Ricardinho e a propaganda

Abrimos o diário Expresso e o que encontramos?
Um editorial do Director, o simpático Ricardo Costa.

Assunto: o atentado da Austrália.
Uhi, o terrorismo está de regresso…vamos ler alguns excertos, faz sempre bem ficarmos informados:

De Sydney a Kobane são mais de 14 mil quilómetros. Mas a proximidade entre a mais importante cidade australiana e a localidade mais disputada pelo Estado Islâmico é imensa, como muita gente começou a perceber nas últimas horas. A ação terrorista que tomou de assalto um café no centro de Sydney é surpreendente, mas não é uma surpresa. Há algum tempo que as autoridades australianas tinham subido o seu nível de risco para ataques terrorista para “muito alto”. […]

Ahiahiahi Ricardinho, começas mal, muito mal mesmo. Mas continuemos, nunca se sabe…

Não há nenhuma razão para se duvidar da informação divulgada sobre esse atentado falhado nem sobre o “estilo” escolhido. O único atentado reconhecido internacionalmente como tendo sido cometido por “militantes” regressados a casa, depois de terem lutado nas fileiras do Estado Islâmico, foi o triplo homicídio no museu judaico na Bélgica. E há mais de um ano, dois militantes radicais cortaram o pescoço a um militar britânico em Londres à luz do dia. Este tipo de ataques contra uma ou poucas pessoas requerem muito pouca preparação e têm um efeito devastador na opinião pública. E a Austrália é um local onde este tipo de atentados era efetivamente mais esperado.

Ahiahiahiahiahiahi Ricardinho, o que me fazes!
Mas ainda continuemos, bebemos o amargo copo até o fundo, vamos ler acerca da única solução que nós pode salvar:

E é previsível que muitos países – incluindo Portugal – aprovem com urgência novas leis antiterrorismo, que permitam combater uma ameaça com este tipo de atuação.

Ricardinho, quoque tu Ricardinho meu.
Olha Ricardinho, eu jornalista não sou, mas agora vamos fazer um joguinho, pode ser?
Vamos fazer de conta que tu és o Leitor do diário Expresso e eu o Director. Tranquilo, o ordenado fica teu, é só a fazer de conta.
Então é assim: o Leitor abre o jornal e quer saber do que se passou na Austrália, certo? Então eu, que sou Ricardinho e jornalista, convoco na Redacção os meus funcionários e digo:

Funcionários, o que se passa na Austrália? Quero saber tudo, mas tudo mesmo. E despachem-se que tenho que gravar um novo programa na tv.

Os funcionários correm, correm, mas nada mais do que os despachos da Agência Reuters encontram. O mais esperto (é jovem, quer fazer-se notar) traz o comunicado da Associated Press, que depois é igual ao da Reuters.
Então eu Ricardinho e jornalista digo:

Cambada de inúteis parasitas, é por isso que vos pago?

Alguém entre eles dirá:

Mas não és tu que pagas!

Mas eu, que sou Ricardinho, não vacilo:

Calem-se! E fiquem envergonhados! Agora eu, Ricardinho, vou mostrar como se faz jornalismo de verdade: aprendam!

Então é assim, tenta seguir os passos.
Em primeiro lugar ligo internet, depois começo a procurar com Google o nome do terrível terrorista que semeou…exacto, o terror: é por isso que é terrorista.
Pois: este é Monis-Boroujerdi, o terrorista…

E eis que algo estranho acontece: não um, não dois, mas vários resultados com o nome de Monis-Boroujerdi (é ele, é o terrorista: Monis-Boroujerdi aka Man Haron Monis aka Manteghi Boroujerdi aka Sheik Haron).

Obviamente descartamos logo os resultados mais recentes, estes não interessam porque falam todos do atentado de Sidney, não é? Mas os outros, os mais antigos?

Olha, estes sim parecem interessantes! Aliás: não “parecem”, mas “são” interessantes. E por qual razão? Porque eu sou jornalista e tenho o dever de informar o público, de procurar a verdade verdadeira.

