Proposta: dinheiro para os cidadãos – Parte I

Jeremy Corbyn

Na nossa sociedade doentia, quando uma pessoa apresenta uma proposta lógica, racional, ditada pelo “bom sentido”, merece destaque. De facto, é uma anormalidade.

A jornalista (e escritora ) Ellen Brown aprofunda a tese de Jeremy Corbyn, candidato para tornar-se líder do Partido Trabalhista britânico. Corbyn tem uma ideia muito esquisita: parar de entregar dinheiro público aos bancos privados (com os Quantitative Easings, QE) e utiliza-lo em favor dos cidadãos.

Explica Corbyn:

O “re-equilíbrio” do qual falo é referido ao sector financeiro para os sectores de crescimento rápido e sustentável no futuro. Como podemos fazer isso? Uma possibilidade seria dar ao Banco da Inglaterra um novo mandato para melhorar a nossa economia, investindo pesadamente em novas moradias, energia, transportes e projectos digitais. Um Quantitative Easing para as pessoas, portanto, em vez que para os bancos.

Portanto: já não atirar dinheiro para o poço sem fundos dos bancos privados (que reinvestem os montantes em operações especulativas) mas favorecer o desenvolvimento económico ajudando o cidadãos, com infraestruturas físicas e digitais, melhorando assim o seu nível de vida.
Emitir dinheiro em prol do bem-estar dos cidadãos: definitivamente, o homem é um anormal.

Explica o assessor económico de Corbyn, Richard Murphy:

O QE para as pessoas é um processo no qual ele é comprada de volta a dívida que tinha sido deliberadamente criada por uma autoridade local, uma empresa sanitárias estatal ou outras agências,com o objectivo específico de financiar novos investimentos na economia, dado que os grandes mercados comerciais e financeiros não são capazes de fazê-lo na medida necessária para que o Reino Unido volte a funcionar.

A ideia em si não é nova. O grupo Money, por exemplo, realça como o mesmo processo já foi apoiado, ou pelo menos sugerido, por economistas proeminentes tais como Keynes, Milton Friedman, Ben Bernanke, William Buiter e Martin Wolf. E, mais recentemente, Lord Adair Turner propôs algo semelhante, mostrando que “não há razões técnicas para rejeitar esta opção”.

Nós, os mercados e o QE 

O princípio de base é simples: quem faz funcionar a economia? Resposta: o mercado. Mas quem é o mercado? Somos nós, os compradores. Não importa quantas fábricas podem existir ou qual a capacidade produtiva: sem compradores, sem alguém que adquira quanto for produzido, a economia para.

Paralelamente a este mercado (que é o mercado real, a Economia), desenvolve-se outro paralelo, aquele financeiro, das Bolsas (a Finança). Aqui nada é produzido, o que é tratado são os capitais, os investimentos, a compra-venda das acções de empresas. Mas atenção: o mercado financeiro deve apoiar-se no mercado real (o único que produz). O mercado financeiro (a Finança) é um derivado do mercado real (a Economia) e só pode existir em quanto tal. Caso contrário, teremos uma anomalia: um mercado financeiro que trata dos capitais, dos investimentos, das acções dum mercado real que não existe ou que não produz o suficiente para justificar uma grande Finança.

Infelizmente, nós vivemos numa sociedade em que a Finança tomou o controle de todo o mercado. Sendo que no mercado financeiro os lucros podem ser acumulados de forma bem mais rápidas (com a especulação), a actividade produtiva (a Economia) passou para o segundo plano. E os QE da Federal Reserve americana ou do Banco Central Europeu são uma prenda para bancos privados e investidores: colossais quantias de dinheiro atiradas para o mundo da Finança e que permitem que o jogo continue, mesmo que a Economia (o mercado verdadeiro: as empresas, as fábricas, os compradores, etc.) esteja em sofrimento.

