Proposta: dinheiro para os cidadãos – Parte II

Muito bem.
Resumindo: há uma proposta apresentada pelo candidato-líder do Partido Trabalhista britânico, Jeremy Corbyn, para que os Quantitative Easing (QE) sejam utilizados não em favor da Finança (bancos privados, especuladores, etc.) mas sim em prol da sociedade, cidadãos e empresas, com a construção de infraestruturas e melhoria das condições de vida.

Isso para que, como consequência, cidadãos e empresas sejam não apenas encorajados mas também postos nas condições de desenvolver o papel deles: as empresas produzir e os cidadãos comprar.

Faz sentido? Sim, faz sentido.
Mas eis que aparecem os Sábios que, como vimos, desaconselham firmemente esta medida porque teria consequências desastrosas. É verdade que estes Sábios são suspeitos, no mínimo: indivíduos como Tony Yates, ex-economista-chefe do Banco Central de Inglaterra; Mark Carney, governador da mesma instituição… enfim, pessoas que têm um carinho especial para o sector da Alta Finança. Mas o perigo apresentado tem um nome feio: hiperinflação. E, como já vimos num artigo muito antigo, é um risco real, no sentido que é um fenómeno que existe.

É real, mas quanto? Será que um (ou mais) QE para os cidadãos podem realmente desencadear o fenómeno da hiperinflação?

Um exemplo errado: Weimar

A grande maioria do público conhece o perigo da hiperinflação porque ligado à Republica de Weimar (Alemanha, logo após a Primira Guerra Mundial), enquanto quase todos
ignoram a hiperinflação do Zimbabwe. Normal, o Zimbabwe fica em África:
desde quando ficamos preocupados com os problemas africanos?

Por isso,
num artigo da série Breve mas interessante história da economia (Parte VII), ficou escrito quanto segue:

Pois, querido Leitor, é isso mesmo: a imagem popularizada de Weimar é
que o Estado alemão, após a derrota da Primeira Guerra Mundial, começa a
imprimir dinheiro como fossem rebuçados e isso leva a uma inflação tão
catastrófica que as pessoas vão a comprar o pão baldes cheios de notas
de 100 biliões de Marcos. A segunda parte é verdadeira, mas a primeira é
totalmente falsa.

O problema é que ainda hoje, quando alguém dizer “Precisamos de mais
gastos do Estado para impulsionar a economia”, eis que aparece o génio
da turma e começa a gritar “Weimaaaaar” e todos ficam calados. […]

Mas querido Leitor, o que realmente acontece durante a República de Weimar?

Acontece o seguinte: a Alemanha perdeu a Primeira Guerra Mundial e com o
Tratado de Versalhes os vencedores decidem que deve pagar os danos de
guerra. Ok, está certo. Mas o que está errado é forçar Berlim a pagar
muito, e de forma demasiado rápida. Então o que faz o governo alemão?
Obrigado a pagar, começa desesperadamente a produzir para exportar e
ganhar assim o suficiente (especialmente ouro) para pagar estas dívidas
colossais. Ao mesmo tempo, a França e a Bélgica tinham ocupado uma das
regiões mais produtivas da Alemanha, a Ruhr.

Então querido Leitor, tu sabes que a inflação aparece especialmente
quando um País tem muito dinheiro e muitos poucos produtos para comprar,
certo? E acabámos de dizer que a Alemanha é forçada a exportar uma
montanha de produtos para pagar as dívidas e que a super-produtiva Ruhr
já pertence aos vencedores. Na Alemanha, os produtos disponíveis para o
consumo interno tornam-se cada vez mais escassos. E depois não podemos
esquecer que o governo ainda toma uma parte da produção para o
funcionamento dele.

