A violência na América Central: El Salvador, Honduras, Guatemala

El Salvador é um País centro-americano de 20 mil quilómetros quadrados e seis milhões e meio de habitantes. As principais gangs criminosas de Salvador (as maras) possuem dezenas de milhares de afiliados. O que torna as maras únicas no mundo é o amplo controle social e territorial. Em 2016 houve 5.278 assassinatos no País, uma média de dezoito por dia. Nos últimos cinco anos, 692 trabalhadores do transporte público morreram nas mãos das gangs. No mesmo período, 93 policiais foram mortos. Um afiliado da Mara Salvatrucha (conhecida também como MS-13), uma das mais importantes gangs salvadorenhas, ganha em média 15 Dólares por semana. Uma miséria.

Passou mais de um ano desde que Donald Trump começou a twittar sobre os “homens maus” do MS-13. Essa quadrilha é hoje a organização criminosa com maior peso na agenda sócio-política global, assunto ignorado até pouco tempo atrás e hoje alvo das atenções não apenas do Presidente dos Estados Unidos como também da imprensa internacional, dos estudiosos e da ONGs internacionais.

El Salvador e os salvadorenhos estão cada vez mais associados ao fenómeno aos olhos do mundo, como o cheiro do narcotráfico persegue a todos os colombianos; organizações como Médicos Sem Fronteiras ou International Crisis Group interessaram-se agora pelo que no País acontece há décadas.

Quantos são os membros das maras em El Salvador? Segundo as estimativas da Polícia Civil Nacional e da Direção Geral dos Centros Penais, em Junho do ano passado eram 64.587 os afiliados no País: 43.151 em liberdade e 21.436 encarcerados. Contas feitas, 1% da população de El Salvador faz parte das maras. Ou como afirma a Câmara Constitucional após a decisão de 2015: são terroristas.

É como se em Portugal houvesse uma gang com mais de 100 mil membros; ou mais de 2 milhões no Brasil. Isso ajuda a ter uma ideia da realidade de El Salvador. Mas os números não dizem tudo: o problema é muito maior, porque as maras são uma praga inequivocamente social, enraizada em centenas, milhares de comunidades empobrecidas em todo o território. Para cada afiliado, quase todos os homens, há pelo menos quatro ou cinco pessoas dependentes da actividade criminosa: esposas, filhos, familiares, simpatizantes, colaboradores.

Desde Janeiro de 2015, o governo da Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN) recorreu à repressão mais brutal na tentativa de controlar as maras com práticas que violam os direitos humanos mais básicos e com o consentimento tácito perante os episódios das execuções extrajudiciais: a polícia comunicou ter morto 1.400 pessoas durante alegados confrontos com os criminosos. O punho de ferro seduz o eleitor salvadorenho, mas o Estado levou a denúncia de organizações como o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Se é que a ONU conta ainda algo…

Os números actuais sugerem que, mesmo atropelando os direitos humanos (com as óbvias consequências prejudiciais relativas ao prestígio das instituições), o governo não conseguiu impedir o crescimento das maras: hoje existem mais afiliados do que há cinco anos. A razão? Muitas, mas podem ser agrupadas em três grandes conceitos:

  • primeiro, ser um pandillero (pessoas com actividades ilegais) continua a ser uma opção atraente para milhares de jovens das comunidades pobres e marginalizadas;
  • em segundo lugar, devemos considerar o fluxo constante de criminosos que saem da prisão e não são reabilitados;
  • em terceiro, o aumento das vítimas geradas pela repressão do Estado foi compensado por um afrouxamento do conflito interno entre as maras, sobretudo entre os emeeses (que pertencem ao MS-13) e os dieciocheros (que pertencem à mara Bairro 18).

No entanto, durante os últimos cinco anos, as pessoas presas passaram de 27 mil para 39 mil. El Salvador é um dos Países com o maior índice de encarceramento e com as prisões mais lotadas do mundo. Apesar das tentativas de aumentar a capacidade do sistema penitenciário, os locais disponíveis nas 28 unidades prisionais do País são de 18.000, menos da metade do número de detidos. Sem mencionar os 40 mil afiliados à solta e todos aqueles que trabalham com eles.

A menos que consideremos a hipótese do genocídio, a matemática mostra que a linha repressiva não pode ser uma solução para resolver o problema das maras. Mesmo que o Estado fosse capaz de punir efetivamente os crimes, o número de pessoas que seria forçado a encarcerar seria insustentável, especialmente num País com recursos limitados e com um sistema penitenciário à beira do colapso.

Em frente à enormidade dos números e perante a prova de que mesmo a repressão mais brutal não pode conter a expansão das maras, parece haver duas alternativas: uma é continuar da mesma forma, ficando El Salvador como uma das sociedades mais violentas do mundo; a outra é apostar numa solução do conflito por meio do diálogo, um caminho espinhoso e doloroso que forçaria a sociedade salvadorenha a pactuar com os terroristas e reconhecer as maras como actores sociais e políticos.

