo não pode fazer mais de que assistir (pelo menos até o dia em que acordará, se é que haverá aquele dia).

Neste aspecto, bem mais acutilante é o último artigo de Paul Craig Roberts o qual bem consegue descrever uma Administração (e um poder no geral) e os inimigos dela como um conjunto de interesses e de “manobradores” mais ou menos ocultos. Não admira: Paul Craig Ropberts bem conhece a matéria, muito mais de Meyssa, o nível é outro.

Trump é o que parece: um vendedor, uma pessoa bastante limitada atrás da qual outras figuras estão a implementar o regresso dum mundo já visto. Melhor? Pior? Não sei. De certeza: mais simples. E isso explica em parte o sucesso do Presidente entre os eleitores, algo “inexplicável” aos olhos dos órgãos de informação e “populista” para os adversários.

 

Ipse dixit.

Fonte: Voltaire.net

7 Replies to “O caminho de Donald Trump (e o nosso…)”

  1. Se a imagem de confusão e impulsividade de Trump é apenas uma encenação é irrelevante a hegemonia do império americano esta em declínio e esse declínio é natural, o modelo Americano esta esgotado, poderá demorar ainda uma geração ou mais até a América se fragmentar, mas o que é de pasmar é a europa não abandonar definitivamente as ruinosas parcerias com os EUA deixar de seguir a doutrina americana de sanções e começar a procurar parecerias a leste e a oriente. as politicas de Trump e os devaneios da nato afiguram-se cada vez mais absurdos e arrastam-nos pelo lodo.

  2. Maria comenta: volto a dizer que mil vezes um Trump que uma hilaria, em função de guerras. Mas, seria demasiado pedir nos EUA um governo em função da justiça social e da soberania nacional sem agressões a outros povos. No ponto em que chegaram com instituições como Pentágono, CIA, e sionistas ditando as regras para um mundo globalizando-se e destruindo tudo o que não estiver de acordo com eles, parece que a besta está a sair-se bem. Não esquecendo-se que a imprensa mundial contava os dias para a permanência da besta no comando…e lá está a besta…sentada no trono até hoje, e disposta a segurar um segundo mandato.

  3. Trump é uma benção .
    Acabou com o TTIP que andava a ser cozinhado a traição pela calada entre a ue e os eua.
    Fez abanar o G7.
    Atrapalha os planos muito delicados de organizações globalistas transnacionais que teem muitos politicos dos eua e ue no bolso como Clinton e Obama por exemplo.
    Hostiliza e despreza vassalos que se deixam humilhar sem exigir sequer um pedido de desculpas com no caso das escutas da nsa a lideres Europeus, por exemplo a madame Merkel deixando-os ficar sem compustura e perdendo a face.
    Ou seja Trump não só acelerou o declinio do imperio como também acelerou o movimento de desglobalização.
    Enquanto andam entretidos a combate-lo gastam recursos e desviam a atenção de outros alvos.
    Creio que se alguem tentasse fazer tudo isto de forma logica e planeada não conseguiria tanto.

    Se Trump é um trapalhão outsider como um elefante numa loja de porcelanas ou um genio não sei.
    Por um lado comporta-se como um trapalhão por outro é um grande empresario e que conseguiu chegar a presidente dos eua contra tudo e contra todos do establishment o que e uma tarefa muito dificil.

    Há os homens errados, no lugar errado, na hora errada mas que fazem acontecer a coisa certa.

    Trump parece-me ser um black swan

  4. Não iria tão longe.
    Mas “É uma luta entre elites, o povo não pode fazer mais de que assistir” até ver, e o que PCG actescenta “consegue descrever uma Administração (e um poder no geral) e os inimigos dela como um conjunto de interesses e de “manobradores” mais ou menos ocultos.”
    O P.Lopes colocou uma questão relevante, mas não muda porque o Reino Unido(nunca mais saem) passam a vida a antagonizar as tentativas de ligação europa continental fora do eixo da ilha (á ilha interessa continuar a ser relevante nas cada vez piores relações UE-EUA), a localização geográfica da ilha vive disso e não esqucer as elites e interesses lá instalados, ou a city).
    É o velho dividir para reinar em cronómetro decrescente.
    Bruxelas está como Washington ou Londres cheia de interesses antagónicos e jogos de bastidores ou “manobradores”.
    Seja como for tenho quase certeza de algo, é a altura de a Europa arredar caminho e procurar as tais parecerias(quanto mais cedo melhor). Quanto á nato nem comento(desculpa para fazer guerras sem sentido). Ah e os estranhos acontecimentos na am. do Sul nada tem a ver com Trump, são uma mistura de financas/corporações/interesses são outros poderes não eleitos que manobram isso tudo.
    Outro perigo muito do lixo da city sairá de Londres para a europa continental.
    Enfim podem estar em lento declínio mas dadas as relações normais e tóxicas(2008 p.exemplo) ainda podem criar mossas.

  5. Esqueci-me deste ponto que tambem é importante.

    A esposa dele Melania Knauss-Trump…. lindaaaaaaaa ….que mulherão.
    Antes ve-la a ela junto de Trump que ver o trambolho da Clinton na tv.

  6. Só visões belicistas. Trump contra os outros, EUA contra Rússia, ocidente contra terrorismo, etc etc. já pensaram na ideia que Trump pode estar reorganizando os EUA para uma futura exploração espacial! As implicações que podem advir desse acontecimento estão além de qualquer prognóstico!

    1. Isso seria bom, não óptimo.
      Mesmo para acabar com esse belicismo que não leva a nada de bom.
      Mas para que isso aconteça é preciso existir uma série de entendimentos que estão em banho maria. Outra coisa a nasa já não é o que era, é privada-publica e com montes de empresas subcontratadas (umas com muito know-how e outras nada de especial aliás até pelo contrário). Acho que pode é existir cooperações internacionais como a estação espacial internacional e muito mais como actualmente…não creio numa exclusividade, mas america first…ok, faz de conta, isto vai com parecerias económicas de várias partes do mundo, e cada um trazer o melhor em que são ou podem. Só vejo a saída internacional porque (se foi eleito para curar a america e seus problemas, empregos e falta de oportunidades em grande parte pela deslocalização de empresas, tem que resolver esses problemas primeiro) , de que adianta fazer mais que nos anos 60/70″ que custou uma brutalidade, mas a podem dizer fomos nós os pioneiros, se nem gente conseguimos mandar a lua no séc actual, exploração económica espacial?
      Pode ser mas com todos a espiar todos já saberão.
      É bom para o orgulho nacional mas como antes, cairam na vulgaridade, o povo deixou de ligar e a questionar o dinheiro gasto? E acabou.

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