EUA: certas coisas nunca mudam (quando a inteligência é 2%)

O dia 04 de Dezembro de 2014 poderá muito bem ser lembrado como uma das datas significativas no percurso que levará até uma futura (e por enquanto apenas possível) guerra mundial.

As 16 páginas da Resolução aprovada pela Câmara dos Representantes dos Estados Unidos da América, com 410 votos a favor e 10 contra (quatro deputados republicanos e seis democratas), são um passo decisivo naquela direcção.

Escreve o sempre óptimo Pepe Escobar nas páginas de Facebook:

Não vou conseguir realçar suficientemente quanto terrificante e estúpido seja tudo isso.

E tem razão, não é simples.

O Congresso dos EUA apela ao Presidente para “examinar” a “prontidão” e a “responsabilidade” das forças armadas dos Estados Unidos, mas também aquelas dos aliados da Nato, para saber se serão “suficientes” ao fim de “cumprir as obrigações de defesa colectiva nos termos do artigo 5º do Tratado do Norte Atlântico”. Não é uma declaração de guerra, mas o sentido é claro, também porque toda a resolução é dedicada à Rússia.

O artigo 5º do Tratado exige que qualquer membro da Nato tenha que intervir em defesa de qualquer outro membro da Aliança que esteja sob ataque. A Ucrânia não é um membro da Nato, pelo menos não ainda: um anúncio duma sua próxima entrada na grande família? Nada de mais provável após a tomada de posse do governo de marionetas em Kiev.

Importante também notar como, de acordo com a lei norte-americana, se essa resolução for tornada lei (após a aprovação do Senado) irá permitir que o presidente dos Estados Unidos possa declarar guerra à Rússia sem pedir uma qualquer permissão adicional.

O simpático Obama desenterra o machado de guerra? Não propriamente: sempre Escobar faz notar como o actual presidente não tenha a capacidade para isso. Ele não, mas o próximo (que bem poderá ser a ainda mais simpática Clinton) sim. Por enquanto a Administração limita-se a preparar o terreno, para que tudo seja feito de acordo com a lei.

Além disso, o que espanta na resolução é o uso indiscriminado (e numa resolução política de tal importância) das falsificações que os órgãos de comunicação têm utilizado na crise ucraniana para cultivar o crescer da histeria anti-russa. Os membros do Congresso votaram quase por unanimidade uma resolução que contém uma série de invectivas baseadas unicamente na propaganda e acusações penosamente falsas.

Ao ponto de cair no ridículo: no parágrafo 34 o Congresso norte-americano acusa os Russos de “recolher ilegalmente
informações sobre o governo dos Estados Unidos”. Os Russos? E os EUA que recolhem informações acerca de todos com o escândalo do NSA? As revelações de Edward Snowden, já esquecidas?

As outras acusações não ficam atrás:

Considerando que o voo Malaysia Airlines 17, um avião civil, foi destruído por um míssil disparado pelas forças separatistas no leste da Ucrânia apoiadas pela Rússia, resultando na perda de 298 inocentes.

O que interessa se a investigação ainda não acabou? Em Washington já conhecem a verdade e, longe de apresentar qualquer tipo de prova, apontam o dedo ao culpado.

Considerando que a Federação Russa tem protegido o regime de Assad e apoiado o seu ataque brutal contra o povo da Síria.

A Síria era um País calmo, sem guerra civil, até alguém começar a fornecer armas a grupos de mercenários que já tinham um passado na organização da CIA conhecida como Al-Qaeda.

