Onde é que o Estado encontra o dinheiro?

Pergunta o Leitor Gito:

Há uma coisa que eu não percebo em tudo isto. Se é assim, porque é que
os estados se financiam no setor privado, para fazer escolas, hospitais e
pagar salários e tudo o resto?

Boa pergunta.
Em verdade, em verdade vos digo: sigam-me.

A resposta do Ministro

Uma vez acabados os anos das “vacas gordas” da década dos ’80, a Italia teve que encarar a questão da Dívida Pública.

Em 1994, muitos especialistas achavam
inevitável que o País entrasse em bancarrota, porque a Dívida tinha
alcançado 120% do Produto Interno Bruto (PIB) e as taxas de juros eram
dum espantoso 12%. Os juros sobre a dívida absorviam 22% do orçamento do
Estado, enquanto a média de outros Países era de 12%.

Na altura, o economista Warren Mosler chefiava um fundo de investimento especializado em dívida e achava que o mercado estivesse errado acerca da Itália. Então pegou num avião e foi até Roma para falar com o então Ministro do Tesouro. Este, apesar do apelido (Spaventa, que significa “assusta”), estava na boa: sabia que o País não teria entrado em bancarrota.

Mosler perguntou-lhe: “Por qual razão emitem Títulos de Estado, para ter dinheiro para gastar?”.
A pergunta aparentemente era retórica, pois parecia óbvio emitir Títulos: apesar da Dívida Pública já ter chegado a 120%, o Estado tinha que continuar a funcionar. Mas nada óbvia foi a resposta do Ministro Spaventa: “Para evitar que as taxas interbancárias caiam para zero”.

Em outras palavras, o que Spaventa disse foi que o Estado não tinha necessidade de emitir Títulos para ter dinheiro: a Italia teria pago as suas dívidas, com ou sem a emissão de Títulos (e, portanto, com ou sem o aumento da Dívida Pública). Mosler entendeu, comprou Títulos italianos e ganhou uns trocos (por assim dizer): a Italia nunca entrou de bancarrota.

Ok, agora parem tudo: como é possível isso?
Como é que Portugal, por exemplo, entra em bancarrota por causa duma dívida de pouco superior a 80% do PIB enquanto a Italia, com 120% e 12% de taxa de juros, evitou o problema?

A resposta é simples: na altura, a Italia não tinha ainda adoptado o Euro e era dona da sua própria moeda, a Lira. Para pagar a Dívida, os juros e o funcionamento do Estado (escolas, hospitais, serviços, etc.), em Roma era suficiente imprimir notas. Ponto final.

Num Estado “normal”, os Títulos de Estado não servem para fazer funcionar o País. E pasmem-se: nem as taxas e os impostos! Um Estado que pode emitir dinheiro (isso é, imprimi-lo) não precisa de emitir Títulos, obrigações, nem de colectar taxas e impostos.

Os Títulos de Estado, como vimos, são emitidos com outras finalidades.
E as taxas?

A resposta da Fed

Numa reportagem da série 60 minutes (aqui a versão legendada em italiano), um jornalista entrevistou o então chefe da Federal Reserve, Ben Bernanke, acerca do Quantitative Easing, rios de dinheiro que o banco central dos Estados Unidos emitiu repetidamente no mercado.

Numa certa altura, o jornalista pergunta: “Mas aquele dinheiro são as nossas taxas?”.
A resposta é iluminante:

Não, não são taxas. Nós acreditamos o dinheiro na conta que um banco privado tem connosco [na Fed, ndt], como se fosse uma conta corrente normal que um cidadão comum tem no seu banco, e fazemos isso com um computador.

O que significa isso? Muito simples: um banco central (isso é, o banco dum Estado) não precisa de taxas e impostos para ter dinheiro. É o mesmo banco que cria o dinheiro e hoje em dia nem há necessidade de imprimi-lo: é tudo feito com o computador (lembram-se dos tais “códigos abstractos“? Isso mesmo).

Títulos e Taxas para quê?