Então podemos descobrir o seguinte: este gajo, o Monis-Boroujerdi, não era de todo um desconhecido. Eis o que escrevia o Australian em 2013:

Um auto-intitulado clérigo muçulmano foi condenado a 300 horas de serviço comunitário para escrever letras “grosseiramente ofensivas” às famílias dos soldados mortos no Afeganistão.

Man Haron Monis, também conhecido como Sheik Haron, deverá manter uma boa conduta para dois anos.

A sua companheira, Amirah Droudis de trinta-quatro anos, declarou-se culpada de cumplicidade.

Interessante, não é? Assim ficamos a saber que este Monis-Boroujerdi não era um desconhecido, as autoridades já conheciam o fulano que até tinha recebido uma condenação. Mas continuemos, pois a pesquisa devolveu mais resultados. Olha este, por exemplo, publicado pelo Australia’s ABC em 2001:

Aqui em Sydney, temos a chance de falar com o Ayatollah Manteghi Boroujerdi, um clérigo iraniano que casou uma visão liberal do Islão, perigosamente liberal, de modo que por causa das suas ideias, a esposa e as duas filhas deles são ainda reféns no Irão.

Ehi, Ricardinho, já viste? Que história engraçada, não achas? Afinal este terrorista era um liberal. Quantos terroristas liberais conhecemos? Não muitos, não é? Pois. Continuemos, continuemos com o mesmo artigo, que até deixa falar o homem:

“No Irão, maioritariamente, tive relações com o Ministério da Intelligence e da Segurança.[…] Não vejo a minha família há mais de quatro anos, o regime iraniano não a autoriza a sair. Na verdade, posso dizer que a minha família é mantida refém; refém do regime iraniano de quer calar-me, porque tenho algumas informações secretas sobre o governo e as suas operações terroristas. Enviei uma carta ao Secretário-Geral das Nações Unidas, e alguém de nome Kofi Anan me respondeu, dizendo que querem fazer alguma coisa. Espero e rezo para que Deus sempre possa resolver o meu problema”.

Assim, um terrorista supostamente em contacto com a intelligence e até com “alguém em nome de Kofi Anan”! Ricardinho, não achas tudo isso digno de nota? Eu acho. Mas continuemos a ler. Afinal é um terrorista, e com problemas familiares, podemos só imaginar a carga de ódio que terá este homem, não é?

“Podemos dizer que Austrália, Canadá, Inglaterra, EUA e muitos outros países ocidentais são sociedades religiosas. Nesses países, ninguém diz ‘”Somos religiosos”, mas na verdade podemos ver o espírito da religião a pairar sobre estas sociedades. E em qualquer outro país do Oriente Médio, da Ásia, em vez disso há pessoas que dizem “Somos muçulmanos”, declaram-se islâmicos, mas, na verdade, não são sociedades religiosas e os governos não são religiosos. Ando pelas ruas, saio de casa a qualquer momento na Austrália e sinto-me imerso numa real sociedade religiosa. Eu não quero dizer que seja um mundo perfeito, não há sociedade perfeita na terra, mas se compararmos a Austrália com o Irão e outros países do Oriente Médio, podemos dizer que o paraíso é aqui”.

Sempre ele, o terrível

Ò Ricardinho, mas que raio de terrorista é este? Este parece saído do departamento do turismo australiano. Um terrorista não deveria dizer coisas do tipo “Infiéis!”
ou “Arrependei-vos ou corto as vossas gargantas”? Eu acho que sim.

E não
só eu: até os islâmicos começaram a perguntar “Mas donde saiu este? Do Ovo de Páscoa?” (muitos islâmicos são gulosos).

Um líder xiita sénior do país, Kamal Mousselmani, pediu aos funcionários federais para investigar um homem iraniano que afirma ser um proeminente clérigo islâmico.

Mousselmani disse ontem que o misterioso religioso australiano não é um verdadeiro líder espiritual xiita; ele disse também que não há Ayatollah – estudiosos xiitas supremos – na Austrália e que nenhum dos seus colegas líderes espirituais sabia acerca deste Ayatollah Boroujerdi ou Sheikh Haron.