Qual é o resultado? Muitos produtos são “sugados” por estes factores e
as pessoas não têm muito para comprar. O governo, então, para não
agravar a exasperação dos cidadãos, decide não cortar os salários ou
taxar para conter a inflação: e continua a imprimir dinheiro por causa
destes motivos. Portanto, na República de Weimar, os produtos são
escassos, as pessoas tomam o salário e o Estado também, no sentido de
que imprime dinheiro para as necessidades dele. Governo e cidadãos
competem um contra os outros para comprar os poucos produtos
disponíveis; o dinheiro é produzido mas não investido, continua a
circular e sobretudo a acumular-se: e a inflação aparece, desastrosas.

Resumindo: em Weimar há sim demasiado dinheiro, mas só porque com o
Tratado de Versalhes os vencedores criam um mercado com poucos recursos,
poucos produtos, com dinheiro criado que não tem “saída” e nem pode ser
gasto (nada de investimentos mas nada de simples compras também),
enquanto o governo alemão faz graves erros na gestão da crise.

Claro? Dito de outra forma: o dinheiro é um instrumento e como tal tem que desenvolver uma função. Que é aquela de comprar (ou melhor: permitir as compras). Se não houver nada para comprar, o dinheiro não circula e começa a perder valor. Porque? Porque se torna inútil: demasiado dinheiro e zero produtos. Para que serve uma carteira cheia de notas se depois não podemos comprar nada?

Eis a inflação: demasiado dinheiro em comparação aos bens que é possível adquirir. E os preços sobem porque, se o dinheiro vale pouco, será preciso cada vez mais para adquirir um bem. E, quando a situação piorar até o limite, aparece a versão catastrófica: a hiperinflação. Dinheiro que não vale nada, preços astronómicos.

E quando houver muito dinheiro mas também produtos disponíveis, a hiperinflação aparece na mesma? Não, não aparece. Os produtos são adquiridos, o dinheiro circula, favorece o investimento e o aparecimento de novos produtos. Pelo que: o dinheiro desenvolve a função dele, permite adquirir, circula e mantém o seu valor.

Então temos aqui um problema: porque os Sábios economistas apresentam o bicho-papão da hiperinflação quando se fala dum QE (injectar grandes quantias de dinheiro no mercado) para os cidadãos? Basicamente por uma razão: desfrutam a nossa ignorância para que a sociedade continue a favorecer uma restrita camada de indivíduos.
Vamos esclarecer este ponto.

Um exemplo certo: a Grande Depressão

Antigamente (até a Grande Depressão), a teoria económica convencional dizia que produzir mais
dinheiro criava inflação e, nos casos limites, a hiperinflação. É exactamente a tese dos Sábios economistas de hoje.

Os quais, todavia, bem sabem como esta teoria foi deitada para baixo quando John Maynard Keynes e outros economistas observaram que as falências bancárias levavam a uma redução substancial da quantia de dinheiro em circulação.

Segunda teoria clássica:

menos dinheiro em circulação = menos inflação = preços dos bens constantes ou até reduzidos.

Segundo a realidade da Grande Depressão:

menos dinheiro em circulação = mais inflação = preços dos bens em aumento.

Algo não batia certo: evidentemente a teoria clássica estava errada pois a escassez de dinheiro estava a afectar cada vez mais os preços.

Eis portanto que Keynes explicou os factos com uma nova teoria, que ultrapassou aquela clássica. A teoria é muito simples, tão simples que hoje podemos perguntar “Mas como é que ninguém tinha pensando nisso antes?”.

A teoria de Keyens diz o seguinte: a realização das actividades normais duma economia exige uma certa quantidade de dinheiro. Se a quantidade de dinheiro for menor daquela necessária, então as empresas não podem funcionar, não podem efectuar compras (as matérias primas), não podem pagar os trabalhadores ou fazer investimentos.

Só isso? Sim, só isso: esta é a “chave” da teoria de Keynes. Hoje todos os economistas conhecem e aceitam a teoria de Keynes.

