Tech-Gleba – Parte II

Nota prévia: ao artigo de Paolo Barnard, traduzido de forma bastante fiel ao original (pelo menos ao nível dos conceitos), acrescentei uns links no texto. Tanto para perceber que não estamos a falar de visões mas de coisas reais, tangíveis, que existem já. O que falta é a implementação em larga escala. Mas não tenham pressa…
Boa leitura. 

Uma bicicleta, um passeio com o cheiro de feno, longe dos semáforos, das antenas ou do wi-fi. A cabana do camponês, alguns deles sentados fora do bar da aldeia no Sábado à tarde enquanto jogam com as cartas e um copo de tinto ao lado. Uma imagem clássica.
Mas no futuro? Não um futuro longínquo: um amanhã que pode ser implementado já agora. Aqui os camponeses desaparecem, literalmente, não há mais. O que há é a agricultura de precisão. A quinta é renovada e tem o aspecto dum centro operacional. Há antenas, nenhuma máquina agrícola mas dezenas de drones de tamanhos que variam de 12 centímetros até os 10 metros: voam sobre os campos e transmitem bilhões de dados (entre 100 e 500 para cada caule de trigo, para cada cebola, etc.). O software diz ao Drone Seminator onde colocar a semente de acordo com uma análise química detalhada, em tempo real. Bem-vindos à Semeadura de Precisão. Mesma coisa com os drones fertilizantes, etc.

Tudo isso parece uma visão digna dum filme de ficção científica: mas não é, é a agricultura ao serviço das grandes empresas, as quais têm que reduzir o desperdício e maximizar o lucro. Não há espaço aqui para terra não ou mal cultivada: tudo tem que ser optimizado, lá fora há biliões de pessoas que querem comida.

No campo industrial teremos os Ecossistemas Virtuais, onde a produção é racionalizada pelos sistemas de Inteligência Artificial (A.I.) para reduzir o número de operações. A produção anual pode ser gerida pelos COBOTS, sistemas robotizados que falam (literalmente) com um único operador humano. Este não carrega botões, mas apenas fala. Exagerado? Desculpem, mas já não falam com o vosso carro? Não há limites para os COBOTS: 10 unidades ou 40 milhões de peças, qual a diferença? São máquinas, limitam-se a executar as ordens, relatar problemas, sugerir soluções.

Entretenimento, qualquer actividade ao ar livre ou em casa, educação, social media, activismo, política. Aqui as primeiras a chegar serão a Realidade Virtual (VR) e a Realidade Aumentada (AR) do conglomerado Facebook-Oculus. O conceito é que, para entrar em contacto com alguém e para fazer qualquer coisa, a presença física não será necessária, apenas a virtual. Um bom par de Oculus Rift Head-set e acabou. A rede 3D global permitirá ficar sentados no sofá e: procurar uma casa visitando dezenas de apartamentos, conversar com os agentes imobiliários, com o administrador; frequentar cursos numa universidade americana ou uma aula de A.I. em Cupertino; testemunhar a guerra em Aleppo mas sem o “distúrbio” dos cheiros dos pobres, do sangue seco e com uma visão totalmente pilotada pelas autoridades ocidentais. São apenas alguns exemplos, as possibilidades reais são praticamente infinitas.

Os social media permitirão ficar sempre no mesmo sofá e, ao mesmo tempo, estar entre amigos num jantar virtual, cortejar uma pessoa para entender quem ela é ainda antes de sair de casa,  tocar um peito (virtual), ter um orgasmo (real) e ficar totalmente satisfeito com isso. O activismo político? Sempre no sofá. Conselhos municipais online, reuniões virtuais, diálogos com parlamentares virtuais. Ar frito e apatia, o triunfo global do Keyboard Activism (activismo do teclado).

