Liberdade de expressão

Para salvar a Democracia não podemos perder a Democracia.

Tomamos como verdadeira a versão oficial e olhamos para Paris: violência, medo, dor. Mas todos devem ter o direito de dizer tudo, mesmo que isso ofenda milhões de pessoas que vivem ao lado. Qual o sentido?

Charlie Hebdo há anos publica imagens que ofendem toda a comunidade islâmica, mas não apenas aquela: a cristã e a hebraica também, embora em medida bem menor. Chama-se isso “direito de exprimir as ideias”, confluído nos últimos dias na “liberdade de expressão”.

Mas há uma série de contradições nisso: onde acaba o direito de expressão e onde começa o direito a não ser ofendido? Como afirmar o direito à segurança e negar aquele da liberdade de expressão?

As autoridades francesas deveriam ter intervido para impedir a publicação dos desenhos voluntariamente provocadores? Difícil concordar com esta ideia, o espectro da censura paira sobre ela. Caso as autoridades tivessem impedido as publicações, é simples imaginar a vaga de revolta com os intelectuais em primeira fila. E não posso excluir que este mesmo blog teria defendido a revista.

Mas as autoridades não intervieram e agora os intelectuais discutem sobre o “choque entre as civilizações”. Um choque que poderia ser evitado, na Europa, simplesmente respeitando a comunidade alvo das ofensas. Porque, respeitando a versão oficial, o que esteve em causa foram as repetidas blasfémias perpetradas pela revista, não a liberdade de expressão.

Tentamos não mudar de assunto, deixamos de lado o tão abusado “direito de manifestar as ideias”: os “terroristas” não atacaram a sede dum grupo ultra-nacionalista, contrário à imigração ou ao Islão. Não faltam na Europa conjuntos minoritários (poucos, para boa sorte) que manifestam desconforto perante a imigração, perante o “diverso”. Mas não são atacados, aliás, é muito complicado, talvez impossível, lembrar-se dum ataque “jihadista” contra tais formações.

A razão é simples: exprimem o desconforto com palavras, teses, teorias, não com repetidas e manifestas blasfémias.

Podemos pensar: “Na minha casa faço o que me apetecer”. O que não é verdade. Ao convidar um hindu, oferecemos só pratos com base em carne de vaca? Na França os Muçulmanos são 10% da população: trabalham, pagam os impostos, participam activamente na vida da sociedade, tal como qualquer outro cidadão francês. E, tal como qualquer outro cidadão francês, merecem ser respeitados.

Mas não é o que acontece: encontram nas bancas um semanal que, apesar de ter recebido inúmeros avisos, continua sistematicamente a ofender a religião deles, e faz isso da pior das maneiras (do ponto de vista muçulmano, claro). E milhões de Muçulmanos nem podem protestar, porque chocam contra a parede da “liberdade de expressão”.

Muitos nestes dias afirmam que não é possível atacar as manifestações de liberdade, mesmo que estas sejam extremas. Esta é uma tese terrivelmente séria com implicações muito pesadas porque exige uma absoluta coerência na aplicação. E pode entrar em choque com o direito à segurança, como foi o caso de Paris.

Não é suficiente afirmar as boas intenções, defender um direito: é preciso prever, saber gerir, e se for o caso aceitar, as consequências. Os direitos não têm um sentido único e não podem ser limitados, devem alcançar todos. E acontece que o Ocidente é um péssimo exemplo disso.

Um exemplo: o Holocausto e as teorias negacionistas. 
Na Áustria, Alemanha, Bélgica e até na mesma França a negação do Holocausto é configurada como um crime, enquanto em outros Países (israel, Portugal e Espanha) é sancionada a negação de qualquer genocídio.

Regras contra o negacionismo também foram introduzidas na Nova Zelândia, Austrália, República Checa, Eslováquia, Lituânia, Polónia e Roménia. Em 2007, a Organização das Nações Unidas aprovou uma resolução dos Estados Unidos que condenava sem reservas qualquer negação do Holocausto e exortava todos os membros a rejeitá-las.

Na Europa, apenas Italia, Espanha, Reino Unido, Dinamarca e Suécia recusaram adoptar medidas anti-negacionistas. Isso significa que, se assim desejar, aqui em Portugal eu não posso publicamente exprimir as minhas ideias contrárias ao Holocausto. E o mesmo acontece em França, onde agora os chefes de Estado passeiam abraçados para defender a “liberdade de expressão”.

O que é esta se não uma limitação da liberdade de expressão?
Porque não é possível ofender os hebraicos enquanto é legítimo ofender os muçulmanos? É esta coerência? É este um direito com um único sentido?

Nenhum desenho, nenhuma ideia pode justificar um ataque violento. Nem a mais grave das ofensas pode. Mas pode a liberdade de expressão ser mais forte do direito a não ser ofendido? Pode um direito incluir algumas categorias e excluir outras? Se assim for, para defender um princípio democrático arriscamos perder a Democracia (que, dito entre nós, já esta morta).