Keyens apresentou as lógicas consequências da sua teoria: se o problema for a falta de dinheiro, a solução é obviamente aumentar a oferta de dinheiro. Keynes até sugeriu um paradoxo: imprimir dinheiro e enterrá-lo nas minas de carvão para que os desempregados pudessem trabalhar para extrai-lo e ter assim recursos para comprar. Até Milton Friedman, economista arqui-inimigo de Keyens, teve que admitir que a redução da oferta de dinheiro foi a causa da Grande Depressão. Em vez de enterrar o dinheiro nas minas, Milton sugeriu que o dinheiro fosse lançado a partir de helicópteros para resolver o problema do desemprego.

Falta dinheiro

Isso explica perfeitamente porque, apesar de todos os QE aprovados nos últimos anos (nos Estados
Unidos, na Europa, no Japão), a hiperinflação não apareceu (e nem a inflação). A verdade é que há ainda há pouco dinheiro em circulação: o dinheiro criado com os QE acaba nos bancos privados que o desviam para a Finança, não é utilizado para a Economia.

Portanto: (nos nossos bolsos) continua a faltar o dinheiro.

É importante realçar que, seguindo a teoria de Keynes (que, repetimos, está correcta), nem a criação de novos postos de trabalho resolve o problema: pouco dinheiro nos bolsos dos trabalhadores significa que as prateleiras dos supermercados vão continuam cheias. Trabalhos mal pagos não ajudam a economia.

Portanto, quando um Tony Yates, ex-economista-chefe do Banco Central de Inglaterra, ou um Mark Carney, governador da mesma instituição, apresentam o fantasma da hiperinflação como consequência dum QE para a sociedade, mentem sabendo de mentir. Desfrutam a nossa ignorância em matéria económica para nos assustar e fazer que as coisas continuem a funcionar como até agora. O que não é nada simpático.

Há depois um último problema ligado à forma como hoje é criado e gerido o dinheiro. Que dizer: haveria mais do que um problema neste sentido, mas um afecta directamente o assunto até aqui tratado, o QE para os cidadãos. É um problema fundamental, que põe em risco a proposta de Jeremy Corbyn.

O nome? Usura. Mas esta é matéria para a última parte do artigo.

Ipse dixit.

Relacionados:
Proposta: dinheiro para os cidadãos – Parte I
Proposta: dinheiro para os cidadãos – Parte III (em preparação)

Fontes: no final do artigo

5 Replies to “Proposta: dinheiro para os cidadãos – Parte II”

  1. Gostei do artigo. Economia e financa sao areas muito desconhecidas para mim mas os raciocinios aqui explanados fazem para mim todo o sentido.
    No entanto o problema e este :
    – "Dinheiro é poder", ou deveríamos dizer, "O monopólio de criar crédito monetário e cobrar juros é Poder Absoluto".

    – "Deixe-me emitir e controlar o dinheiro de uma nação e não me importa quem faz suas leis". Bauer Mayer Rothschild, 1838

    – O devedor sera sempre escravo do seu credor. (Nao me recordo quem e o autor)

    Não se trata de economias a funcionar em pleno para o bem dos cidadãos, mas sim das classes altas ou elites que pretendem manter a todo o custo os seus poderes, previlegios,controlo e submissao sob os outros. Se as pessoas estiverem endividadas, em situacao precaria e insegura submetem-se a practicamente tudo ou por medo de perder a casa para o banco, ou de nao poder alimentar e criar os seus filhos. Agora cidadaos livres de dividas, com poupancas um bom nivel de vida, que pudessem mandar as urtigas o patrao explorador ou ser mais criticos em relacao a classe politica que muito se aproveita disto tambem para alimentar esperancas e ilusoes falsas e algo que o grupo restrito que esta bem nao quer de maneira nenhuma.
    Nota :. Refiro-me as culturas ocidentais, as asiaticas , arabes, russas nao conheco

  2. Aqui um exemplo do quanto algo tão importante é tão desprezado pelos próprios navegadores.

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