Mas desculpem: se um Estado tem a possibilidade de criar moeda, alguém pode explicar-me por qual razão deveria financiar-se com a emissão de Títulos, que custam (os juros!)? Qual a lógica? Os Títulos de Estado têm outras funções.

E as taxas? Mas acham normal manter uma caravana de todo o tamanho (funcionários, escritórios…e não esquecemos os recursos, os tribunais, etc.) quando seria muito mais simples imprimir dinheiro? 
Mas então temos uma pergunta: por qual razão existem as taxas?

Bom, aqui a resposta é curiosa: em economia as taxas existem para serem baixadas. Cada vez que um Estado taxa, retira dinheiro dos bolsos dos cidadãos, isso é, limita a capacidade de compra dele.

Mas limitando esta capacidade de compra, limita também o crescimento económico (mais compras = mais vendas = mais produção). Um Estado com taxas elevadas é um Estado que não está bem (ou que está demasiado bem, mas este é outro discurso e são casos raros). Um Estado que se financia de forma preponderante com as taxas é um Estado com graves problemas.

É por isso que há Países onde os impostos (nota: neste artigo utilizo os termos taxas e impostos como se fossem sinónimos, mas este é um erro pois não são) sobre os rendimentos são muito baixos.
Excluindo casos-limites como as Bermudas (que não têm taxação para atrair os capitais estrangeiros), há o caso do Wyoming, onde não existem as taxas sobre os rendimentos mas apenas os impostos indirectos. O Wyoming não consegue pagar os salários? Não consegue fornecer os serviços? Não tem escolas nem hospitais? Não parece.

Nem podemos esquecer outros Países onde a nível máximo dos impostos sobre os rendimentos individuais são particularmente baixos: a Rússia (13%) ou a Suíça (13.2%) por exemplo.

Vice-versa, vamos ver quais os Países onde maior é a pressão fiscal (dados do Interntional Busines Times de Outubro de 2014):

  1. Aruba (58,95 %)
  2. Suécia (57 %)
  3. Dinamarca (55,56 %)
  4. Holanda (52,1 %)
  5. Espanha (52 %)
  6. Finlândia (51,25 %)
  7. Japão (50,84 %)
  8. Bélgica (50,3 %)
  9. Áustria, Eslovénia, israel (50 %)
  10. Irlanda e Portugal (48 %)

Destes 13 Países, 8 fazem parte da Zona Euro, outro (a Dinamarca) tem a própria moeda ligada ao acordo SME (Sistema Monetário Europeu). A Suécia é um caso particular, fora do Euro mas com taxas elevadas por uma questão de filosofia. O mais taxado, Aruba, é um País de mortos de fome. Se acham um acaso…

As taxas não servem para financiar as despesas dum País, servem para três razões:

  1. Impor aos cidadãos o uso da moeda do Estado. Este, de facto, é o único caminho: não há outra razão pela qual as pessoas deveriam aceitar a
    moeda do Estado, se não fossem os impostos. Cada um de nós poderia,
    teoricamente, imprimir a sua própria moeda. Mas qual a utilidade de para pagar os impostos só pode ser utilizada a moeda oficial do Estado?
  2. Limitar a inflação. A equação é: muito dinheiro em circulação, poucos produtos = Inflação. Quando isso acontecer, o imposto do Estado recupera parte do dinheiro em circulação e consegue conter a inflação.
  3. Encorajar ou desencorajar determinados comportamentos. taxar álcool, tabaco ou poluição; de-taxar instituições de caridade, fontes de energia alternativas, etc.

E nada mais.
Mas aqui surgem duas terríveis dúvidas:

  1. Então tudo aquilo em que nós acreditamos é falso!
  2. Taxas e Títulos não servem para financiar o Estado!

Respostas:

  1. Sim, é falso.
  2. Depende.

“Depende”? Isso mesmo: depende.

 A anomalia

Em condições normais, um País não precisa de taxas e Títulos para financiar a despesa do Estado.
Mas em condições anormais as coisas mudam. E pegamos numa destas condições anormais: Portugal.