Dinheiro. Blockchain e Ledgers já são realidade hoje. Todas as formas de dinheiro real desaparecerão, o criptodinheiro será o único: cada transação, desde os 70 cêntimos do velho pensionista até as centenas de bilhões das empresas, será registrada através da tecnologia Blockchain em registros mundiais denominados Ledgers, que serão visíveis para qualquer pessoa no mundo com o acesso ao software. Os pagamentos serão instantâneos e verificados em tempo real pelos algoritmos matemáticos de toda a cadeia Blockchain.

Tudo isso até pode parecer relativamente inócuo. “É o progresso”. Certeza?
Milhões de empregos serão perdidos e substituídos com…? Pois.
Quantas pessoas vivem hoje do trabalho numa quinta? Uma família? Quatro, cinco, seis pessoas? O que farão uma vez que uma única unidade A.I. pode tomar conta de tudo?

Voltemos ao assunto “dinheiro”, porque esta é uma das chaves. As actuais tentativas de entrar na posse dos dados sensíveis dos cidadãos são bastante básicas: com as criptomoedas tudo será mais simples e imediato. Nada de autorizações pedidas aos usuários, o simples facto de utilizar o dinheiro irá actualizar a nossa ficha diariamente em tempo real. Bilhões de dados privados passarão nos pagamentos dos seres humanos e tudo estará visível nos Ledgers: estilos de vida, hábitos, tendências de consumo, estado de saúde, trabalho, etc. Tudo estará acessível aos algoritmos da NGA, a National Geospatial Intelligence Agency: esta é já hoje o maior conglomerado de intelligence do planeta no âmbito da recolha e análise de imagens e dados. E será ainda pior no futuro, quando uma rápida análise das compras dirá tudo acerca de cada cidadão, a cada 30 segundos das nossas vidas.

Dúvida: mas para que serve isso? Mais uma vez, para entender é preciso seguir o fluxo do dinheiro.
As inocentes “tendências” são imponentes ferramentas que permitem individuar os sectores e as empresas com boas perspectivas de crescimento. Isso é: facilitam a especulação (Finança). Ter estas “tendências” em tempo real, descobrir se for melhor investir no próximo telemóvel da Samsung ou no cobre do Chile pode valer biliões.

A NGA fará isso graças ao Blockchain e aos Ledgers. Será a mais imensa perda de privacidade na história humana. E, sempre no campo da privacidade desintegrada, eis os Psychoimaging Softwares de braço dado com os drones. Sabe-se que os aparelhos digitais mais vendidos já estão prontos para hospedar softwares que lêem as impressões digitais ou o mímico dos músculos faciais para, por exemplo, gravar enquanto estamos deitados na cama com o celular desligado. Mas também é verdade que os dados sobre as pessoas transmitidos dessa maneira podem ser muito fragmentados porque nem todos vivemos sempre colados aos telemóveis, tablets ou computadores. Os drones, como já experimentado hoje pelo DARPA do Departamento de Defesa dos EUA, podem ser reduzidos ao tamanho de um inseto e estar perto de nós a qualquer momento, em qualquer lugar e transmitir os dados para softwares de Psicoimagem, ou seja, softwares que preencherão fichas sobre nós: quem somos na realidade, qual o caráter, os pontos fracos, como os media afectam as personalidades…

Os drones podem ler os lábios, então têm acesso ainda mais directo a qualquer coisa que uma pessoa expressa ou pretenda fazer, seja no âmbito privado, seja no público. Seremos tech-gleba sem alternativas porque quando o planeta inteiro funcionará assim, quem pode dar-se ao luxo de dizer “não”?

Carros. Quem não tem carro?
A Volkswagen, como quase todos os gigantes de automóveis do mundo mas também os gigantes de alta tecnologia como Google, Apple ou Tesla, está a investir bilhões de Dólares nos chamados Driverless cars, isso é, carros que se auto-conduzem e que respondem aos comandos orais do passageiro, tão cheio de A.I. de deixar pálida a ficção científica. E a marca alemã não está a fazer isso apenas nos últimos tempos: começou há 12 anos em colaboração com a Universidade de Stanford e o Departamento de Defesa dos EUA no já citado laboratório futurista chamado DARPA.