Disse Mousselmani

Não o conhecemos, nem tivemos alguma coisa a ver com ele. A Polícia Federal deve investigar essa pessoa. Esta deve ser a sua responsabilidade.

E, para acabar, a esposa dele não foi morta pelo regime: é o mesmo Monis-Boroujerdi que é suspeito de ser o homicida.

Viste Ricardinho o que pode fazer uma simples pesquisa na internet? Não foi difícil, pois não? E evita escrever disparates. Pelo que, vamos resumir o que deveria fazer um bom jornalista como tu:

  • realçar como a história dum xiita excessivamente liberal que glorifica o Ocidente para depois sacrificar-se em nome do Isis não tem o mínimo de sentido
  • realçar como o indivíduo seja, na melhor das hipóteses, um psicopata que nada tem a ver com o terrorismo islâmico.
  • realçar como as autoridades australianas já conheciam há muito o indivíduo, dado que tinha sido a mesma comunidade muçulmana a pedir que fosse investigado.

Acho que já há material mais do que suficiente para um jornalista sério começar a pôr-se algumas perguntas, não é? E seria possível ir além, tu sabes disso Ricardinho, mas deixamos ir desta vez, afinal porque complicar-se a vida? Ficamos com a história do doido varrido, que satisfaz todos.

Deixa lá as medidas anti-terrorismo de Portugal, Ricardinho, deixa lá os sermões despropositados, concentra-te na questão mais importante: onde acaba a profissão de jornalista e onde começa aquela de mero propagandista?

Ipse dixit.

Fontes: no texto.

8 Replies to “Ricardinho e a propaganda”

  1. será simples facilitar de propaganda, debitar sempre mais do mesmo ou simples reflexo de um mau trabalho de investigação jornalística? ou será um pouco de todos que dá neste resultado de um texto que diz uma série de generalidades e não vai ao assunto em particular?

    1. O problema é que um mau jornalismo (superficial, que limita-se a repetir quanto difundido pelas poucas agências de notícias) torna-se cúmplice da propaganda, mesmo que de forma involuntária.

      Este é um dos grandes problemas do jornalismo contemporâneo: pega-se nos despachos, mudam-se as vírgulas e publica-se o resultado. Confrontando a mesma notícia em vários órgãos de informação, é simples ver como os termos e até inteiras frases sejam idênticas. Espreitando as várias Reuters ou AP encontra-se o original.

      Fala-se da crise do papel: é verdade, existe e a principal culpada é sem dúvida internet. Mas tornar-se um mero megafone não acho que possa ajudar as vendas. Acedo às páginas da Reuters, tenho as mesmas notícias e de forma gratuita.

      Bem diferente seria uma jornalismo feito de investigação, que tente ir além dos despachos. Mas para isso são precisos jornalistas e não simples "copiadores".

      Abraço!

  2. Excelente artigo, Max. Bom ver que ainda ha' gente com mais de dois neuronios em Portugal.

  3. O Ricardo Costa é mais um gramofone no meio da classe jornalística. Só toca musica gravada.
    Utilizar hoje o termo jornalista para os empregados dos jornais e dos media em geral, é uma piada que insulta a inteligência.
    Quando se debateu a privatização da RTP e da necessidade de haver um serviço publico de televisão em Portugal, então foi uma piada ao quadrado.
    Felizmente, ainda existem por esse mundo fora muito jornalistas que honram a profissão que têm. Não sei quantos serão totalmente isentos.

    Krowler

  4. Olá Max,

    em tempos uma amiga minha que se licenciou em jornalismo disse-me:
    – "Um professor meu tinha-nos dito numa aula, algo que inicialmente me parecia despropositado: A sociedade pensa aquilo que nós (jornalistas) quisermos. Depois percebi que era verdade."

    Sem dúvida, o jornalismo faz a opinião pública.
    Uma nova versão do "1984" com os lugares e datas que temos na realidade e o livro não perderia nada na sua essência. Aliás, Orwell até teria vergonha da "história" dele ser tão má…

    Um abraço,

    R. Saraiva

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