As “profecias” de George Orwell

No mundo da informação alternativa fala-se muitas vezes de 1984, o livro de George Orwell, como dum texto premonitório, uma antecipação daquilo que é a nossa actual sociedade.

George Orwell, pseudónimo de Eric Arthur Blair, foi um escritor e jornalista inglês, cuja obra era marcada por uma intensa oposição ao totalitarismo. A sua influência na cultura contemporânea perdura até os dias de hoje, ao ponto que existe um neologismo, “orwelliano”, utilizado para definir qualquer prática social autoritária ou totalitária.

A obra de Orwell não acaba com 1984: dignos de nota são também  A Quinta dos Animais (A Revolução dos Bichos no Brasil), Home­na­gem à Cata­lu­nha (Lutando na Espanha no Brasil), O Cami­nho para Wigan Pier (A Caminho de Wigan no Brasil), todos títulos que bem vale a pena consultar.

Mas claro está: Nineteen Eighty-Four (denominação original de 1984), escrito no longínquo 1949, foi o livro que entregou Orwell para a posteridade.

Em 1984, o mundo está dividido em três super-Estados totalmente indiferenciados em termos de política e ideológica. A sua função é garantir um contínuo estado de guerra.

Hoje não temos três super-Estados: mas é verdade que há uma única política e uma só ideologia. O Capitalismo é a base de todas as sociedades avançadas, em desenvolvimento ou sub-desenvolvidas. Neste aspecto não há excepções. Até o ISIS, o mais recentes Estado “rebelde” e sede dos fundamentalistas islâmicos, está baseado no financiamento das monarquias do Golfo e nas ajudas capitalistas ocidentais (israel, Reino Unido, EUA).

Não há um “continuo estado de guerra”: não no Ocidente, pelo menos. Mas há a constante tensão derivada da “ameaça terrorista” e o espectro dum conflito de grandes dimensões que paira sobre a nossa sociedade.

Em 1984, a única forma de pensamento permitido é o bipensamento, baseado na necessidade de que a mente de todos os cidadãos se ajuste à realidade definida pela cultura dominante e apague os dados divergentes e qualquer forma de objeção.

A nossa sociedade foi além disso. Hoje a realidade é criada pelos órgãos de comunicação, pelo que não há a necessidade de “ajustar” os pensamentos dos cidadãos: estes são moldados diariamente, com notícias oportunamente seleccionadas.

Mais interessante ainda é a utilização dos pensamentos divergentes: estes não apenas não são combatidos mas são explorados (internet é um bom exemplo disso) para manter um clima de incerteza no meio do qual é reforçado o papel das autoridades oficiais.

Em 1984, o povo se expressa através da Novilíngua, uma língua que proibiu as palavras ‘desconfortáveis’ e que retirou todos os termos de qualquer múltiplo sentido.

Ainda não chegámos aos níveis de 1984, todavia não pode ser negada a utilização de termos cujo sentido foi amplamente deformado: “Democracia” ou “Liberdade” são óptimos exemplos disso. E nem podemos esquecer os exércitos invasores que “libertam” ou “mantêm a paz”…

Em 1984, cada quarto está equipado com um ecrã de televisão que transmite 24 horas por dia, e os prolet (os cidadãos comuns) quase nunca desligam o dispositivo.

Aqui qualquer comentário é supérfluo. Temos todavia que realçar a capacidade de antevisão de Orwell: em 1949, os aparelhos televisivos nos Estados Unidos ainda eram poucos milhares.

Em 1984, os ecrãs da televisão transmitem implacavelmente frases como: os prolet e os animais estão livres. A guerra é a paz. A liberdade é escravidão. A ignorância é força.

O mundo de 1984 é uma ficção: nenhuma sociedade poderia reger-se com bases tão claramente provocatórias. O que conta é entender o sentido que Orwell quis transmitir: a propagação de ideias que chocam com a realidade, a deformação da mesma e a sua silenciosa aceitação por parte das massas.

Em 1984, todos os locais (públicos e privados) estão repletos de transmissores que monitorizam toda a actividade humana, para evitar qualquer crime.

Este ponto é muito interessante pois só nos últimos anos temos assistido à proliferação das câmaras de vigilância “para a nossa protecção”. Na altura em que Orwell viveu não era possível imaginar algo como internet: mas o controle dos cidadãos hoje é feito também com este meio (Programa Prism, NSA, Edward Snowden, etc.).

Em 1984, bandos de helicópteros monitorizam em silêncio as massas para manter alta a percepção duma estreita e infalível vigilância.

Nada disso. A vigilância é efectuada de forma oculta para que não haja dúvida acerca do grau de “liberdade”. Satélites, programas informáticos, recolha de dados e não helicópteros.

Em 1984 jogos e loterias são organizados de forma que não ganhe (quase) ninguém. A sua função real é a cobrança de receitas para o Estado e incutir nas massas um sentimento de esperança.

Também neste caso: palavras para quê?

Em 1984, os prolet são constantemente sujeitos a influenciados por estatísticas, pesquisas, falsas previsões económicas apresentadas como verdadeiras, mas, na verdade, servem para incutir nos indivíduos a percepção dum apoio generalizado ao actual sistema.

Alguém deseja comentar?

Em 1984, a história é transmitida através da reescrita dos acontecimentos por parte do Ministério da Verdade, a fim de convencer as massas a aceitar que o status quo é derivado duma série de eventos históricos lógicos e consequentes.