Considerando que a Federação Russa invadiu a República da Geórgia em Agosto de 2008 […]

As conclusões do inquérito promovido pela União Europeia em
Dezembro do mesmo ano não deixam margem para dúvidas: foi a Geórgia a começar uma
guerra injustificada. Incitada por quem? Não é difícil imagina-lo e, no caso, pode ser sempre consultado um bom livro de história recente.
Depois há isso:

Considerando que a Rússia tem expandido a presença dos meios de comunicação patrocinados em línguas nacionais em toda a Europa central e ocidental com a intenção de usar notícias e informações para distorcer a opinião pública e esconder a influência política e económica da Rússia na Europa;

Somos vítimas da propaganda russa.
Isso não tem comentário possível. Não dá mesmo.
A impressão é que os autores da resolução analisaram a situação internacional tendo como base artigos de jornais e programas da televisão americana. Com o deprimente resultado para o qual mau jornalismo acaba de produzir péssimas decisões políticas.

Como é possível que o Congresso dos EUA avance com base em falsificações tão evidentes?
Como podem os Estados Unidos atacar a Rússia pelo facto de utilizar os mesmos instrumentos de Washington?
Como é possível acusar a Rússia de ter imposto sanções contra a Ucrânia, quando os Estados Unidos impuseram e fizeram impor sanções contra a Rússia?
Como é possível acusar a Rússia de apoiar os rebeldes nos mesmos dias em que o Pentágono envia 100 tanques para os Países do Leste europeu para “enfrentar a agressão russa”? Mas de qual agressão estão a falar?

No último discurso que Putin fez perante a Assembleia Federal afirmou ir tentar evitar uma corrida aos armamentos com os Estados Unidos; mas isso não significa que possa controlar a escalada militar da Nato à porta de casa (Ucrânia).

O perigo da guerra não é imediato, ainda haverá movimentos e contra-movimentos. Também será preciso ver qual a decisão da Europa neste sentido (sempre admitindo que as Mentes Pensantes de Bruxelas consigam tomar sequer uma decisão) e é difícil que um continente economicamente enfraquecido e socialmente em lento mas contínuo aquecimento esteja disposto a acompanhar os EUA nesta absurda aventura.

Uma coisa é certa: se ainda alguém tinha dúvidas acerca das intenções de Washington, esta resolução põe a palavra final. A conquista da Eurásia, tal como ensinado por Zbigniew Brzezinski, constitui um dos próximos passos no roteiro americano.

Mas vamos ver as coisas do ponto de vista positivo, pois até na noite mais escura há faíscas de esperança.

No Congresso havia um total de 434 pessoas.
Destes, 13 (3%) não votaram pois não entenderam qual o assunto, 411 (95%) votaram “Sim”, 10 (2%) foram as pessoas inteligentes que votaram “Não”.

2 % será pouco, mas é sempre um começo… 

Ipse dixit.

Relacionados:
Quirguistão e o Grande Tabuleiro
Visões do futuro: A Estrada da Pérsia – Parte I
Visões do futuro: A Estrada da Pérsia – Parte II
Visões do futuro: A Estrada da Pérsia – Parte III

Fontes: GovTrack.US – House vote #514 in 2014; H. Res. 758 – Text of Strongly condemning the actions of the Russian Federation, under Presiden Vladimir Putin, which has carried out a policy of aggression against neighboring countries aimed at political and economic domination (ficheiro Pdf, inglês), Facebook – Pepe Escobar.

8 Replies to “EUA: certas coisas nunca mudam (quando a inteligência é 2%)”

  1. O que resta fazer quando o poder econômico, político e a propaganda estão do mesmo lado? Aderir ou ficar assistindo uma realidade, toda ela construída por sua ferramenta e sustentáculo que atende pelo nome de medias…Enquanto isso o monoteísmo se encarrega de aprisionar o indivíduo pelo medo, culpa ou ganância…assim vamos…sem qualquer perspectiva de mudança real…a não ser que passe numa farmácia e tome uma boa dose de hipocrisia…

