China: a classe média

Ontem fui jantar num novo local chinês aqui em Almada.

Na avenida principal, um espaço grande, enorme. Dois ecrãs sempre ligados, uma dezena de funcionários todos regularmente fardados, um ar de luxo foleiro (o gosto é o que é…), com o gato dourado que mexe a pata (símbolo de sorte) qual única sobra dum folclore que deixou lugar para a modernidade.

Tudo muito limpo, tudo muito ordenado, quase “luxuoso”. Como as cadeiras, grandes; como as toalhas, dum lindo pano branco; como as paredes, de pedra trabalhada (e eu pensava fosse poliestireno…). Depois há a qualidade dos ingredientes: superior ao costume. E os muitos pormenores.

Este não é um verdadeiro restaurante, é um buffet, algo mais em conta (e o preço reflecte o estatuto). Mas esqueçam os pequenos locais de gestão familiar do costume: aqui tudo é luz, é evidente o esforço para encontrar o gosto europeu. Se tirassem o cavalo branco da entrada (em tamanho natural…) com uma lâmpada na cabeça (sic!) poderia nem parecer um local chinês.

Tranquilos, a ideia não é fazer publicidade mas sim reflectir. Pois este não é o único caso: são cada vez menos as lojas com imensos corredores apertados cheios de tralha de ínfima qualidade. As novas lojas chinesas são grandes, espaçosas, luminosas. A qualidade subiu. As de roupa são as que melhor enganam: os empregados são brasileiros, só quem ficar na caixa é chinês. No exterior e até no interior começa a ser difícil identifica-las como lojas “chinocas”.

Os Chineses aprenderam. Mas, sobretudo, têm meios. Porque esta mudança implica investimentos que antes não eram possíveis. “Antes” era a pequena família que milagrosamente tinha conseguido sair da China e abrir um local pequeno e malcheiroso, cheia de caixas com escrito Made in China. “Agora” são pessoas que investem muito dinheiro para adaptar o estilo, escolhem a mercadoria com mais cuidado, e depois lucram. E lucram mesmo.

Capitalismo

Qual o nome de tudo isso? Capitalismo.
O Capitalismo funciona segundo esquemas bem definidos. E não importa “onde”: o “como” será
sempre o mesmo. Estados Unidos, Europa, América do Sul, Ásia: tanto faz. Há quem consiga iludir-se, há quem pense “desta vez será diferente, este é um Capitalismo diferente, com valores diferentes”. Depois há os factos. E este não iludem.

A China: 1.401.586.000 habitantes, uma moeda artificialmente fraca, uma economia baseada na exportação. Como pano de fundo, um Partido Comunista que escolheu abrir ao “livre mercado” para projectar o País no futuro.

Primeira consequência imediata: o aparecimento duma classe que antes não existia, a classe média.
Segunda consequência imediata: o aparecimento duma tendência conservadora, para que as coisas não mudem. É a tendência da nova classe média.

Onde é que já vimos isso? Ah, pois: na história do Capitalismo. De todos os Capitalismos.

O que podemos observar aqui na Europa, com as novas lojas ou os carros topos de gama, é apenas o pálido reflexo duma mudança que na China começou há alguns anos. Exibicionista, grande em números absolutos, pequena em números relativos, leal ao Partido, conservadora, mas com enervantes reivindicações: esta é  a burguesia chinesa, um amontoado de aparentes contradições que parecem difíceis de ser entendidas.

É sobre esta classe que a liderança de Pequim aposta para garantir a sua permanência no poder e transformar o País. É sobre esta classe que a maioria do Ocidente aposta para recuperar um pouco de fôlego. Não será o caso de tentar observa-la um pouco?

Começou na década dos Noventa, com o imobiliário: foi aí que apareceu a primeira classe média. Após 40 anos de imobilismo à sombra do Livro Vermelho, de repente o governo soltou as rédeas. Os mais espertos cheiraram o ar e entenderam.

Curioso: tinha observado o mesmo na Hungria. Curioso mas nem tanto. Como afirmado: o Capitalismo é sempre igual a si mesmo. A classe média reproduziu-se, multiplicou-se, diversificou-se. Quais as suas características?

