As sociedades gilánicas – Parte II

Na primeira parte do artigo analisámos uma das últimas sociedades gilánicas, aquela da Ilha de Creta.

Esta, todavia, representou o epilogo deste tipo de sociedade: o que tinha havido antes?

Responder não é simples, mas qualquer pesquisa tem que partir do culto da Grande Mãe, esta corrente religiosa que dominou amplos territórios antes da História “oficial”. Sem considerar os aspectos típicos desta fé, é impossível entender o funcionamento das sociedades gilánicas. 

O proto-comunismo

A descoberta e as escavações da estação neolítica de Catal Hüyük e Hacilar, nas planícies da Anatólia (a actual Turquia), revelaram uma continuidade histórica entre a religião do Paleolítico Superior e aquele do Neolítico. Afirma o arqueólogo James Mellaart, que liderou as escavações:

A brilhante nova avaliação da religião do Paleolítico Superior feita por Leroi-Gourhan esclareceu muitos mal-entendidos […] A interpretação da arte do Paleolítico Superior assim conseguida, com base no tema de um simbolismo feminino complexo, mostra fortes semelhanças com as imagens religiosas de Catal Hüyük.

Estatuetas da Grande Mãe, semelhantes àquelas encontradas na Turquia, foram também achadas em Vinca (ex-Jugoslávia), Cucuteni (Roménia), Jericó (Palestina), Knossos (Creta), Harappa e Mohenjo Daro (Índia), Tell-e-Sawwan (Egipto) e Çayönü (Síria), demonstrando como o culto da Deusa estava enraizado não só na Europa, mas também em muitas outras partes da Europa, África e Ásia.

É também importante realçar como nas sociedades gilánicas não havia uma clara separação entre o sagrado e o profano: a religião era a vida e vice-versa. Sem dúvida a religião tinha ritos, mas a essência de tudo estava em reconhecer-se como parte integrante da Natureza. Neste aspecto, não teria feito sentido uma discriminação entre homens e mulheres, e, de facto, sabemos que a sacerdotisas realizavam os ritos religiosos acompanhadas por sacerdotes.

Marija Gimbutas

Como consequência, as sociedades neolíticas não eram nem matriarcais nem patriarcais, mas
baseadas num modelo de parceria.

Outro aspecto importante era a matriz não-violenta da sociedade gilánica. Não que não houvesse episódio violentos: mas a guerra não era de forma sistemática para ampliar o território ou para conquistar riquezas.

A razão é simples: estas sociedades utilizavam um modelo comunitário, evidenciado pela sua arquitetura; enquanto as sepulturas não mostram diferenças substanciais relacionadas com o sexo ou a condição social. Portanto, é provável que não houvesse uma rígida hierarquia social. Doutro lado, a base de qualquer sociedade gilánica eram a agricultura, a criação, a recolha dos frutos da terra, a pesca, o comércio. Tendo também em conta que os níveis demográficos não eram comparáveis com aqueles de hoje, é fácil entender como a guerra não tinha muito espaço.

Marija Gimbutas escreve:

Há livros que sugerem ideias loucas, como aquela pela qual “a agricultura e a guerra começaram ao mesmo tempo”. Dizem que quando as aldeias começaram a crescer, a propriedade teve de ser defendida, mas não faz sentido! Houve propriedade, mas eram umas propriedades em comum. Na verdade, houve uma espécie de comunismo, no melhor sentido da palavra. Não poderia existir no século XX. Além disso, acreditavam que todos eram iguais em relação à morte.

A mesma Gimbutas descreve em pormenor a actividade agrícola e aquela comercial, ambas florescentes:

Cultivavam trigo, cevada, ervilhaca, ervilha e outras leguminosas, e criaram os animais, excepto o cavalo. A tecnologia da cerâmica e as técnicas de fabricação de osso e da pedra encontravam-se avançadas, a partir de 5.500 a.C. foi introduzida na Europa Central e Oriental a metalurgia do cobre. O comércio e as comunicações, que tinham sido expandidos ao longo dos milénios, devem ter produzido um impulso extraordinário na interação cultural e o uso do barcos a vela é testemunhado a partir do sexto milénio, em reproduções gravadas na cerâmica.

Também inventaram uma forma de escrita primordial e utilizavam cobre e ouro como ornamentos e ferramentas, demonstrando um negócio florescente e uma civilização avançada.

Infelizmente, este aquele das civilizações gilánicas é um âmbito ainda pouco estudado e isso deixou amplas margens para interpretações que nada têm a ver com a realidade: há quem veja esta época como uma espécie de Paraíso da humanidade, introduzindo conceitos errados ou exagerados. Por exemplo: é citado o hábito escolher os locais de residência não base na localização estratégica (como o topo duma colina) mas com base em critérios de beleza, ligados ao mito do Jardim do Éden, ainda muito presente.