  2. Creio que se torna cada vez mais evidente que andam a fazer tudo o que podem para arranjar uma grande guerra com a Rússia. O mundo ocidental esta em declinio e os eua prestes a chegar ao ponto em que já não poderão mais encobrir o seu descalabro economico-financeiro. A divida deles nunca sera paga. Mas o maior problema é que aquela gente que manda lá não tem limites, para eles tudo vale (até arrancar olhos) . Assim uma grande guerra vem mesmo a calhar pois foi assim que conseguiram sair do atoleiro em que estavam metidos ate a 2a guerra mundial. Ganharam a vender armas, ganharam depois com a reconstrução da europa (ao contrario do que muita gente pensa o dinheiro do plano Marshall não era grátis e bem que Salazar não se deixou apanhar nessa armadilha), e a divida deles caira no esquecimento.

    EXP001

  3. espero que os 98% estejam a votar na "prontidão" e "responsabilidade" de arranjarem problemas com os chineses e o irão também.

  4. Os EUA nunca deixaram de ser o Far West. Só sabem andar aos tiros!
    O problema é que o resto do mundo não tem que levar com a soberba desta gente, mas está sempre a pagar as favas.
    2 % de inteligência nos políticos, e talvez um pouquinho mais na população. É provável que a guerra seja assim a única saída que resta aos oligarcas americanos.

    Krowler

  5. Não vai haver uma guerra, pela simples razão de que seria a última, ou já se esqueceram que a Rússia felizmente tem armas nucleares? O que vai acontecer é o aprofundamento da escravização das pessoas que ficam apavoradas de medo…

    Agora eu fico a pensar se há mesmo um plano por trás, quero dizer a continuação da acumulação de poder pelos que já têm tudo… Eu tenho algumas dúvidas:

    Li que 1% da população já controla 50% da riqueza e que a esta velocidade 100% da riqueza serão controlados por 1% da população daqui a 20 anos, assim para quê o trabalho de uma grande guerra?

    Talvez sejam as instituições que criámos, a doutrina em que acreditamos e o trabalho que cada um de nós faz ou não faz, que torna a guerra possível e talvez até provável.

  6. Sabendo-se que hoje em dia está tudo cada vez mais "globalizado", seja lá o que isso for.
    Está para umas coisas e bem falo no $$$$$ e até na população, nunca se viu (se bem que já estão a impor limites), tanta gente a trabalhar e viver(nem que seja momentaneamente) em lugares bem distantes quer geográfica/culturalmente distintos do seu ponto de origem, logicamente à procura $$$$$ para ter uma vida melhor (o que por vezes não passa de uma ilusão, com muitos custos). Mas isto é um poupo a condição humana.
    Já aqui foi amplamente debatido o que está de facto "globalizado" é o $$$$$ e compras e vendas que utilizam, pois é claro $$$$.
    Acho que guerra mesmo guerra como a I e II guerra algo difícil.
    Guerra convencional ou de desgaste talvez até que alguém se farte e utilize bombas daquelas que cairam em Hiroshima e Nagazaki (mas muito mais potentes).
    Aliás onde é que os 1% iriam gozar as suas fortunas? Em algum sitio com menos radiação (mas sem deixar de ter a mesma) e empregados obididientes? Sabem fazer dinheiro mas as coisas básicas canalização/electricidade/medicina/cozinha etc não. A maioria nem um pneu de um carro sabe mudar.
    Conclusão: somos precisos.(já não é mau)
    Sei que já estou a ir por caminhos meio pantanosos mas para interligar as maluquices que debitei acima com o que falei no pricipio: globalização e uma moeda única por fazes? Quem controlaria isso? Onde estão os super computadores com a respectiva pernafenalia: EUA, UE, Rússia, China, e mais outros. Acho que existe um ou dois threads sobre isso aqui no ii.
    O dinheiro: digital
    Quem ganha mais: os mesmos que apoiaram os aliados e o eixo. Traduzido por miúdos: Banqueiros do costume & cia ltda.
    Os 1% ou elites já existem em todos esses locais com interesses bem mas bem comuns.
    …..
    Nuno

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