Hoje tudo gira em torno de Silicon Valley, Google-Alphabet e China. Estão a investir como loucos, mas por quê? Uma nova empresa chinesa, a Mobvoi que faz A.I. para os carros do futuro, passou dum valor de zero para 1 bilhão de Dólares num só ano. Por qual razão esta corrida agitada de todos? A FCA (ex Fiat) está a derramar bilhões nestas auto-robot em colaboração com Wymo do Google-Alphabet. Porquê?

Em particular, a corrida está centrada em quem primeiro elaborar os supercomputadores, impensáveis ​​hoje, que poderão processar triliões de impulsos e dados a cada microsegundo para transformar bilhões de carros em viaturas sem motorista, mas todas coordenadas para “conversar” umas com as outras e evitar desastres. A quantidade de dados a serem processados ​​pelo computador de bordo de cada veículo neste cenário é igual à duma nave espacial a cada segundo, mas todos são geridos por um computador que cabe no tablier. Está aqui o rio de bilhões de investimentos. Porquê?

A Volkswagen trabalha hoje com a D-Wave Systems, uma empresa de informática que aplica a física quântica ao software. Algo para explodir o cérebro, porque a física quântica, se aplicada com sucesso às tecnologias digitais de hoje, dispararia nos hiperespaciais multiplicando biliões de vezes o poder de processamento dos dados do computador mais poderoso do mundo. Em suma, estamos no meio duma pura viagem digital mas com por trás bilhões reais e concretos. Porquê?

Aqui está a resposta: porque estas são pessoas que pensam 200 anos à frente e sabem muito bem que, com o Capitalismo ultrapassado, onde podemos encontrar um desgraçado que faz componentes do carro em troca de 1 Dólar por dia? Com a criação da enorme classe média mundial, os preços de produção irão disparar e a A.I. poderá só em parte compensar este fenómeno. Em outras palavras: eles sabem que os carros não serão vendidos nos próximos duzentos anos porque custarão demais. Eles também sabem que a alternativa da completa robotização das indústrias, com relativos despedimentos de pessoal, não funciona, é uma imensa ilusão, porque massas sem trabalho e sem dinheiro são inúteis.

O projeto é ter 10 bilhões de seres humanos economicamente homogeneizados, num nível médio-baixo. Como já dito pelo sindicalista norte-americano Andy Stern (e relatado pelo Wall Street Journal) o Estado terá que compensar as entradas dos cidadãos com o Rendimento de Cidadania (do qual já se fala em Italia, por exemplo). O poder de compra será uniforme e baixo, mas os seres humanos continuarão a deslocar-se. Como se não dá para adquirir um carro?

Com o carro robot que nenhuma casa automobilística vende, que quase ninguém possui, mas que todos podem alugar por pouco dinheiro a qualquer momento digitando um código no próprio smartphone. Então será trendy (e “ecológico”) ir até o lugar de trabalho com seis colegas conversando confortavelmente sentados no mesmo Van-robot alugado que conduz todos em plena segurança.

Multipliquem estes alugueres que custam alguns trocos vezes bilhões de seres humanos vezes todos os dias do ano e não será difícil entender que o lucro obtido pelos fabricantes dos carros Driverless se tornará absolutamente astronómico quando comparado ao sistema pré-histórico de venda do carro (e para ficar mais ligados à realidade, evitemos falar dos drones tornados meios de transportes, coisa que irá suplantar as companhia automobilísticas, ok?).

A morte do Capitalismo, as massas obrigadas a utilizar a nova tecnologia… tudo isso tem outro custo. Enquanto aqui estamos a queimar neurónios na desesperada tentativa de adivinhar como será a próxima sociedade, esta já está a ser construída e implementada. Será uma boa sociedade, se vista com os olhos da elite que conseguirá acumular o que nunca foi acumulado durante toda a História. Não apenas em virtude dos elementos já apresentados aqui (afinal estes são pormenores), mas sobretudo porque o projecto implica, literalmente, a destruição de inteiros sectores industriais ( os tradicionais Reis das Indústrias) a favor da existência de Imperadores Empresariais. Ou, dito em outras palavras: corporações.