Isso não faz sentido nenhum: ignorando a ideia do Éden (que faz ainda menos sentido), qualquer arqueólogo sabe que desde o início o homem escolheu posições estratégicas (o que não significa necessariamente “boas posições do ponto de vista militar”), sobrelevadas por uma questão de controle do território ou como defesa em caso de eventos naturais. As sociedades gilánicas eram tendencialmente pacíficas, mas não idiotas.

Pelo contrário, devem ser encaradas de forma pragmática, como uma fase na história do homem na qual houve condições para o surgimento de comunidades baseadas em conceitos diferentes dos nossos: condições que seria bem aprofundar para poder também melhorar a nossa sociedade.

As culturas gilánicas

Além da já citada Creta, há outros exemplos de sociedades gilánicas estudados.

Hacilar

Çatalhöyük e Hacilar

O sítio arqueológico de Çatalhöyük foi descoberto no final dos anos cinquenta. O arqueólogo James Mellaart realizou uma série de escavações entre 1961 e 1965, depois
interrompidas até 1993, o que trouxe à luz uma cidade fundada por volta
de 7000 a.C..

Houve inúmeros achados de esculturas e desenhos de figuras
femininas acerca da Grande Mãe.

Em particular, uma das características mais marcantes da Çatalhöyük e de Hacilar era a sua estabilidade política: a duração de vários milhares de anos sugere um nível de bem-estar incomum para a época.

Aqui desenvolveu-se uma economia agrária com um próspero comércio, um planeamento urbano particularmente claro e um desenvolvimento considerável nas artes, religião e cultura. 

Vinca

A cultura Vinca foi localizado cerca de 20 quilómetros a leste de Belgrado (capital da Sérvia). As escavações por Prof. Vasic, entre 1908 e 1932, colocaram esta civilização em torno do segundo milénio antes de Cristo, já que acreditava-se que uma sociedade tão avançada não podia ser muito mais antiga. Os modernos métodos de datação por radio-carbono mostram que a cultura Vinca remonta a um período entre 5300 e 4000 a.C.

O nível avançado de tecnologia também é atestado pela descoberta das chamadas tabuletas Tartar, onde há sinais semelhantes a uma forma de escrita rudimentar (outras foram também encontradas em Tisza e Karanovo), provavelmente a primeira verdadeira forma de escrita da humanidade.

A proto-escrita de Vinca comparada com achados similares de várias localidades

Cucuteni

Cucuteni é uma localidade da Roménia. Em 1884 foram descobertos muitas restos do período Neolítico, o que levou os pesquisadores a considerar a área como algo diferente de outras descobertas na Europa, até falar dum Cultura de Cucuteni.

Não havia diferenças entre os vários tipos de habitação. Portanto, não é possível determinar qual casas pertenciam às pessoas ricas ou às pobres. As diferenças na dimensão das casas pode ser atribuído ao número de membros da família que viviam lá, ou dependiam das técnicas de construção. Por isso, não é possível falar de desigualdade social (como nas sociedades onde a escravidão estava em vigor), mas apenas a existência duma hierarquia natural dentro de cada comunidade.

Também é possível afirmar que não havia uma classe de guerreiros e a maioria dos habitantes dedicava-se à agricultura. Aos poucos, começaram a surgir artesãos (ceramistas, trabalhadores de metais, entalhadores de pedra, construtores), bem como figuras com um papel específico no campo da religião. A abundância de figuras e de esculturas antropomórficas de sexo feminino, comparada com a escassez de sexo masculino, parece sugerir neste caso a importância do papel das mulheres dentro destas comunidades.

Interior duma casa da Cultura de Cucuteni

A Civilização do Indo

Por volta de 2500 a.C., perto da foz do rio Indo, tomou forma uma verdadeira civilização urbana muito desenvolvida que também utilizava a escrita.

A vida se desenrolava em torno da figura da Grande Mãe nas duas principais cidades de Harappa e de Mohenjo Daro, fabricadas de acordo com técnicas avançadas: as casas foram construídas com tijolos cozidos, debaixo das ruas corriam as canalizações do esgoto, havia também grandes silos que continham cereais. A economia era baseada na agricultura: principalmente cereais (trigo e cevada) mas também algodão, usado principalmente como um meio de troca.

A civilização do Indo entrou em colapso por volta de 1550 a.C. por causa das invasões de tribos da Rússia do Sul: os Kurgan.

A queda

As sociedades gilánicas foram destruídas entre 4000 e 2500 a.C., pelas hordas nómadas oriundas do Sul da Rússia, as chamadas tribos Kurgan. Estas hordas eram governadas pelas classes sacerdotais e dos guerreiros e tinham o domínio dos cavalos e das armas de guerra; eram organizadas de forma hierárquica e autoritária, e utilizavam a guerra como forma de conquista.

A invasão Kurgan

A sociedade Kurgan é bem conhecida pela arqueologia moderna: menos claro é o processo que levou ao aparecimento desta cultura na Europa.

