Do radicalismo

Tive dúvidas se publicar algo acerca do radicalismo. O perigo de ser mal interpretado existe, sobretudo numa altura em que o termo “radical” é frequentemente associado ao adjectivo “islâmico”.

Mas falar do radicalismo é uma necessidade. Por qual razão?

A resposta é uma outra pergunta: porque os mega-bancos, as mega-corporações, a mega-finança ganham? Porque “têm os meios”? Será por causa disso? Não, não é. Os meios em si não valem nada. Ter um Ferrari e não saber conduzir significa não ter nada: ter um instrumento e não saber utiliza-lo é nada. Portanto não são os meios.

Então é o quê? É o radicalismo. Eles são implacáveis nas suas ideias, nas ações. São determinados. Fixam um objectivo e vão em frente até consegui-lo. Não há obstáculos: os obstáculos são eliminados, custe o que custar.

Quanto custa fazer que o Banco Central da Líbia passe sob o controle dos grandes bancos privados? Uma guerra? Algumas centenas de milhares de mortos? A instabilidade insanável do País? Paciência: faz-se.
Quanto custa ocupar a maior fábrica de ópio do mundo, o Afeganistão, e pô-la a funcionar ao máximo da capacidade? Uma outra guerra? Outras centenas de milhares de mortos? E, entre eles, alguns soldados ocidentais também? Faz-se.
Quanto custa estabelecer a hegemonia israelo-sunita no Oriente Médio? Um inteiro novo estado de fanáticos que despoletam guerras na região e massacram inocentes? Faz-se, sem problemas.

Este é o truque: faz-se, não há espaço para compromissos.

Gandhi, King, Lincoln, Malcom…

Gandhi proibia que os seus cozinheiros em Ashram falassem e vestissem roupas íntimas durante a preparação dos alimentos. Uma palavra? Estavas fora.
Martin Luther King decidiu a ocupação das cantinas escolásticas reservadas aos brancos no sul dos Estados Unidos: os estudantes negros sentaram-se à mesa dos brancos e nenhum se levantou.

Quem chegou antes? O radicalismo dos mega-bancos ou Gandhi e King? Os últimos, é claro.
O verdadeiro poder entendeu que as acções e as ideias radicais, a feroz determinação típicas dos maiores campeões das revoluções sociais do final do século XIX, eram a arma decisiva para ganhar. E decidiu adaptar-se.

Na altura, Abraão Lincoln e os seus companheiros pensavam que o facto de trabalhar para ser pago fosse completamente absurdo. Chamavam isso de “escravidão”. No ponto de vista deles, o salário era tolerado apenas se entendido como uma transição para um estado em que a pessoa trabalhava por conta própria, gozando do fruto do seu trabalho, sem ter um patrão ou uma inteira classe de donos. E sim, meus senhores, este era o Capitalismo original, a interpretação mais correcta.

Lincoln e companhia eram radicais? Sim, eram. Porque radical não significa apenas ser pessoa violenta, que parte tudo: é possível ser radicais nas próprias posições morais ou políticas sem partir nada. É isso que aterroriza os adversários, não a violência, mas o radicalismo, porque é a única arma que pode vencer um inimigo igualmente radical, o verdadeiro poder.

Malcolm X

Malcolm X foi morto por causa disso. O seu radicalismo moral assustou não apenas o governo dos Estados Unidos (o FBI tinha infiltrado agentes entre os seguidores dele) mas a mesma Nação do Islão e o seu corrupto líder Elijah Muhammad. E foram os assassinos de Elijah Muhammad a matar Malcolm X em Fevereiro de 1965. O que teria sobrado na História de Malcolm X se ele tivesse abraçado o oposto do radicalismo, ou seja o compromisso?

O radicalismo das ideias, a determinação, foi suficiente para que uma única mulher, a Nobel birmanesa Aung San Suu Kyi, colocasse na cruz um dos piores regimes do planeta, o da Birmânia. Suu Kyi é prisioneira política na Birmânia desde 1989, tendo estabelecido no auge da ditadura militar um movimento de paz para a democracia. Aung San Suu Kyi está bem longe de ser uma santa (os santos não têm nada a ver com o World Economic Forum), mas não é isso que interessa aqui: o que conta é que foi o radicalismo dela a arma decisiva para abalar o regime.