Um recente estudo aponta para um ordenado entre 11 mil e 18 mil Dólares por ano, entre 9.700 e 16.000 Euros (33 mil e 54 mil Reais). Uma média de 1.000 Euros por mês. Pouco, sem dúvida: em Italia ou França é o mínimo, no Luxemburgo é menos de que a metade do mínimo. Mas os números não dizem tudo: é sempre a velha história da media.

Quantos são? Muitos e poucos. Utilizando o critério do rendimento acima descrito, a classe média na China e composta por 157 milhões de pessoas. Muitas? Não: poucas. A classe média é inferior a 12% da população total. Afinal, falamos dum País com mais de 1 bilião de indivíduos. Mas atenção: os números não dizem tudo. A verdade é que a China possui o maior grupo de cidadãos de classe média do planeta, ficando atrás só dos Estados Unidos. E dito assim, as coisas mudam.

Em qualquer caso, é uma situação transitória. As previsões otimistas dizem que em 2020 a classe média será composta por cerca de 600 milhões de chineses (na altura serás quase a metade da população), enquanto as previsões pessimistas falam de 350 milhões (um quarto do total).
Seja como for: a maior classe média do planeta.

O Partido

É uma classe média heterogénea, que nasceu em estreita ligação com o Partido Comunista. Isso porque no início da época de Deng Xiaoping foram os quadros do Partido a tirar proveito da sua posição: “Ficar rico é glorioso” dizia Deng piscando o olho aos funcionários políticos. E estes entenderam a mensagem: rapidamente transformaram-se em gestores para construir o boom económico. Hoje um em cada cinco empreendedores é um antigo funcionário do Partido e 40 % de todos os empresários ainda fazem parte do Partido.

Eis algo que distingue a nova classe média chinesa das homologas nascidas na Europa Oriental.
Na Hungria, na Polónia, na Republica Checa foi um “e agora começa a festa” após décadas de economia estatal. Em Pequim o Capitalismo foi uma escolha cultivada e dirigida pelo Partido, até hoje. 

Sem dúvida foi Deng (no poder entre 1978 e 1992) a construir as bases para que a China abraçasse a religião Capitalista, mas foi com Jiang Zemin (presidente entre 1993 e 2003) que a passagem foi institucionalizada com a teoria status – guanxi – distribuição: o status de membro do Partido criava oportunidades, estas criavam guanxi (novos contactos), a seguir era só distribuir os favores. E o ciclo funcionou. Isso significa que o sector público era (e ainda continua a ser) o coração desta classe média: governos centrais e locais, hospitais, instituições acadêmicas, são todas fábricas que criam a burguesia chinesa. E isso explica também a resistência que a classe média chinesa tem perante as ideias de mudanças.

A classe média tem sido a principal beneficiária dos últimos trinta anos de crescimento; tem tudo a perder no caso duma mudança, contrariamente à classe pobre; portanto, é “naturalmente” conservadora.

Onde é que já vimos isso? Ah, pois: em todas as classes médias do planeta, do presente e do passado. Como afirmado: não importa a latitude, o Capitalismo tem regras e estas nunca mudam. Nem na China, nem nos BRICS.

Família, dinheiro & carreira

Os “valores” que expressa a classe média chinesa são o espelho do seu conservadorismo: família, prosperidade, possibilidades de carreira. Ámen.

Assim, a classe média chinesa é muitas vezes contrária aos programas sociais que o próprio governo chinês pretende introduzir para aliviar a desigualdade, que é quase insuportável. A elaboração de políticas é muitas vezes influenciada por um novo activismo que começa a agitar-se acerca de questões ambientais, segurança alimentar, protecção da propriedade privada. Mas não há uma base “revolucionária”, porque o medo do caos é ainda mais forte. E isso explica os condomínios fechados, com seguranças que vigiam o perímetro.

A geração mais velha ainda se lembra dos anos da Revolução Cultural, quando os filhos se rebelavam
aos pais: faz parte da propaganda do Partido. Mas, paradoxalmente, funciona como travão, pois espalha a ideia de que uma revolução pode bem deitar de pernas para o ar tudo quanto obtido até agora.