Mais uma vez: ficção científica? Não, realidade. O que fez Jeff Bezos? Tem feito em pedaços o sector industrial ao qual pertencia, tem eliminado qualquer concorrente, agora é o Imperador da Amazon. Atenção: não estamos perante o conto do jovem capitalista que com o suor e o empenho conseguiu emergir no terrível livre mercado. Falamos de alguém que destruiu milhares de lugares de trabalho, fez fechar milhares de outras empresas, monopolizou o sector que agora é só seu (e que, inclusive, trata os trabalhadores como autênticos escravos). Não morre apenas o Capitalismo, morrem também a multidão de indústrias a favor de monopólios colossais (os “Imperadores”), baptizados de “Plataformas”.

Com a Ferramenta para o Planeamento da Oferta, Pensadores Críticos e outros novos softwares, o Imperador terá uma ou mais Plataformas. No entanto, as Plataformas terão que interagir no Planeta, tudo é jogado acerca disso, das Plataformas. Usaremos o software para desmoronar compartimentos industriais com produtos ou soluções que ninguém ainda possui.

Quem é que fala assim? É Lloyd Blankfein, o simpático CEO da Goldman Sachs, que entretém Robert Smith (guru da Vista Equity Partners) e Jeff Immelt (CEO da General Electric) numa reunião privada. É suficiente? Digam adeus à pequena distribuição.

Portanto: 10 milhões de escravos tech-gleba sem alternativas, que utilizam uma tecnologia acerca da qual não têm controle mas que é necessária para sobreviver. Uma tecnologia que está toda nas mãos de alguns Imperadores. Empresas como Amazon, Google-Alphabet, Intel, Samsung, Microsoft, Apple, D-Wave Systems, todos os laboratórios de pesquisa de A.I. como General Electric, Bosch, MIT de Boston, milhares de startups como a Mobvoi Chinesa… Como disse um especialista informático ao Barnard: “Imagina que até nós, cientistas da computação e criadores de códigos, entendemos 0,9% destas coisas…”.

Este é o segredo: o conhecimento nas mãos de poucos. Com os muitos obrigados a seguir a linha.

Uma nota pessoal: a sociedade das Corporações é
provavelmente a natural evolução do Capitalismo. Não um “novo projecto”
mas um “inevitável projecto”, filho dos horrores do livre mercado. E não
deixa de ser irónico que o “livre mercado” dê à luz um “mercado
fechado”. Irónico mas normal: é o sonho de qualquer patrão competir num
mercado onde só ele dita as regras.

Uma sociedade das
Corporações, tal como descrita, tem muitos pontos em comum com o
Socialismo real soviético, evidentemente uma prova geral. E o círculo
fica assim fechado.

Ipse dixit.

Relacionados:
Tech- Gleba – Parte I
Tech -Gleba – Parte III (próxima publicação) 

Fonte: Paolo Barnard

4 Replies to “Tech-Gleba – Parte II”

  1. No fundo todo este "novo" sistema e modelo de sociedade que se pretende introduzir, não passa de um neo feudalismo.

    Tudo é propriedade dos novos amos e nós apenas usamos aquilo que nos é "emprestado".

    Velhos projectos com novas roupagens.

    Bandido

    1. Servos da gleba 2.0(tech)
      Aquele PDF de Maio do ano passado: o regresso dos novos barões, da u. de Cambridge explica muita coisa.
      É cada vez mais um monopólio sem regulação ou regras quem as dita é quem tem os "direitos de autor".
      A coisa é de tal forma que o ttip? não falava inclusive em tribunais privados? A individua que andou a fazer o lobby ou a dar a cara Cecília Malmstrom estava que nem uma rainha em Davos.

      Nuno

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