Poucos sabem que Aung San Suu Kyi era casada com um académico, chamado Michael Aris, e que o casal teve dois filhos. Após ter sido presa, o regime ofereceu-lhe várias ocasiões para renegar a sua luta e, em troca, ser autorizada a ver a família. Ela não quis. Quando Aris adoeceu e ficou perto da morte, a oferta foi repetida. Ela não quis. Hoje a ditadura birmanesa é incapaz de manter o País nas condições do passado: demorou 26 anos de radicalismo de Aung San Suu Kyi e dos seus seguidores, mas conseguiram. O que teria acontecido se tivessem escolhido o compromisso?

Os exemplos são infindáveis: após quase 30 anos de prisão, Mandela foi libertado e as primeiras palavras foram as mesmas de quando tinha entrado na cela: “A nossa luta continua e, se necessário, será armada”. O seu radicalismo não se mexeu dum milímetro e conseguiu derrubar o inimigo. Depois Mandela mudou de combatente para político e foi completamente absorvido pelo sistema, como é lógico: mas quem se lembraria hoje de Mandela se tivesse envergado pela estrada dos compromissos?

Radicalismo: instrumento e sacrifício

Este é o radicalismo: adoptar uma ideia e manter-se fiel aos princípios dela.
Radicalismo não é semear bombas ou cortar gargantas: este é o radicalismo dos fanáticos, de quem não tem argumentos a não ser a violência. Antes de chegar ao patamar da violência, há muitos outros passos, que implicam um preço bem mais elevado: porque matar um outro é relativamente simples, estar disposto a sacrificar-se em primeira pessoa requer muita mais coragem. 

Objecção: o radicalismo não pode ser uma faca de dois gumes? Nas mãos dum monstro como Pol Pot, por exemplo, produziu um dos mais arrepiantes horrores da História: o regime da Camboja. Sim, é verdade. Mas aqui temos que realçar a diferença entre termos quais “radicalismo” dum lado e “extremismo” ou “fanatismo” do outro: não são sinónimos, é perfeitamente possível ser radical sem ser extremista ou fanático. Vice-versa, quando se juntam provocam desgraças: Pol Pot era um radical, extremista, fanático e demente.

Pol Pot

Mesmo assim, é preciso lembrar como o radicalismo de Pol Pot (acompanhado pelo extremismo e o fanatismo) funcionou. Pois o radicalismo é isso: um instrumento que funciona, para o bem e para o mal. O instrumento em si não está em causa: é o fim para o qual se trabalha que importa.

Para esclarecer: a Democracia é boa? Quase todos estão dispostos a responder que “sim”. No entanto, neste planeta há guerras, muitas vezes movidas por aquele que é reconhecido como o principal País democrático do planeta, os Estados Unidos, a terra da Liberdade e das oportunidades. Como pode a Democracia ser boa se o principal País supostamente democrático farta-se de invadir outros Estados, bombardear, apoiar golpes militares?

A NATO não é formada por Países “democráticos”? Então, a Democracia não era boa? A resposta é que a Democracia não é nem boa nem má em si: é apenas um instrumento. É a utilização que fazemos do instrumento que determina os resultados finais e a “bondade” ou não deles. Com o radicalismo é a mesma coisa.

Retomamos as ideias de Abraham Lincoln: “O trabalho assalariado é uma escravidão que tem necessariamente de ser superada”. Agora observamos os compromissos escolhidos pelas organizações sindicalistas ocidentais: a distância entre o antigo presidente norte-americano e estas últimas é de proporções cósmicas, como de proporções cósmicas é a humilhação no trabalho hoje e a vitória do verdadeiro poder sobre os direitos dos trabalhadores.

O compromisso

Infelizmente, o radicalismo fica muito longe de nós.
Ninguém é capaz de dizer “não” e daí não se mexer. O que temos é uma vida feita de compromissos.

Aceitamos o trabalho porque “temos família”, porque os filhos precisam da escola, porque as contas devem ser pagas. Aceitamos esta pseudo-Democracia porque “é o menor entre os males” e porque dizem não haver válidas alternativas (dizem…). Aceitamos a nossa condição de escravos (quando formos capazes de entende-la) porque “é assim que funciona o mundo”. Assumimos ser espiados via internet porque “não tenho nada para esconder” e porque “tanto somos controlados na mesma” e depois temos que ficar informados.