Assim, os jovens estudam no estrangeiro, voltam para casa sem encontrar um emprego à altura das expectativas (a economia desacelera), chocam com os insustentáveis ​​preços dos imóveis e entram no Partido. Em 2012, mais de um terço dos membros tinham menos de 35 anos de idade. O Partido ainda é “status – guanxi – distribuição”, sinal que o Capitalismo chinês ainda não é totalmente auto-suficiente (e assim é: a China até agora não deu o salto para a produção de alto valor acrescentado). O cartão do Partido não é necessário, todavia pode ajudar. Mas…

Mas se o Capitalismo chinês não alcançou os níveis ocidentais, já sofre dos mesmos males, e não desde hoje. Mais de 70.000 funcionários punidos por causa da corrupção em 2014. E a parte mais pobre da população que espuma raiva por causa dos dois “desempregados” de vinte e poucos anos que ao volante dum Ferrari e dum Lamborghini colidem durante uma corrida ilegal num túnel de Pequim. A classe média se interroga: “Ficar rico é glorioso, o que fizemos de errado?”.

Ipse dixit.

Fontes: China Files, Alice Ekman: The Distinctive Features of China’s Middle Classes (ficheiro Pdf, inglês)

15 Replies to “China: a classe média”

  1. Excelente artigo Max.
    E parabéns pelos 5 anos, é obra.

    "Em qualquer caso, é uma situação transitória. As previsões otimistas dizem que em 2020 a classe média será composta por cerca de 600 milhões de chineses (na altura serás quase a metade da população), enquanto as previsões pessimistas falam de 350 milhões (um quarto do total)."

    Agora pergunto
    Imaginemos entre 450 a 500 milhões, ou mesmo mais, não me surpreende.
    Como é que o planeta vai aguentar com algo ainda bastante superior aos Estados Unidos?
    Seja onde for no mundo e sim também têm direito.
    O planeta é que não aguenta mais esse tal de capitalismo. É impossível .

    Grande abraço
    Nuno

  2. Perfeito. A classe média, sempre vassala de seus dominadores…e a única que poderia revolucionar alguma coisa…portanto, a grande responsável pelas mazelas civilizatórias…

    1. Chaplin não confundir classe média com burguês. Isso só cria confusão. A classe média pelo contrário no "ocidente" tende a desaparecer.

      Nuno

    2. Nuno, burgueses todos aprendemos a ser, sob o conceito ideológico comportamental, independentemente de classe social, pois somos regidos por ele, adeptos ou não.

    3. Chaplin nisso concordo plenamente, mesmo com posses limitadíssimas, tendo a ver o que rodeia com um olho critico é óbvio.
      E sobretudo tentando pensar pela própria cabeça o que é cada vez mais difícil (constantemente bombardeados nos neurónios), ai concordo plenamente principalmente com o tal de : "conceito ideológico comportamental" aprendido desde infância isso é um facto.

      Nuno

    1. O que vinga na prática, é um conluio entre elites sociais e Estados nacionais, que chamamos de capitalismo de Estado, dominante como nunca, pois consolidou os dois maiores poderes, o econômico e o político.

    2. Pois, a China é uma experiência curiosa.
      Aliás, acho ser mais do que uma simples experiência.

      "Digo mesmo, que a evolução do capitalismo encontra-se em tal sistema"
      Tenho a mesma suspeita.

      "…que chamamos de capitalismo de Estado, dominante como nunca, pois consolidou os dois maiores poderes, o econômico e o político"
      É isso.

      A lição da União Soviética foi bem estudada. Foi aquela uma experiência que tinha vários objectivos (o Capitalismo de Estado era apenas um deles) e que funcionou bem (dependendo dos pontos de vista, claro). Agora está amplamente ultrapassada, mas a experiência acumulada está a ser utilizada a China.

      Acho que a estrada já está traçada: o Ocidente "é mau", os EUA são uns "monstros", é precisa uma "alternativa", eis os BRICS que são "bons", eis o "modelo chinês" que "fez milagres", eis o "Capitalismo 2.0" que promete um novo Renascimento.