Desde 1841 até hoje

Parenteses: mas como é que um pequeno País, com pouco milhões de habitantes, desprovido de matérias primas, numa zona não particularmente delicada do ponto de vista estratégico, consegue ficar numa condição tão complicada?

Desde o ano da sua independência da Espanha (em 1841), a República salvadorenha foi liderada por vários governos autoritários, muitas vezes presididos pelos militares. Ao longo do ano ‘900, Presidentes “democraticamente eleitos” pelo povo tomaram as rédeas do poder no País e houve vários golpes militares. Por volta dos anos ’70, o contínuo agravamento da situação política e as crónicas incertezas económicas e sociais levaram à formação de um partido da oposição em conflito aberto com o partido militar que liderava o governo. Nas eleições de 1972, o novo partido apoiou a candidatura do democrata-cristão José Napoleão Duarte, mas o candidato dos militares, o coronel Molina, prevaleceu na consulta. O duro protesto acerca dos desfecho da eleição resultou logo numa verdadeira tentativa de golpe da oposição, que no entanto foi violentamente reprimida pelo exército leal ao Presidente.

Em 1977 o geral C.U.Romero ganhou as eleições para o partido do governo e enfatizou as atividades repressivas contra a oposição, favorecendo a formação e a propagação de grupos armados organizados em guerrilheiros. Em 1979, Romero foi derrubado por um novo golpe que levou à formação de uma nova junta formada por expoentes militares e civis. A nova administração pretendia abrir negociações com o oposição não-violenta, mas o diálogo foi interrompido após a morte de 22 pessoas por mão da Guarda Nacional numa tentativa de dispersar uma multidão de manifestantes. Após o episódio, a junta perdeu muitos dos representantes civis, mas permaneceu unida sob a liderança de José Napoleão Duarte. Durante a década de 1980, a oposição de Esquerda deu origem à coordenação revolucionária em massa, acentuando as divisões e a violência no País.

O ápice da instabilidade foi alcançado com o assassinato do arcebispo Oscar Arnulfo Romero, sempre na vanguarda em denunciar a violência dos militares, que ocorreu durante a missa na capela do hospital da Divina Providência. Em Dezembro do mesmo ano, Duarte foi eleito Presidente outra vez. Nos meses seguintes, as primeiras tentativas de diálogo foram abertas após o apoio recebido por Duarte da Igreja Católica, ainda mais influente após o martírio do arcebispo Romero.

Em 1984, realizou-se em La Palma o encontro histórico entre Duarte, o arcebispo de San Salvador, os líderes militares da Frente de Libertação Nacional Farabundo Marti (FMLN) e os dois principais expoentes da Frente Democrática Revolucionária (FDR). Apesar dos esforços para encontrar uma solução pacífica, o partido de direita Arena (apoiado pela maioria dos militares) fez de tudo para impedir o diálogo, bloqueando a proposta de paz no Parlamento. O seu líder, o major Roberto D’Aubuisson, foi acusado de ser o mandante do assassinato de Romero, mas isso não impediu que ganhasse as eleições locais em 1988.

A crescente popularidade da Arena e a crise dos democratas-cristãos em 1989 deram a vitória ao partido de direita nas eleições presidenciais com o candidato Alfredo Cristiani. Ao contrário de muitos céticos, os democrata-cristãos provaram ser muito conciliatórios, apesar da violência contínua tanto por parte dos guerrilheiros comunistas quanto dos militares. Em 1990, em Genebra, as partes reuniram novamente para concordar a paz e, finalmente, em 1992 o fim da guerra civil foi finalmente ratificado. Após a assinatura da paz, Arena liderou o País vencendo todas as eleições até 2009, quando prevaleceu a Frente Nacional Liberal de Farabundo Martí e o seu candidato Mauricio Funes. O partido revolucionário está no poder hoje com o Presidente Salvador Sánchez Cerén

Apesar do conflito armado ter acabado oficialmente há 25 anos, FMLN e Arena continuam a lutar pelo poder impulsionados pelos mesmos objectivos: o estabelecimento do socialismo para o primeiro e o desaparecimento completo dos comunistas para os outros. A falta de políticas de longo prazo e a fragmentação do Parlamento impediu uma ação realmente eficaz do governo para satisfazer as necessidades do País. O diálogo entre as duas partes está quase completamente ausente e isso não favorece soluções de continuidade.

O problema comum

A taxa de crescimento económico negativa, a corrupção generalizada, a gestão do deficit orçamental e do crime descontrolado são apenas algumas das questões em aberto que estão a trazer o Salvador para o inferno. Em particular, o fenómeno da criminalidade organizada tem um custo que equivale a 16% do PIB, enquanto aldeias inteiras se esvaziaram, com milhares de cidadãos que fugiram o estrangeiro.