Daí a ideia de Corbyn. Que faz todo o sentido: porque uma Finança “desligada” da economia real cedo ou tarde implode, fica sem pernas para andar. Os vários QE são uma maneira para injectar no sistema financeiro liquidez que deveria chegar do mercado real.

Mas há um problema: o dinheiro dos QE é “queimado” na especulação, não produz riqueza para a sociedade: os beneficiários são os grandes investidores da Bolsa, uma restrita camada da população, a mais rica. A sociedade não ganha nada. Ou melhor: evita as consequências dum Armageddon financeiro, que iria incidir nos bolsos de todos (porque os ganhos são privados mas as perdas são públicas), mas é magra consolação. Portanto eis a pergunta: e se o QE fosse feito em prol da sociedade, dos cidadãos?

O bicho-papão: a hiperinflação

Obviamente a simples ideia faz endireitar os cabelos de qualquer especulador e logo descem em
campo os paladinos da Finança, disfarçados de profetas de desgraças. Eis pro exemplo o diário Telegraph:

Especialistas dizem que uma vitória de Jeremy Corbyn na próxima eleição geral iria colocar a Grã-Bretanha em rota de colisão com Bruxelas e levaria o Reino Unido em uma ruína em pleno estilo Zimbabwe. […] Tony Yates, ex-economista-chefe do Banco Central e agora um professor da Universidade de Birmingham, disse: “Esta estrada leva à ruína da política monetária. É exactamente o que fez o Zimbabwe, que parou de pagar as suas dívidas através da impressão de dinheiro novo”.

É a vez do governador do Banco da Inglaterra, Mark Carney:

A razão pela qual não deveria dar-se início a esta conversa é que a proposta, se implementada, levaria à remoção de qualquer disciplina na política fiscal.

Portanto: imprimir dinheiro para que uma restrita camada de indivíduos, que continua a enriquecer e encher as bolhas financeiras, é bom e faz bem à política fiscal. Utilizar o mesmo dinheiro para criar infraestruturas, para que cidadãos e empresas tenham mais liquidez para produzir e comprar e mau e leva à ruína global.

Onde fica a lógica?

A lógica fica numa palavra: hiperinflação. É este o bicho papão apresentado por quem defende a manutenção do actual estado. Mais dinheiro produzido significa aumentar a inflação, até a hiperinflação. E ninguém gosta dela.

Faz sentido isso? Sim, faz. A hiperinflação não é apenas algo teórico, é um perigo que existe, é concreto. Todavia ninguém aqui arrisca a hiperinflação e a proposta de Jeremy Corbyn não provocaria nenhuma hiperinflação. É um falso perigo, apresentado simplesmente porque nada mude, para que a Finança possa continuar a gozar dos rios de dinheiro que pontualmente recebe com os vários QE.

Veremos porque a hiperinflação é um falso perigo na segunda parte do artigo.

Ipse dixit.

Relacionados:
Proposta: dinheiro para os cidadãos – Parte II
Proposta: dinheiro para os cidadãos – Parte III (em preparação) 

Inflação ou Deflação? para ter uma ideia do que é a inflação 
Quantitative quê? para ter uma ideia do que é um Quantitative Easing
Piripirilândia e a terrível Besta da Inflação

Fontes: na segunda parte do artigo.

17 Replies to “Proposta: dinheiro para os cidadãos – Parte I”

  1. A ideia é boa, ou melhor, é lógica.
    Estranhei ler que o Ben Bernake já tinha sugerido algo semelhante.

    Krowler

    1. Sim, deve ter sido no dia em caiu e bateu com a cabeça.
      Prontamente foi tratado e voltou a ser o verme do costume.

      Grande abraçoooooooo!!!!

  2. Tentaram fazer isso aqui no Brasil em 12 anos… E o que aconteceu??? O Itaú e o Bradesco desde a crise iniciada nas eleições de 2014 lucraram absurdamente… E hoje o responsável pelas contas do governo é o Levy, representante mais que distinto dos banqueiros… Ou eu estou enganado???

