O que é o dinheiro: resumo – Parte IV

Então: vimos que o dinheiro não existe como um valor, é um código abstracto que transmite o valor real, vimos que apenas a produção de bens e serviços são reais.

Mas é preciso salientar uma coisa sobre esses “códigos abstractos” que chamamos “dinheiro”: há uma enorme diferença se esses códigos forem emitidos pelo sector privado (os bancos) ou pelo sector público (o Estado).

Lembramos: os bancos emitem dinheiro com os empréstimos, as hipotecas, criando dinheiro do nada, o Estado cria dinheiro com a Despesa Pública, que sempre “dinheiro do nada” é. Mas qual esta enorme diferença?

Os códigos abstractos emitidos pelos bancos dão grandes voltas depois regressam para os bancos e anulam-se, ok? Tudo verdadeiro mas… mas sobra algo: os juros.

Juros?

Na primeira parte vimos o caso do João, que tenciona adquirir uma casa e obtém um empréstimo do banco. João afinal recebeu o empréstimo e agora tem que trabalhar 30 anos para “comprar”, tijolo após tijolo, a casa toda (este é o verdadeiro significado dum empréstimo). Como João compra os tijolos todos, com portas e janelas também? Devolvendo ao banco o dinheiro (o tal código abstracto).

Mas isso não é suficiente: João, além de devolver o dinheiro (o código), deve também acrescentar algumas horas extra para pagar os juros. E não são poucos juros. Tudo bem, não é uma tragédia: com o empréstimo João tem a vantagem de poder começar a morar na nova casa desde já, sem esperar de ter adquirido na realidade todos os tijolos, as portas, as janelas, etc.

O problema começa na altura em que João começa a depender dos bancos por causa de várias despesas: por exemplo um carro novo também, a educação dos filhos, o lar dos pais, a roupa da esposa… neste caso os juros crescem e a horas extras destinadas ao pagamento só dos juros tornam-se muitas, mas muitas mesmo. Na prática, João se torna uma espécie de escravo do banco.

E em relação ao dinheiro (sempre os tais códigos abstractos) criado pelo Estado monopolista? Aqui o discurso é algo diferente. Tal como acontece com os bancos privados, estes códigos dão grandes voltas para depois regressar ao Banco Central (que é o banco do Estado) e anular-se. E anulam-se, mas sem deixar juros para pagar atrás.

É verdade, João trabalha para obter os códigos abstractos (o dinheiro) do Estado, mas nunca tem que pagar os juros. E isso é muito, muuuito melhor. João é um funcionário público, trabalha para receber o dinheiro do Estado, no final do mês os tais códigos abstractos são-lhe acreditados na conta bancária, mas sem juros negativos. João pode pegar naquele dinheiro, comprar uma bicicleta pagando só o valor da bicicleta, sem ter que trabalhar mais horas para os juros também.
E não é tudo.

Com a Despesa Pública, o Estado emite códigos abstractos com os quais podemos usufruir de muitas coisas bonitas: escolas, hospitais, serviços, infra-estruturas….tudo com o dinheiro criado pelo Estados, tudo sem juros. E João não tem que trabalhar mais para ter todas aquelas coisas.

Impostos? Onde?

Pensará o Leitor: “Isso é falso! Todas aquelas coisas são pagas com os impostos, nós temos que
trabalhar mais horas para poder pagar os impostos!”.

Dito entre nós: esqueçam isso, esqueçam a ideia de que os impostos sirvam para pagar escolas, hospitais, serviços, etc.

Esta é uma espécie de lenda metropolitana que circula há muito e que ninguém tem interesse em apagar, mas a verdade é que o Estado antes tem que gastar (e criar os hospitais, as escolas, os serviços…) e só depois taxa os cidadãos.

O Estado taxa por outras razões, que são muitas e não caberiam aqui, mas confiem: todas aquelas coisas bonitas não são pagas pelos nossos impostos, podemos encontra-las já prontas sem ter gasto um cêntimos.

Então, a diferença é fundamental: os códigos abstractos dos bancos (o dinheiro criado pelo sector privado) são activos gravados pelos juros, enquanto os códigos abstractos que o Estado fornece são activos líquidos, sem qualquer fardo. Assim fica muito mais simples entender que é sempre melhor utilizar a despesa do Estado para todas as nossas necessidades, e depois, só depois e como último recurso, pedir a ajuda dos bancos privados.

Eis porque uma economia baseada no interesse público (de todos) põe a despesa do Estado no centro de tudo. Eis porque uma economia baseada no interesse privado (de poucos) apresenta a Despesa (e a Dívida) pública como assustadora, algo que deve ser evitado.

Deficit e Dívida: rolling over

A propósito, o Leitor poderia pensar nesta altura: “Hey Max, mas se fosse assim tão simples, então o Estado poderia gastar até o infinito e tornar todos ricos! Mas não pode, todos sabem isso, porque a tal Dívida … “.

Não, não é assim, não é tão simples. Não é desta forma que funcionam estes códigos abstractos/dinheiro emitidos pelo Estado monopolista. Querem saber como funcionam? Ok, vamos ver isso.

