O Glass-Steagall Act – Parte I

É impossível falar da crise de 2008 (aquela ainda não ultrapassada) sem citar o Glass-Steagall Act.

A Lei Bancária de 1933, conhecida como a Lei Glass-Steagall (em homenagem aos seus patrocinadores, o senador Carter Glass e o deputado Henry B. Steagall) criou a Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC) dos Estados Unidos mas, mais importante ainda, introduziu reformas bancárias algumas das quais foram concebidas para controlar a especulação.

A Lei Glass-Steagall foi a resposta do Congresso dos EUA perante a crise financeira que começou em 1929 e que em 1933 ainda via de joelhos vários bancos americanos. O seu conteúdo pode ser dividido em duas partes, as já citadas:

  1. criação da FDIC
  2. separação entre sistema bancário e bancos de investimento.

A primeira medida tinha como objectivo garantir os depósitos, prevenir as corridas aos balcões e a difusão de pânico entre os clientes. A FDCI, que é uma instituição independente do governo e da Federal Reserve, gere os fundos do orçamento federal e desenvolve duas importantes funções:
garantir um seguro dos depósitos bancários até 250 mil Dólares e vigiar sobre o estado de saúde (solvibilidade) dos bancos que não estão submetidos ao controle da Federal Reserve.

Mas a medida fundamental da Lei Glass-Steagall era a segunda: tratava-se da introdução duma clara separação entre o sistema bancário tradicional e o banco de investimento. Até então, as duas actividades podiam ser executadas pela mesma instituição, não existindo assim uma real diferenciação entre um banco comercial (onde os clientes depositam o dinheiro) e os bancos de investimento (onde os clientes “apostam” o dinheiro, por assim dizer). A Glass-Steagall criou uma parede entre as duas actividades: por qual razão?

A resposta é simples: a crise de 1929 tinha começado também por causa desta promiscuidade.

Crise de 1929: a promiscuidade

Na verdade, estabelecer as definitivas razões da crise de 1929 não é simples: trata-se da crise mais
estudada da História económica e teorias não faltam. É provável que a crise tenha sido o fruto dum conjunto de situações que criaram a “tempestade perfeita”. Mas duas condições sobressaem.

Depois da Primeira Guerra Mundial, os EUA conheceram um período de prosperidade e progresso socio-económico que viu a expansão de vários sectores: automobilístico, metalúrgico, petrolífero, da construção, etc.. Todavia, os salários e os preços ficavam inalterados: isso favorecia os investimentos mas não aumentava o poder de compra dos cidadãos. O desenvolvimento apoiava-se sobretudo nas poupanças e no dinheiro com baixos juros (dinheiro barato em caso de empréstimo). Na verdade, os EUA começavam a sofrer de super-produtividade: demasiados produtos e poucos compradores.

Tanto Henry Ford quanto o economista John Maynard Keynes já vinham há tempos alertando, sem serem ouvidos, que “a aceleração dos ganhos da produtividade […] levaria a uma gigantesca crise de superprodução se não fosse encontrada uma contrapartida numa revolução paralela do lado da demanda” que permitisse a redistribuição dos ganhos: na prática, o que os dois afirmavam é que era preciso redistribuir os rendimentos de forma que estes pudessem traduzir-se num maior poder de compra por parte dos cidadãos.

Obviamente não foram ouvidos. A razão? Simples: demasiados interesses. E aqui encontramos a segunda condição determinante na eclosão da crise de 1929: o sistema bancário, o mesmo tratado em 1933 com o Glass-Steagall Act.

Como afirmado, esta grande capacidade produtiva favorecia os investimentos e não existiam limites
às actividades especulativas. O problema é que estas actividades eram conduzidas tanto pelos operadores da Bolsa quanto pelos bancos, todos os bancos.

A ideia não era aquela de comprar Títulos (as acções) para obter lucros mas sim para aumentar o capital. Dito de outra forma: compravam-se Títulos para revende-los logo a seguir, sem prestar atenção à qualidade dos mesmos Títulos. Mais procura de Títulos levou a Títulos mais caros (é a lei da procura e da oferta), preços desligados da actividade económica real.

Na prática, formou-se aquela que hoje definimos como “bolha”: os preços dos Títulos continuavam a aumentar e já não correspondiam a um aumento da produção e das vendas (estas já nos limites máximos por causa dos salários que não aumentavam).

Ao mesmo tempo, como afirmado, havia grandes interesses envolvidos. Os especuladores, como os bancos, tinham todo o interesse para que os preços dos Títulos continuassem a subir e encorajavam os clientes a adquiri-los, isso também com declarações demasiado optimistas acerca do futuro.

Quando por fim a bolha explodiu (porque este é o destino de todas as bolhas), foram atingidos não apenas todos aqueles que tinham investido na Bolsa (os que detinham Títulos) mas também os clientes comuns, porque os bancos ficaram sem dinheiro (lembramos que também os bancos eram por sua vez investidores): as instituições que deveriam ter guardado o dinheiro depositado tinham, pelo contrário, adquirido acções com as poupanças dos clientes.

A Lei Glass-Steagall, portanto, tinha como objectivo evitar que um problema puramente financeiro afectasse a economia real: e isso foi possível distinguindo entre bancos comerciais (os bancos tradicionais, os de depósito) dos bancos de investimento. Poupanças dum lado, investimentos do outro.

A Lei Glass-Steagall e os bancos

A Lei Glass-Steagall era uma medida de emergência para travar a falência de milhares de bancos, uma medida contida no programa New Deal do Presidente Franklin D. Roosvelt e teve um assinalável efeito estabilizador no sistema bancário americano. Para entender o porque, é preciso entender a diferença entre um banco “clássico” e um banco de investimento.

Os bancos comerciais (os “clássicos”) oferecem serviços de depósito e empréstimos para cidadãos e empresas, fornecendo assim liquidez ao sector produtivo.

Os bancos de investimentos, pelo contrário, são instituições que oferecem assistência na recolha de capitais, intermediação para fusões e aquisição de empresas, intermediários na compra de Títulos e Derivados. Portanto, apesar de serem definidos “bancos”, não são bancos “clássicos”: por exemplo, não podem aceitar depósitos (coisa que o banco “clássico” faz) e estão submetidos a uma regulamentação menos rígida, que permite assumir mais riscos.

O Glass-Steagall Act tencionava evitar que os bancos comerciais pudessem correr riscos ao especular com os depósitos dos clientes. De facto, a nova lei proibia que os bancos comerciais adquirissem Títulos a não ser aqueles de Estado, que são muito mais seguros (se não forem gregos…). Além disso, não podiam entrar em ligação com nenhuma instituição de tipo especulativa; e se um banco de investimento decidia participar na compra-venda de Títulos deixava de poder aceitar depósitos.

O resultado foi uma reencontrada confiança dos clientes no sistema bancário “clássico”, ao qual agora podiam entregar dinheiro com a certeza de que este não teria desaparecido num crash financeiro.

Tudo isso até 1999. Porque naquele ano, o Presidente Bill Clinton (Democrata, note-se) decidiu abolir o Glass-Steagall Act. Por qual razão? E, sobretudo, quais foram as consequências? A mais evidente das consequências foi a crise de 2008. Mas este será o tema da segunda e última parte do artigo.

Ipse dixit.

Relacionado: O Glass-Steagall Act – Parte II

Fontes: na segunda parte do artigo.

One Reply to “O Glass-Steagall Act – Parte I”

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