Uma sociedade pobre, dividida por velhas razões ideológicas. E depois o FMI: o Fundo Monetário Internacional supervisiona a economia de El Salvador. As medidas implementadas? Redução dos gastos, aumentos da idade da reforma, subida do IVA, um “ajuste fiscal adicional de 2% do PIB distribuído ao longo de 2019-20″, o novo imposto predial e ainda mais dívida (El Salvador tem que pagar no médio prazo 800 milhões de Eurobonds e “as negociações sobre o acordo de financiamento de médio prazo devem avançar”). É óbvio que desta forma El Salvador não vai para lado nenhum.

E é importante frisar que este mal estar, não apenas económico mas também social não é algo que atinja apenas El Salvador: há outros dois Países que fazem fronteira com El Salvador e que alimentam uma aguda crise de refugiados: Guatemala e Honduras.

Estes três Países tornaram-se zonas de guerra onde as vidas são dispensáveis ​​e milhões de pessoas sobrevivem no constante medo de que grupos criminosos ou as forças de segurança possa aparecer. Os que partem, que decidem deixar para trás as casas, são agora os protagonistas de uma das crises de refugiados menos visíveis do mundo. Se El Salvador é um dos Países mais perigosos do mundo, em Honduras e Guatemala as taxas de homicídios são assustadoramente elevadas.

É verdade que México e EUA falham no dever de proteger os que requerem asilo e refugio, mas não podemos pensar que a solução seja esvaziar a América Central: deve haver outros caminhos para El Salvador, Guatemala e Honduras.

Três Países que fazem fronteira, pobres em matérias primas, umas economias de rastos (um pouco melhor a situação do El Salvador neste aspecto), pobreza, pouca cultura, mas sobretudo: elevadas dívidas externas, algo que nenhum destes Países poderá alguma vez pagar, e a supervisão do FMI, que é uma espécie de pena capital. Unirem-se para pedir que a dívida seja apagada parece o primeiro passo: mas os governos terão a força para isso?

 

Ipse dixit.

Fontes: El Faro, FMI: El Salvador: Concluding Statement of the 2018 Article IV Consultation Mission

6 Replies to “A violência na América Central: El Salvador, Honduras, Guatemala”

  1. Não, não terão força para isso Max, porque são governos só fortes na repressão e na violência, na maior parte das vezes, resultado de eleições fraudulentas, que tem o descrédito que merecem dos eleitores porque totalmente manipuláveis por forças internas e externas. E é exatamente isso que o FMI e todas as instituições globalizantes querem para a América Latina. El Salvador é apenas um ensaio. A partir de agora outros terão igual destino, provavelmente por muitas décadas. A formação de gangues é apenas resultado da miséria social, econômica e cultural. Serão mais numerosas e ativas onde a miséria for maior. Calculas que não exista 2 milhões de pessoas envolvidas em gangues no Brasil? Existe, apenas não contabilizadas porque o que mais aparece são as grandes e famosas como Comando Vermelho e que tais. Quando o sentimento de pertencimento a uma nação, cultura, país vai desaparecendo, as pessoas procuram agrupar-se. A gangue é uma saída para os miseráveis que sabem que do Estado só recebem pancada.

    1. Exactamente, essa explicação sobre a formação dos gangs também de adequa em parte ao surgimento de nazis na Ucrânia o crescimento da miséria e a necessidade social de pertença quando um estado se desagrega.

      1. E não havendo estado, ou um estado fantoche opressor, lida-se com chefes de cartel, porque se existe lei é a lei del plomo. Os exemplos da Ucrânia e principalmente Am. Latina que por artes mágicas em poucos anos virou de crescimento para défice, se fosse num lado ou outro entende-se agora massivamente é engenharia social e propaganda. A Ucrânia está com um tipo posto lá após golpe, ajudado nulland, mccain etc…o objectivo aí é óbvio. A am. latina é os recusos naturais a preço de saldo, porque a confusão politica criada vai facilitar isso assim como uma copa do mundo para adormecer.
        As Honduras, El Salvador e Guatemala não eram “propriedade” da united fruit company, também chamadas de repúblicas das bananas?

        1. É isso camarada Nuno, pesar de distantes um do outro, a raiz do problema tem um denominador comum, o Imperio, a politica do século Americano .
          Abraço.

  2. Enquanto o mundo estiver falsamente “dividido” entre fantoches comunistas e fantoches capitalistas, os povos continuarão sendo explorados por quem está no andar de cima, ou seja, os verdadeiros manipuladores do sistema mundo. Precariedade existencial, degradação social, perda de identidade nacional, fragmentação étnica, são apenas conseqüências desse funcionamento, e imprescindível para os dominantes…

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