Por fim, aceitamos as leis porque uma sociedade (isso é: um grupo de indivíduos que decidem viver juntos) deve dar-se algumas regras e a alternativa apresentada é a anarquia (no sentido negativo do temo). E as leis, é ensinado desde muito cedo, devem ser respeitadas.

O resultado é que boa parte da nossa vida é um compromisso. O radicalismo fica fechado numa gaveta, donde nunca mais volta a sair. O custo é alto, altíssimo. Trocamos a nossa liberdade, a capacidade de escolher a nossa vida e a vida das nossas famílias, os nossos sonhos, até o futuro: com quê? Com a possibilidade de viver como os outros escravos.

“Mas os escravos não votam!” pode rebater o sagaz Leitor.
Verdade. E nem nós.

Aníbal Cavaco Silva, infelizmente ainda Presidente da Republica Portuguesa em vida, numa entrevista da semana passada:

Cartão PIDE de Aníbal Cavaco Silva

Há muita coisa que se diz durante a campanha, mas o que é preciso ter em atenção, como acontece nos outros países da Europa, é que quando terminam as eleições cada um faz as suas concessões. E por isso, aquilo que vai ser executado pelo Governo não é o programa do partido A nem o programa do partido B, é aquele que resulta da junção das diferenças dos programas de cada um deles, é assim que deve ser, é assim que se passa nos outros países.

Além do provincialismo típico do pobre enriquecido qual é Cavaco (“o que se passa nos outros Países é bom”), o que interessa reter aqui é a admissão de que as eleições valem o que valem: nada. Os programas eleitorais são apenas um chamariz, pois logo após as urnas intervém o compromisso e as políticas são “ajustadas” às exigências. De quem? Dos partidos. Que, desta forma, utilizam o poder atribuído para modificar os programas escolhidos pelos cidadãos.

E repare-se: “é assim que deve ser”. Trata-se da apologia do compromisso, a exaltação da manipulação dos resultados eleitorais em prol da “governação”. Mas é uma governação que não saiu das urnas: é decidida nas sedes dos partidos. Eis materializar-se o fantasma do compromisso, o anti-radicalismo.

O exemplo de Syriza

Mudar a nossa sociedade passa inevitavelmente pelo radicalismo.
Infelizmente, não será agora ou no próximo futuro. Não há espaço, não há condições.

A maior parte da população ocidental vive debaixo duma camada de anestético, cega e surda perante a realidade. Os que vivem nos Países em desenvolvimento são cada vez mais atraídos pelos chamarizes do consumismo. Os outros, os pobres, simplesmente não contam.

Para mudar esta sociedade é preciso que um número “decente” de pessoas decida conscientemente abraçar o radicalismo, estabelecendo alguns princípios e mantendo-se firme no consequente percurso. Já não é tempo para um só Gandhi: são precisos muitos Gandhi.

Para mudar será precisa a violência e um percurso extra-parlamentar? Não, não necessariamente.
A recente experiência de Syriza, na Grécia, foi um fracasso “planeado” mas deixou algo de positivo, que poucos realçaram: a demonstração de que os cidadãos podem ser “acordados” por um limitado grupo de pessoas e que, juntos, podem desestabilizar o sistema e propor válidas alternativas.

Foi suficiente um partido “radical” com poucos homens, um punhado de ideias simples e a recusa do compromisso.

O Leitor malandro pode pensar: “Mas o partido Syriza foi algo planeado pelos poderes fortes, estava controlado desde o primeiro dia”. Mais uma vez: é a bondade do instrumento que interessa, não como este for aplicado. Pessoalmente duvido muito que Syriza tenha sido preparada pelos poderes fortes: teriam existido outras maneiras, bem mais soft, para obter os mesmos resultados. Muito mais provável é que Syriza tenha utilizado um autêntico radicalismo até um determinado ponto e que depois tenha sido “corrompida” pelo traidor Tripas.