      O Capitalismo estava prestes a entrar numa profunda crise sistémica, é provável que em 2008 tenha sido acelerada para pode "conduzi-la". A transicção irá demorar ainda alguns anos, provavelmente haverá mais uma crise dos Países ocidentais e uma guerra que redimensionará o papel dos EUA. O centro do mundo deslizará para Oriente e o Capitalismo terá ganho algumas décadas.

      Mas não mais do que isso, porque os seus limites estão muito próximos. Lamento, porque sei que os amigos dos BRICS estão convencidos de ser "a " alternativa. E serão, de facto, a alternativa aos EUA, mas não ao sistema, que continua a ser o mesmo de sempre.

      Aliás, é impressionante como o Capitalismo, quando "bem" direccionado, tenha a capacidade de regenerar-se. Neste aspecto temos que admitir: é sem dúvida o sistema mais camaleóntico até agora implementado.

      Só que nada é eterno.
      E "a História sempre se repete duas vezes: a primeira como tragédia, a segunda como farsa." como dizia Karl Marx.

      Para nós tanto faz: nem damos conta de quando se repete a primeira vez, tanto menos da segunda…

      Abraçoooooo!!!!!

    3. Subscrevo, Max e Chaplin.

      "A transição irá demorar ainda alguns anos, provavelmente haverá mais uma crise dos Países ocidentais e uma guerra que redimensionará o papel dos EUA."

      Resta-nos as suposições… É certo que a guerra têm sido o "reset" aos bugs do capitalismo. Mas para tal "reset" ser bem sucedido é preciso uma guerra mundial. Coisa que a meu ver, ainda será difícil de acontecer no momento. Será uma guerra doméstica ou contra as metástases pseudo-terroristas (ISIS & Companhia) suficiente?

    4. Os BRIC ou até a palavra ou sigla, que mais tarde mudou para BRICSouth Africa de onde veio ou quem inventou não foi a goldman sucks? Teria e tem lógica, pelo menos numa perspectiva económica. I e C enormes recursos humanos. B e R enormes recursos, logo óptimos para dar cada um de sua forma um balão de oxigénio a esse/este sistema, por mais algum tempo.

      Nuno

  3. O Nuno lá em cima já disse, mas chamo também a atenção para isso.
    Falar de Capitalismo ou outros ismos que daí venham é o mesmo de andar com ilusões da realidade!
    Tudo isso seria bonito, se não fosse um simples facto:
    O capitalismo é um enorme MONSTRO que MUITO come e MUITO defeca!
    O planeta já não tem recursos para alimentar/consumir nem aguenta mais a merda que para ele deitamos!
    A imagem que tenho da china, já não é uma "pureza" milenar a nível natural, é apenas este exemplo:
    [img]http://usa.chinadaily.com.cn/epaper/attachement/jpg/site1/20131022/0228eb4c860113d00bf221.jpg [/img]
    E quando se fala em china, fala-se todo o resto do mundo.
    Falar de Capitalismo e seu derivado é estar a tentar manter vivo algo que tem prazo de vida definido, e a solução passa por acabar com o consumismo, a bem ou a mal, não há outra solução.

    1. Max: há que rever esse código de inserir fotos que menciona abaixo dos comentários pois não está a funcionar o [img] [/img]

    2. O Anônimo precisa voltar mais no tempo para perceber que o próprio capitalismo é um derivativo com função aceleradora de sua gênese. A ideologia burguesa. Esta sim, com caráter revolucionário e com sua difusão/expansão de grandes proporções sedimentada por segmentos minoritários mas extremamente organizados e inter-relacionados, onde movimentos políticos, sociais e religiosos, ao longo da história, sucumbiram ao seu poder econômico.

  4. Eu vejo o capitalismo chinês, este 2.0, como um capitalismo com um cavalo à porta com uma lâmpada acesa na cabeça. É um capitalismo foleiro, com os mesmos princípios do capitalismo 1.0. Cumulativo, competitivo, egocêntrico, agressivo, exploratório, devasso.
    É um fenómeno repetitivo. Dinheiro a rodos para alguns e pouco ou nenhum para outros.
    No dia em que a China não tiver pobres, tiro-lhe o chapéu. Até lá continuam válidas as leis universais da fisica.

    Krowler

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