Portugal faz parte da Zona Euro e, como tal, perdeu a soberania monetária. Isso é: já não pode imprimir o seu próprio dinheiro (só as moedas, os trocos). Então tudo quanto foi dito até aqui não vale.

Se o Estado não pode criar dinheiro, tem que procurar outras formas de financiamento. Quais? Simples: Taxas e Títulos. É esta a resposta perante a pergunta de Gito e, imagino, de outros Leitores também.

Portugal e todos os outros Países da alegre Zona Euro não podem criar o dinheiro. Podem financiar-se só com a emissão de Títulos de Estado (isso é, recorrer ao financiamento dos privados) e com as taxas. Mas atenção: Portugal não pode emitir Títulos como se chovesse. Em primeiro lugar porque, como vimos, é uma forma de financiamento que custa (os juros!), depois porque cada Título emitido aumenta a Dívida Pública; e nenhum País da Zona Euro pode ultrapassar um determinado rácio entre Dívida Pública e PIB.

Eis, portanto, que as únicas outras estradas são o emagrecimento do Estado (privatizações, despedimentos, cortes nos salários, nas reformas, nos serviços, etc.) e o aumento da pressão fiscal (as taxas).

Mas o que significa menos salários, menos reformas, menos serviços e mais taxas? O que vimos antes: limitar o crescimento da economia. Se eu tenho 100 Euros no bolso e sei que 50 são para as taxas, não vou gastar todos os 100 Euros, vou gastar no máximo a metade. Mas isso significa que a loja onde eu vou comprar irá vender só a metade. E o seu fornecedor irá produzir só a metade.

Pior ainda: se o fornecedor for obrigado a reduzir a produção, logo vai reduzir o pessoal também. O que significa mais desemprego. Mas isso significa também que o Estado terá mais desempregados e famílias carenciadas para ajudar; então o Estado precisa de mais dinheiro ainda.

Isso é exactamente o que acontece na alegre Zona Euro, o dogma da austeridade. Um círculo vicioso do qual seria possível sair de forma simples e rápida: voltando a imprimir dinheiro. Porque em condições normais, é assim e só aí que um Estado se financia.

Ipse dixit.

8 Replies to “Onde é que o Estado encontra o dinheiro?”

  1. Então Max, se eu percebi correctamente a tua explicação, caso a Grécia resolva sair da UE e abandonar o euro, pode sair da bancarrota. Visto que voltam a ter a sua própria moeda e o poder de a imprimir quando muito bem lhes apetecer. E assim, um dia, pagar a dívida que devem à UE. Certo?

    1. Sair do Euro significa, de facto, voltar à moeda antiga (ou moeda nova, depende da escolha, mas tanto faz, mudaria só o nome). Por exemplo, imaginemos que a Grécia decida utilizar a Dracma.

      A nova Dracma, face o Euro, perderia logo valor, algo que podemos calcular entre 20 e 30%. Isso é mau? É bom e mau.

      É bom porque os produtos gregos estariam favorecidos no caso das exportações: custariam, no mínimo, entre 20 e 30% menos dos correspondentes vendidos em Euro. Portanto: exportações em alta.

      Dado que tudo na Grécia seria avaliado em Dracma, também a Dívida Publica grega ficaria reduzida entre 20% e 30%. Coisa que, dito entre nós, os investidores (leia-se bancos) não gostam.

      A Grécia poderia começar a imprimir Dracmas e pagar a Dívida. Sim, sem dúvida. Todavia, não poderia imprimir sem limites, pois neste caso haveria o perigo da inflação. Se somarmos uma perda de 20 ou 30% mais uma inflação significativa, teremos uma Dracma que não vale nada, com outros tipos de problemas.

      Mas o governo não seria obrigado a 1. aumentar as taxas 2. emitir nova Dívida só para pagar a Dívida existente e os relativos juros.

      Do lado "mau": tudo perderia entre 20 – 30% do valor (face o Euro), incluídos os ordenados. Este é o problema menor, dado que também os produtos gregos (comida, roupa, etc.) custariam menos.