Não há nenhum Ministério da Verdade. Mas a história é “interpretada” consoante as necessidades. Esta não é nenhuma novidade, deformar o passado sempre uma prática utilizada por qualquer regime. Na nossa sociedade, um bom exemplo é dado pela história do Estado de israel.

Em 1984 não há períodos de paz. Quando a guerra termina, imediatamente começa um novo conflicto para manter o mecanismo militar.

Com a queda do Muro de Berlim, o mundo sonhou o fim duma época de tensões e a chegada duma era de paz e de esperança. Pura ilusão: desde então as guerras e as tensões não desapareceram, exactamente como acontecia antes. A razão é simples: a guerra é precisa. Não é apenas um meio para conquistar territórios ou derrotar inimigos: é também a base da poderosa industria dos armamentos e uma óptima solução para manter elevada a tensão e canalizar as energias da sociedade na direcção pretendida.

Em última análise, parece que George Orwell tinha muito claras todas as principais características da mentalidade oligárquica.

Podemos falar de capacidades de antever o futuro? Não. Uma atenta análise dos sistemas totalitários, novos  e antigos, com a utilização das mais recentes aplicações tecnológicas. Nisso Orwell teve a capacidade de modernizar as tendências opressivas das oligarquias para projecta-las no presente e no futuro também. Orwell não proporcionou nenhuma “profecia”: estigmatizou a maneira de actuar das elites dominantes e forneceu os instrumentos para identifica-las.

O que deve preocupar (e não pouco) é o facto de muitos dos “sintomas” apresentados por Orwell poderem ser encontrados na nossa sociedade.

Não estamos interessados no bem-estar alheio; só estamos interessados no poder. Nem na riqueza, nem no luxo, nem em longa vida de prazeres: apenas no poder, poder puro. Sabemos que ninguém jamais toma o poder com a intenção de largá-lo. O poder não é um meio, é um fim em si. Não se estabelece uma ditadura com o fim de salvaguardar uma revolução; faz-se a revolução para estabelecer a ditadura. O objetivo da perseguição é a perseguição. O objetivo da tortura é a tortura. O objetivo do poder é o poder.

Não nos contentamos com a obediência negativa, nem mesmo com a mais abjeta submissão. Quando finalmente te renderes a nós, deverá ser por tua livre e espontânea vontade. Não destruimos o hereje porque resiste; enquanto resiste, nunca o destruímos. Convertemo-lo, capturamos-lhe a mente, damos lhe nova forma. Nele queimamos todo o mal e toda a alucinação; trazemo-lo para o nosso lado, não em aparência, mas genuinamente, de corpo e alma. Tornamo-lo um dos nossos antes de matá-lo.

Ipse dixit.

George Orwell: 1984 (ficheiro Pdf, português)
George Orwell: A Quinta dos Animais (ficheiro Pdf, português)

6 Replies to “As “profecias” de George Orwell”

  1. Uma única ressalva, quando o blogueiro Max diz: "Não há um "continuo estado de guerra": não no Ocidente, pelo menos. Mas há a constante tensão derivada da "ameaça terrorista" e o espectro dum conflito de grandes dimensões que paira sobre a nossa sociedade."
    Mas como não? A grande maioria das sociedades vive em constante conflito civil, patrocinado por valores que acirram animosidades. Morre mais gente pela violência do cotidiano da considerada normalidade social do que em guerras pontuais. O indivíduo moderno enxerga o outro como um potencial adversário, concorrente ou mesmo um inimigo, e, dissimuladamente ou não, tentará subjugá-lo. Ou seja, não se trata de uma busca pura e simples pelo poder mas sim a busca pela dominação do outro, que poderá ser exercida enquanto detentor do poder.

  2. Pois… e se contassemos ao Orwell que num determinado ano andariamos todos com dispositivos que nos escutam, que nos filmam, que nos fotografam, sabem a nossa localização exacta, por onde passamos e a que horas o fazemos, que sabem os nossos gostos ficaria perplexo. E se lhe contassemos que não são impostos mas que somos nos (a maioria) que os compramos alegremente com o nosso dinheiro, chamarnos-ia de parvos. Refiro-me aos smartphones e tablets.
    O google now , é uma coisa assustadora.

    EXP001

  3. Uma correção e uma informação:

    Os "telecrãs" de 1984 permitiam não só "lavar a mente" a quem assistia, através de transmissão contínua de informação condicionante, mas os olhos do espetador, mas também captar imagens, ou seja fazer transmissão inversa, de dentro das casas para quem observava às escondidas. Havia também telecrãs em praças públicas, etc.. Essa tecnologia já existe hoje. São as Smart TVs. E toda a gente gosta delas.

    Orwell e Aldous Huxley, autor de "admirável mundo novo"/"brave new world" eram respetivamente aluno e professor na sociedade fabiana/fabian society. O seu brasão é literalmente o de um lobo em pele de cordeiro. Ambos sabiam do que falavam e do que escreviam. Aparentemente, Orwell quis denunciar o totalitarismo e Huxley promovê-lo. Até que ponto isto é verdade, não sei.

  4. Antigamente os regimes totalitários tinham bufos para denunciar todos aqueles que eram contra o regime. Agora temos algo muito pior, o Google Now, como referiu o EXP001, é um exemplo disso. Temos o nosso bufo pessoal.
    Imagine-se como será daqui a alguns anos.

    Krowler

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