Ipse dixit.

11 Replies to “Liberdade de expressão”

  1. “Se queres saber quem realmente manda, descobre quem é proibido criticar.”

    Ainda duvidas Max?

    Abraço.

  2. Tiragem impressionante do jornal os donos ou accionistas vão ficar ricos com isto, faz-me lembrar a história do gajo que comprou as torres gémeas, fez um seguro fabuloso e ganhou milhões.

    Max, sabes quem são os donos da revista, só sei que não consentiam gozos com a religião judaica.

  3. Ja dizia meu pai:
    O direito de um acaba quando começa o do outro e vice-versa!
    Meu pai é que sabia das coisas! 😀

  4. Olá pessoal!

    Na verdade este não é um post acerca do atentado em si, coisa que foi já tratada.. O que está em causa não é "quem" (acho não haver grandes dúvidas sobre disso), quanto as contradições do nosso sistema.

    Por exemplo: negar a possibilidade de discutir acerca do Holocausto é como proibir por lei de pôr em dúvida a existência da Império Romano. Faz sentido? Isso impede que a História exista? Isso impede que algumas pessoas procurem na mesma? Este é um atentado à liberdade de expressão.

    Ao mesmo tempo, uma revista "satírica" publica imagens gravemente ofensivas contra uma minoria francesa e se depois alguém perde o tino (ou assim é feito crer, como é óbvio), todos a chorar contra os maus que querem tapar as nossas bocas.

    Isso é patético e terrivelmente hipócrita.

    Depois seria possível falar de Charlie Hebdo, cujos donos são hebraicos ou apoiantes da causa hebraica (e o mesmo se passa com alguns entre os desenhadores). Infelizmente não encontrei nada de "oficial" neste sentido (além das biografias do que foram mortos), por isso não publiquei nada.

    Mas o que interessa é: publicar Maomé nu com uma estrela enfiada nas partes baixas do corpo é sátira? Pelo que sei, a sátira têm bem outras armas, muito mais finas e inteligentes. Vejam a religião tratada pelos rapazes da Porta do Fundo no Youtube, tanto para ter uma ideia.

    Eu não sou pessoa religiosa, pelo que ver Allah ou Deus em retratos obscenos "passa-me alto" como se costuma dizer. Em alguns casos até pode ter graça. Mas entendo que quem tiver fé possa ficar incomodado e ter de encarar isso publicamente, semana após semanas, torna-se uma deliberada provocação.

    Como diz o Anónimo: o direito de um acaba quando começa o do outro e vice-versa.
    Aqui o direito de uns parece nunca acabar e ninguém nos órgãos de comunicação social realça este aspecto.

    Até mete dó ver um Chomsky que apoia a versão oficial e afirmar que "Os cantos apaixonados e omnipresente "Je suis Charlie" não devem dar a ideia e nem mesmo sugerir qualquer associação com a revista, pelo menos no contexto da defesa da liberdade de expressão. Devem expressar a defesa do direito de expressão, o que quer que se pense do conteúdo, mesmo que este possa ser considerado hediondo e depravado".

    Então vale tudo, não existem limites: a liberdade de expressão é mais forte do direito de ser respeitado. Mesmo que o "conteúdo" seja nojento, nós temos que apoia-lo. Sempre que não se fale de Holocausto, óbvio…

    Lamento, eu não alinho.

    Abraço!!!

  5. Inexiste liberdade ou democracia quando questões similares recebem tratamentos extremamente diferentes, em grandeza e interpretação. O poder passa pelo domínio da propaganda…e isso remonta ao Torá…levemente antigo…

  6. É necessário MANIFESTAÇÕES PELO DIREITO À SOBREVIVÊNCIA!
    (uma nota: os Nazis-à-USA irão opôr-se -> eles andam sempre à procura de pretextos para negar o direito à sobrevivência de Identidades Autóctones)
    .
    Todos diferentes, todos iguais!…
    -> Isto é: TODAS as identidades Autóctones devem possuir o Direito de ter o SEU espaço no planeta!…
    {nota: Inclusive as de 'baixo rendimento demográfico' (reprodutivo)!… Inclusive as economicamente pouco rentáveis!…}
    Resumindo: os 'globalization-lovers' que fiquem na sua… desde que respeitem os Direitos dos outros… e vice-versa!
    .
    .
    .
    P.S.
    -> Nazismo não é o ser 'alto e louro', bla bla bla,… mas sim… a busca de pretextos com o objectivo de negar o Direito à Sobrevivência de outros!
    -> Para além dos hitlerianos, existem outros… um exemplo: os 'HOLOCAUSTERS' MAIS MASSIVOS DA HISTÓRIA (na América do Norte, na América do Sul, etc) são precisamente aqueles que buscaram/procuraram pretextos para negar o direito à Sobrevivência de Identidades Autóctones… nomeadamente, e em particular,… aqueles que argumentam que a sobrevivência de Identidades Autóctones prejudica a economia.
    .
    P.S.2.
    Separatismo-50-50.

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