Segundo a já citada arqueóloga Gimbutas (que em 1956 propôs a teoria hoje aceite dos Kurgan como veículo para combinar a arqueologia e a linguística na localização das origens dos povos falantes o proto-indo-europeu), o aparecimento dos Kurgans foi algo repentino e violento, que literalmente devastou as sociedades gilánicas.

Vice-versa, alguns estudiosos propõe uma expansão mais moderada, não necessariamente de tipo militar. A domesticação do cavalo é significativa neste aspecto: os indo-europeus (os Kurgan) eram guerreiros cavaleiros que usavam armas de impacto e que poderiam facilmente invadir outras áreas; mas no panorama europeu, os guerreiros montados aparecem apenas tardiamente, por volta do segundo milénio a.C. e estes não poderiam de nenhuma forma terem sido os guerreiros Kurgan de Gimbutas (que, segundo a teoria da estudosa, chegaram por volta de 3000 a.C.).

Seja como for, as culturas gilánicas tinham o tempo contado: mesmo sem Kurgan, em outras partes do mundo estavam a acrescer sociedades muito diferentes, desligadas do culto da Grande Mãe e baseadas em conceitos muito mais familiares: guerra, hierarquia, propriedade privada, dinheiro.
Na prática: a nossa sociedade.

Ipse dixit.

Relacionado: As sociedades gilánicas – Parte I

Fontes: Frederick Kortlandt: The Spread of the Indo-Europeans (Pdf, inglês), Razib Khan: Facing the Ocean; Marija Gimbutas: Old Europe in the Fifth Millennium B.C.; Marija Gimbutas: The Living Goddesses; Marija Gimbutas: Bronze Age Cultures in Central e Eastern Europe.

5 Replies to “As sociedades gilánicas – Parte II”

  1. …"guerra, hierarquia, propriedade privada, dinheiro", eis as bases da civilização. Não é a toa que toda organização social dos primórdios da humanidade até nossos dias que contrarie estes princípios organizacionais naturalizados deva ser condenado à inexistência, ou espécie de "tribos" sem importância e sem legado substancial. E, se subsistirem, como tantos grupos chamados primitivos, não civilizados, selvagens e que tais, devam ser subtraídos da face do planeta para não dar mau exemplo. A felicidade e a vida comunitária igualitária deve permanecer no imaginário de felicidade da humanidade, a utopia nunca alcançada, para que a civilização e todos os seus atributos prospere e não crie simplesmente adeptos, mas seja tida como a única, onipresente possibilidade. Até tentativas, digamos, um pouquinho socializantes, como não me canso de citar a era Kadaffi na Líbia, devem ser totalmente arrasadas, e antes disso, já consideradas um monte de tribos sob a tutela de um ditador excêntrico. Viva o desenvolvimento social, político e econômico da humanidade! Nós somos ótimos!

    1. Pois.

      O que surpreende é o silêncio ensinado sobre estas primeiras comunidades, já nas escolas. O tal "buraco" histórico é enorme, milhares de anos de vazio: há as cavernas, os primeiros agricultores e de repente eis a Suméria que traz o sedentarismo, a escrita, as cidades-Estados e os reis, as classes sociais (a aristocracia), os impostos, a burocracia, os escravos, o exército de profissão, mais vários deuses como bónus.

      Portanto: do nada para uma sociedade que contém em si todas as características da nossa sociedade.

      Interessante é o facto do mesmo esquema ser utilizado nas escolas para explicar a História da China: passa-se do nada para a primeira dinastia, a Xia (2200 a.C.).

      Mas recentes estudos demonstram a existência de várias culturas regionais que, surpresa!, eram caracterizadas por um modelo de vida comunitário, com igualdade entre homem e mulher, . É o caso da Cultura de Majiayao, que bem pode ser integrada nas Sociedades Gilánicas, activa entre desde o ano 3100 a.C.

      Grande abraçooooooo!!!!

    2. O que surpreende é ficar surpreso com isso. O ensinamento é de fundo doutrinário, ou seja, ensino o que me favorece…sempre foi assim.

  2. Desculpem este assunto que trago fora do tema escrito mas tenho de partilhar, pois nao me para de surpreender pela negativa ate onde as empresas de muito grande dimensao chegam para maximizar os lucros.
    "Bayer Corporation infecting unsuspecting hemophiliacs with AIDS"
    (Bayer infectando hemofílicos inocentes com AIDS HIV)
    Ver aqui : https://www.rt.com/shows/breaking-set-summary/234931-clinton-hiv-netanyahu-un/
    apartir dos 5 min 30 seg.

    EXP001

  3. Os universos são infinitos em expansão. A esperança humana não deve (como sempre pregam) morrer; não haveria sentido nisso. O niilismo só favorece aos escravistas.

    Ótima postagem assim como os comentários. Sou grato.

Obrigado por participar na discussão!

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