      Os problemas seriam:
      1. no caso dos Gregos viajarem para o estrangeiro pois tudo estaria bem mais caro: mas, dada a situação da Grécia, acho ser este o último dos problemas.
      2. os produtos importados também custariam mais. É este o único e verdadeiro problema de voltar à moeda antiga. O petróleo, por exemplo, teria o seu preço mais elevado (podemos pensar sempre num 20-30%, tanto para simplificar) ou a energia também (não sei quanta energia importe a Grécia mas desconfio não ser pouca em percentagem).

      Isso por sua vez tem um lado positivo: obrigaria os Gregos a apostar mais na produção local. O que significa: mais lugares de trabalho. E mais exportação.

      Doutro lado, se a Grécia tiver intenção de sair do Euro, esta é a janela temporal melhor: com um preço do petróleo tão em baixo, o fornecimento energético estaria sim mais caro, mas não de maneira despropositada.

      Mas duvido muito que isso aconteça: o líder grego já disse que uma Zona Euro sem Grécia não faz sentido, pois seria uma Zona Euro amputada. Até parece que faz um favor a ficar aqui…

      Abraçoooo!

    2. Pois a saída ia ter o seu lado e o seu lado mau. Mas, não querendo ser má pessoa, seria interessante ver o que podia acontecer caso a Grécia resolve-se sair. Não só em efeitos económicos na Grécia e na Europa, mas também na sociedade grega. Será que as pessoas iam começar a agir em comunidade, e não a pensar apenas no próprio umbigo? Será que iam começar a descobrir por elas próprias novas fontes de energia? Será que iriam reformar o ensino? Tanto será… Acho melhor ir dormir. Já estou a sonhar demais.
      Um abraço Max e obrigado pelo esclarecimento 😉

  2. Obrigado por ter trazido alguma luz sobre este assunto. Retive a parte em que os governos emitem taxas para evitar a emissão de outras moedas por parte dos cidadãos. Serão as moedas locais uma alternativa viável ao atual sistema financeiro?

    1. Ora essa.

      Acerca das moedas locais: sim, podem ser uma alternativa.

      Há muitos anos, saiu uma lei estranha em Italia que permitia aos bancos não apenas emitir mas também imprimir as suas notas. Tinha sido um erro na legislação, como é claro, mas os bancos aproveitaram logo e cedo o País estava cheio de notas novas, de todas as cores possíveis.

      Eu era pequeno na altura, mas lembro que nunca vi as carteiras tão coloridas: cada banco emitia as suas notas, com desenhos e cores diferentes. As notas tinham uma paridade com a Liras de 1:1, ou seja, uma nota de 100 Lire dum banco qualquer valia como 100 Lire do Banco de Italia.

      Este foi um exemplo claríssimo (aliás, mais claro é impossível) de como os bancos criem dinheiro a partir do nada.

      A coisa não durou muito, talvez um ano se lembro bem, depois o Estado entendeu quanto tinha perdido com este erro: todos os direitos da senhoragem, por exemplo, ficavam para os bancos privados. Mas é um exemplo de como uma moeda diferente daquela do Estado possa funcionar.

      Mas uma moeda realmente alternativa? Há.
      Aconselho ler:
      – A Moeda Social (http://informacaoincorrecta.blogspot.pt/2013/01/a-moeda-social.html) que trata duma experiência histórica
      – As alternativas: Scec, Danee, Marrunicum (http://informacaoincorrecta.blogspot.pt/2013/01/as-alternativas-scec-danee-marrunicum.html) que fala de três moedas alternativas em função na Italia.

      Abraço!!!

    1. Muito, muito obrigado!

      Vou digerir tudo com calma e a seguir vou publicar algo. Tenho visto muitos esquemas, gráficos, etc., mas é a primeira vez que tenho a oportunidade de ler um estudo universitário que possa contar com a colaboração de instituições bancárias.

      Merece sem dúvida uma síntese.

      Obrigado outra vez!

      Abraçooooooo!!!!!

Obrigado por participar na discussão!

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