  3. Tentaram fazer isso aqui no Brasil em 12 anos… E o que aconteceu??? O Itaú e o Bradesco desde a crise iniciada nas eleições de 2014 lucraram absurdamente… E hoje o responsável pelas contas do governo é o Levy, representante mais que distinto dos banqueiros… Ou eu estou enganado???

  4. O comentário acima menciona que "Tentaram fazer aqui no Brasil em 12 anos"???? Acho que estava em Marte…
    Max, antes de publicar a segunda parte, não esqueças de um fato decisivo para que tal iniciativa não prospere. A lógica da escassez da maioria. É lutando pela sobrevivência que a maioria não consegue perceber a realidade que a envolve e a domina. Tornam-se presas fáceis para seus dominadores, que jamais permitirão tamanha reversão.
    Uma sugestão: Já lestes sobre as múmias de Paracas? Leia que é muito interessante.
    Abraço.

    1. Acerca das múmias: há uns quantos problemas.
      O que é pena, que fique claro.

      1. Malformações artificiais não eram tão incomuns nos tempos passados e ainda hoje, em algumas tribos africanas, são praticadas. Muitas vezes servem para definir o status social do sujeito. Portanto tornam-se cruciais as análises do DNA.

      2. As análises foram feitas por…quem? Este é o problema. Não sabemos quem conduziu as análises, em qual laboratório, quem foi o/os geneticista/s, nada. Foerster, que é director do Museu de História de Paracas (foi ele que anunciou os resultados), não cita nenhum nome. Mark Newton, jornalista que tratou do caso, cita como possível genetecistas envolvido na análise Lloyd Pye, do Projeto Starchild. Mas Lloyd Pye geneticista não é, nem alguma vez alegou sê-lo.

      3. Por último, seria engraçado apresentar estes resultados supostamente sensacionais ao mundo científico, como autêntica desforra, e não publica-lo apenas no Facebook porque "esta informação pertence AO MUNDO, e não a alguns poucos académicos", como escreve Foerster…

      Esperamos futuros desenvolvimentos, nunca se sabe!
      Obrigado!

      Abraçoooooooooo!!!

    2. Mas não esqueças de que se os achados e as conclusões forem contra os interesses da academia certamente irão sofrer um desprezo científico. E acho que é exatamente o caso aqui abordado.

  5. Enquanto andarmos aqui a jogar a feijoes a ver as arvores em vez de ter uma visão da floresta nunca chegaremos a lado nenhum de bom nem nunca conseguiremos mudar nada.
    A história moderna está afogada em conceitos de conspiração.
    O mais popular deles é, provavelmente, um conceito de governança mundial.
    Evidentemente não há Governo, mas há 30-40 famílias que têm as mãos postas sobre os recursos do planetas.
    O que se passa e a luta por recursos, a conexão íntima entre guerras mundiais e processos financeiros
    No establishment global financeiro de hoje há dois grandes blocos.
    O primeiro é o bloco britânico-EUA. Durante o século 19 e nos anos 1920s, o bloco estava caindo aos pedaços.
    Hoje porém os laços internos dentro do bloco voltaram a fortalecer-se.
    O segundo bloco inclui alemães, italianos do norte, o Vaticano. Não há governo mundial ‘secreto’ do qual os teóricos conspiracionistas tanto gostam de falar. Mas, sim há cerca de 30-40 famílias que controlam as alavancas dos processos econômicos mundiais.
    Há uns poucos anos, uma equipe de matemáticos suíços pesquisaram e descobriram que 40% da riqueza do mundo pertence a 147 empresas transnacionais. Cada uma delas tem seu próprio “núcleo”, de cerca de 45 empresas. O núcleo tem seu nucléolo: 15 empresas transnacionais.
    Essa estrutura continua a operar, embora com muitas contradições internas. As contradições são relacionadas principalmente à redistribuição da indústria da droga. Todos compreendem que se não houvesse tráfico de drogas, metade dos bancos que há no mundo fechariam.
    Especialistas dizem que essa área tem suas próprias tendências. O Reino Unido e os EUA financiam o fluxo de heroína; o Vaticano, a cocaína; a Alemanha financia as drogas sintéticas. As drogas hoje são um dos componentes mais importantes da economia global.
    A economia global está criminalizada em alto grau. Cerca de 30% do comércio de petróleo é ilegal, e no comércio de armas essa porcentagem é ainda mais alta, chega a 50%. A indústria da prostituição e da pornografia envolve 4,5% de toda a população do planeta. Esse mercado existe quase completamente nas sombras, “mercado negro”, como dizem.
    O mercado dos metais preciosos não é muito diferente. Nessa situação, qualquer estado que declare a própria e plena soberania, inevitavelmente se converterá em obstáculo para tornar a economia global ainda mais criminalizada. Henry Kissinger costumava dizer que globalização é só um novo modo de dizer ‘os EUA governam o mundo’, mas não é só isso: globalização implica também a criminalização da economia global. Nesse modelo absolutamente não há lugar para estado soberano.
    Sintomas disso sao :
    Transatlantic Trade and Investment Partnership (TTIP)
    Trade in Services Agreement (TiSA)
    Trans-Pacific Partnership (TPP)
    Basicamente tudo o que se passa e resultado das accoes dessas 30 a 40 familias, os QEs as politicas que nos são impostas, tudo tem a ver com a racionalidade (ou falta dela) dos seus interesses das guerras entre elas nao das pessoas comuns. Tudo o que va para alem dos seus interesses e esmagado e ponto final.