Mas, seja como for, Syriza conseguiu mobilizar a maior parte dos Gregos, aglutina-los em volta dumas ideias e reforça-los com o passar dum curto espaço de tempo (ver o resultado do último referendo, que quase provocava um enfarte ao Tripas). Como conseguiu isso? Apresentando-se como uma força que recusava o compromisso e assim actuando na primeira parte da sua curta história.

Este é o radicalismo do qual precisamos, sem o qual não será possível derrotar o radicalismo do Poder.

Ipse dixit.

Fonte: Paolo Barnard

6 Replies to “Do radicalismo”

  1. Max, excelente texto.
    Se fosses uma rapariga jeitosa pedia-te já em casamento. lol.

    Repito a ultima frase e fico por aquí: ' Este é o radicalismo do qual precisamos, sem o qual não será possível derrotar o radicalismo do Poder.'

    Krowler

  2. A minha versão de radicalismo passa por ir às origens de coisas, fatos, idéias… mas o conceito do autor me parece muito útil para analisar os acontecimentos. Vejas só como a falta de radicalismo de um governante determinou 20 anos de trevas no meu país com consequências dramáticas até hoje sentidas na estupidificação de milhares elevada a enésima potência entre a população da qual faço parte, que se traduz entre nós brasileiros/as em uma porção da classe média e média alta xenófoba, fascistóide e violenta. Naquele final de março de 64 um estadista brasileiro já falecido, Leonel Brizola, avisava enfaticamente ao então presidente da república brasileira, João Goulart, que o terceiro exército estava forte e resoluto na decisão de garantir o presidente na presidência e o país defendido da invasão da quarta frota norte americana na costa sudeste do país, em conluio com parte do exército, parte dos poderosos sediados aqui e parte da alta classe média brasileira. Se preciso fosse se abriria os quartéis sediados no RS, e a população gaúcha teria acesso à armamento militar para defender o país e as reformas democráticas que vinham sendo preparadas (agrária, tributária, educacional…). Mas o presidente deixou o Planalto, e o resto já se sabe: de lá pra cá, o tal derramamento de sangue que Jango queria impedir mas não impediu, o terror, o terrorismo governamental e as trevas. E depois…pura negociação…aquilo que o autor chama de compromissos. Deu no que está dando… Por outro lado, penso que há radicalismo, dentro do conceito do autor, na maioria de nós, mas é um radicalismo seletivo, queres ver!? A maioria de nós somos radicais quando o assunto é consumir e parecer o que não se é. A maioria já vendeu a pouca liberdade que pudesse ter numa conta bancária, afundando-se em dívidas, trabalhando para pagar contas que mais são juros e impostos que contas propriamente e acha que não dá para viver diferente, e vai às últimas consequência neste objetivo. No entanto, essa mesma maioria é incapaz de ser radical em posicionamentos de justiça social, respeito aos outros e autonomia real, ou seja, respeito por si próprio Que pena, não?

    1. Excelente Maria
      Sou grato.

      A sopa. Não é possível plantarmos batatas e colhermos alfaces de cenouras. Andamos em círculos. Algo, séria/mente, precisa ser revisto, compreendido, e correta/mente" corrigido" por cada um, dentro de nós, profunda/mente. Sem o que seremos os eternos burros dos moinhos (deles). Há quem goste…
      Mas, afinal, o que é (o) importante, radical/mente, se inconsciente estamos.
      Radicalmente não podemos deixar a mente enfeitando o depenado pavão para o deleite do viciado egoísmo. É egoísmo demais, quase orgástico. E muitas vezes tal como tal.

      A pausa é o silêncio obrigatório entre a sístole e a diástole. Jamais esqueço Darci Ribeiro.

  3. Acho que seria proveitoso uma pesquisa sobre a origem dos Partidos políticos com representatividade significante e com reais chances de alcançar o poder. São controlados por dissidências de uma mesma classe sócio/econômica que alistam uma maioria de "laranjas" como candidatos figurantes em nominatas para se mostrarem como democratas, e se camuflarem perante o eleitorado, salvo exceções. Na Grécia, os líderes do Partido vitorioso, ao longo do processo, se convenceram da impossibilidade de reverter a realidade e foram, gradativamente, assumindo posições compromissadas com o sistema, assim como Mandela.

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