O Estado, quando realmente entende como funcionam os sistemas monetários, emite os códigos abstractos/dinheiro: isso é, num computador do Ministério do Tesouro acrescenta dígitos, ok? Muito bem. Estes dígitos (que representam o dinheiro emitido) são chamados de Deficit, se forem dum único ano em que o Estado gastou mais do que arrecadou em impostos, ou Dívida (se forem de todos os anos de Deficit juntos).

Agora, qual o problema em ter um computador com dígitos que sobem sempre?

Caso nº 1:
Os Estados Unidos, que são o País mais rico de todos (ainda por pouco), acumulam Deficit há 135 anos sem parar. E isso não impediu-lhes de tornar-se a primeira potência mundial.

Caso nº 2:
Portugal entrou oficialmente em crise por causa da Dívida Pública na casa de 80% e picos. Agora tem 120% e picos e dizem estar bem melhor (dizem…).

Caso nº 3:
A Italia tem uma Dívida Pública que cresce ininterruptamente desde o ano 1963 (e tem Deficit desde o primeiro ano do Reino), mas isso não lhe impediu de tornar-se a 7ª economia do planeta.

Querem outros casos? Falamos do Japão? O problema da emissão de códigos abstractos/dinheiro por parte do Estado simplesmente não existe: em teoria o Estado poderia criar-los ao infinito e pagar todos os salários, pensões, escolas, hospitais, instalações, serviços, etc., porque o Deficit e a Dívida nunca são um problema. Nunca.

Por exemplo: se o Estado cria dinheiro com a emissão de Títulos de Estado, por exemplo para encontrar 100 Escudos, quando chegar a altura de pagar os juros, simplesmente emite outros Títulos para 110 Escudos. Assim tem o dinheiro e paga os credores. Ponto final. Isso em Economia tem o nome de rolling over debt e não é novidade nenhuma: funciona assim há séculos.

A Dívida Pública desta forma aumenta? Claro que sim, mas não esquecemos um pormenor: não falamos de barras de ouro ou de toneladas de petróleo, ou seja de bens reais; falamos apenas de códigos abstractos que se acumulam em pequenas quantidades de cada vez num computador do Ministério do Tesouro. E quem se importa dos dígitos que crescem se estes produzirem bens e serviços reais (escolas, hospitais…) para todos os cidadãos?

(nota: este discurso todo não funciona no caso do Euro, moeda genial que tantas felicidades está a dar aos Europeus)

Felizes, mergulhados na bendita ignorância

Então, porque o Estado não cria dinheiro em baldes e a seguir atira tudo para nós, que ficamos ricos
sem esforço? Por varias razões.

Em primeiro lugar, porque não é esta a finalidade dum Estado.

Depois por questões práticas, como o controle da inflação (que, todavia, é muito sobrestimada e não faltam exemplos recentes neste sentido, ver Quantitative Easing e falta de inflação nos Estados Unidos), para manter o valor da moeda num certo patamar, e por outras razões ainda que não vamos tratar agora por questões de espaço (entre estas “outras razões” há uma muito simples: o “sistema” deve continuar a funcionar tal como funcionou até hoje).  

Mas é assim que funciona o dinheiro. Não é complicado. Pode parecer, sobretudo porque há o interesse em manter um certo “mistério” que afasta os mais curiosos.

Ninguém explica que o dinheiro não é um valor; ninguém explica que o dinheiro não passa dum código; ninguém explica que este código é hoje criado de forma rápida, com um simples computador; ninguém explica que os bancos criam (e muito!) dinheiro; ninguém explica que existe uma diferença abismal entre o dinheiro criado pelos privados e aquele do Estado.

Se ninguém explica, ninguém percebe.
E podemos continuar na nossa bendita ignorância.

Ipse dixit.

Relacionados:
Parte I
Parte II
Parte III

Fonte: este artigo acerca do dinheiro representa a síntese de quase 5 anos de blog acerca do assunto e tem como fonte primária uma série de artigos do jornalista Paolo Barnard (que agradeço). O original faz parte duma série de intervenções acerca da Mosler Economics (de Warren Mosler, economista) e pode ser encontrado neste link: Vi spiego il denaro.

6 Replies to “O que é o dinheiro: resumo – Parte IV”

  1. Excelente resumo! Eu resumo um pouco mais, o dinheiro é apenas uma das armas de controle.

  2. Há uma coisa que eu não percebo em tudo isto. Se é assim, porque é que os estados se financiam no setor privado, para fazer escolas, hospitais e pagar salários e tudo o resto?

  3. Sugestão. Tentar mostrar a origem da dependência econômica/financeira dos atuais Estados Nacionais, desde o período colonialista, passando pelas pseudos independências, onde governanças continuaram e continuam sendo escolhidas pelos mesmos grupos dominantes. Aí está a raiz da questão. Não há país livre, começando pelo próprio Estados Unidos. A única diferença resume-se entre países explorados e países exploradores, mas ambos reféns do mesmo poder.

    1. Uhi! Este sim que é um trabalho…será preciso ir muito atrás no tempo.
      Mas é uma óptima sugestão.
      Vou tratar disso, o assunto é bem interessante, fica a promessa também.
      E obrigado 🙂

      Abraço!!!

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