    Recomendo vivamente este video de Andrei Fursov que da uma imagem do que temos actualmente e com enquadramento historico

    A ti tambem Max

    EXP001

  6. Olá Max.

    Se o povo inglês tiver a sensatez de apoiar o senhor Corbyn, tenho a ideia que ele irá ficar "repentinamente" doente, com uma doença rara…e diagnóstico reservado.

    Obrigado pelo excelente artigo.

    Abraço,

    R. Saraiva

  7. Mais tarde ou mais cedo isto vai ter que acontecer. Ao ritmo que o desemprego cresce em todo o mundo, daqui a uns anos vai ser muito difícil encontrar um emprego, o que significa menos dinheiro para gastar, e por consequência mais lojas e fábricas a fecharem, fazendo com que todo o resto que vive do capitalismo sofra também. Portanto, com o desemprego a aumentar, é extremamente necessário tentar arranjar maneiras de as pessoas terem dinheiro para o sistema continuar a funcionar. Esta é uma delas e bastante boa até. Agora é preciso fazer os casmurros verem os benefícios que daqui a sociedade pode obter.

    Max, o que o Corbyn quer implementar tem o mesmo fundamento que o rendimento básico incondicional certo?
    Um abraço

  8. Hoje eu sei PORQUE, sendo a economia uma área de conhecimento essencial à vida dita civilizada, as disciplinas escolares de crianças e adolescentes não contemplam estes estudos. Malgrado 80% do que se ensina nas escolas está errado ou enviesado politicamente, no sentido do conservadorismo político, social, econômico, moral etc, ainda sobrariam uns 20% para atender alguns olhos e ouvidos curiosos. Simplesmente porque quanto maior a ignorância à respeito, mais facilmente boas ideias são demonizadas, e pronto.
    Pessoalmente, ainda que minha escolarização tenha passado por doutorado, pós doutorado e o escambau, malgrado meus 65 aninhos de escola da vida, aprendi um pouquinho aqui, pois desde os idos de 2010 (acho que foi por aí) tu tentas aprender/ensinar uma espécie de alfabetização de economia política e geopolítica, e eu me sinto uma das beneficiadas. Bom trabalho!

  9. Se é o Ricardo Saraiva o aniversariante, meus cumprimentos também. Vida longa, saúde, alegria e…muita paciência com os humanos!

Obrigado por participar na discussão!

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