465 anos

É incrível como o povo, logo após ter sido subjugado, cai rapidamente num esquecimento da liberdade tão profundo que nem é possível que acorde para obtê-la de volta, mas serve de forma tão sincera e de tão boa vontade que, ao vê-lo, parece não ter perdido a liberdade mas ganho a servidão. [ …]

É verdade que, num primeiro momento, serve-se porque forçados e vencidos pela força, mas aqueles que virem depois servem sem arrependimentos e fazem de bom grado o que os seus antecessores haviam feito com a força.

É assim que os homens nascidos sob o jugo e, em seguida, criados e educados na servidão, sem já olhar para a frente, contentam-se em viver como nasceram e não pensam em ter outro bem nem outro direito excepto aquele que receberam, e assumem como natural a condição do nascimento deles. [ …]

Assim, apesar da natureza humana ser livre, o hábito tem sobre os indivíduos efeitos maiores do que não a natureza dele, e por isso aceitam a servidão pois sempre foram educados como escravos: “A natureza do homem é o direito de ser livre e querê-lo ser, mas a sua atitude é tal que naturalmente preserva a inclinação que lhe dá a educação”.

Os teatros, os jogos, as farsas, os espectáculos, os gladiadores , as feras exóticas, as medalhas e outras distracções semelhantes pouco sérias eram para os povos antigos a isca da servidão, o preço da sua liberdade, os instrumentos da tirania.

Estes eram os métodos, as práticas que usavam os tiranos antigos para adormecer os seus súbditos sob o jugo.

Assim, os povos, estupidificados, achando bonitos aqueles passatempos, apreciando um prazer vão que passava na frente dos seus olhos, adaptavam-se a servir mais normalmente das crianças que, observando as imagens brilhantes dos livros ilustrados, aprendem a ler. […]

Queria só ser capaz de entender porque tantos homens, tantas vilas e cidades, por vezes tantas nações, têm um tirano que não tem nenhuma força excepto aquela que lhe for dada, não tem poder para prejudicar a não ser que ele seja tolerado. Onde ele foi capaz de encontrar tantos olhos que espiam se não foram vocês que lhe forneceram? Como pode ele ter tantas mãos para apanhar-vos se não foi de vocês  que as recebeu? Portanto, sejam determinados a não servir mais e estarão livres.

Discours sur la servitude volontaire 
(“Discurso sobre a servidão voluntária”)
Étienne de La Boétie
Ano 1549 d.C.

12 Replies to “465 anos”

  1. Olá Max: pois tu percebes que La Boétie era um cidadão comum, nenhuma intelectualidade especial, nenhum título que lhe conferisse poderes especiais e, mais de 4 séculos antes de nós, conseguia vislumbrar a realidade com a lucidez mais extraordinária. Gostaria eu de saber que tipo de experiências, que genótipo, qual fenótipo, que inteligência, coragem, originalidade têm estas tão poucas criaturas que, independente da época e do lugar não são cegas, e como a vida e/ou a genética ou ainda o acaso, ou a feliz confluência de acontecimentos, as constrói assim. Tantos clones de La Boétie seriam necessários!! Abraços

  2. Este discurso não podia ser mais actual e mais lúcido.
    Não posso deixar passar este tema sem uma referência ao professor Agostinho da Silva.
    Disse Agostinho da Silva, que o avanço civilizacional não pode ser medido naquilo que podemos comprar mas antes no tempo que o homem pode dedicar ao ócio.
    Infelizmente, e com todo o avanço tecnológico, trabalha-se cada vez mais e temos cada vez menos tempo para o ócio.
    A tecnologia, que deveria ser posta ao serviço do homem, é mais uma meio para o escravizar.
    Comparando com épocas anteriores, vivemos num período de retrocesso civilizacional, mesmo com as montras das lojas cheias de ilusões.

    A servidão voluntária alimentada por um mundo de ilusões é uma das características que definem a mediocridade da espécie.

    Krowler

  3. É engraçado pensava que só eu tinha lido o livro.
    kkkkk
    Afinal há mais
    Será que estão a colocar anestesiantes no ar ,na água eu sei lá.pois informação, pelos vistos todos temos,mas ficamos por aí
    abraços

  4. Deixava no "ar" como sugestão um tal de Sun Tzu do séc II a.c. :"A Arte da Guerra". E ver como os seus ensinamentos "deturpados" são usados em empresas, militares. É um bocado a arte do logro/falso controlo/criar medo no adversário para ele não saber como actuar etc… saber jogar com isso. Ver wikipedia p.ex.
    Desde que apareceu a primeira civilização isto basicamente não funcionou sempre assim? Acho que é tipo um disco riscado. Funciona? Infelizmente a maioria das vezes sim.
    Krowler o nosso Agostinho da Silva tem um "compadre" no Uruguai que diz o mesmo o Mujica.
    Abraço
    Nuno

  5. Servidão humana? Só acaba de uma forma: educação(não alienação) como deve ser, além de ensinar também deve incutir e com isso criar/desenvover um sentido crítico e auto crítico. Pensem por vós de uma vez por todas po*ra não não queima o cérebro é mentira(para que estuda). Não tenham medo. O medo é a maior forma de controlo quando a maioria das vezes não se justifica.
    Nuno

  6. "Domines a educação e dominaras o povo", máxima antiga que jamais será desatualizada…nunca teremos uma educação verdadeiramente libertadora. O que nos ensinam é o comportamento de ovelhas mercenárias aptas para lidarem com tecnologias… pensar, não sendo para buscar dinheiro, quase inexiste…E a pergunta que sempre surge. Qual o protagonista histórico invisível que patrocina esse status quo? Não tenham dúvidas…vocês sabem…portanto…reconhecer seu dono é o primeiro passo para desbancá-lo.

  7. Quem julgar que os bate com as suas proprias armas para além de sonhador, é -1 ( adversário ) e mais não digo! Pindar!

Obrigado por participar na discussão!

This site uses User Verification plugin to reduce spam. See how your comment data is processed.

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

%d bloggers like this: