Srebrenica: os dois lados da verdade – Parte I

Após a morte de Tito (no dia 4 de Maio de 1980), a Jugoslávia viveu entre 1980 e 1986, um período
de relativa calma. Parecia que o sistema construído e revisto ao longo das décadas por Tito fosse capaz de resultar após o desaparecimento dele.

Tito tinha sido capaz de equilibrar as representações étnicas e controlar os ódios antigos (para saber um pouco mais acerca destes ódios, aconselho o romance A Ponte Sobre o Drina, magnifico quadro sobre a realidade da região ao longo dos séculos, obra prima do Prémio Nobel Ivo Andrić); com as armas da diplomacia e da repressão, o Marechal tinha conseguido um delicado quanto improvável equilíbrio que parecia estável.

Mas desde o ano 1986, a situação começou a deteriorar-se com rapidez. A província autónoma do Kosovo, formalmente em território da Servia mas de maioria muçulmana, reclamava a independência, isso enquanto os mesmos sérvios achavam-se alvos duma campanha de descriminação. Apesar do plano económico de 1983 resultar, em 1990 teve lugar o 14º e último congresso dos comunistas jugoslavos, no qual as divergências atingiram o ponto de não regresso.

Em 1991 houve o referendo para a independência da Eslovénia, iniciativa apoiada pela Alemanha e pelo Vaticano, com conseguente intervenção das tropas militares da federação Jugoslava. Mas o processo de dissolução tinha entrado na fase final e, em breve, do País deixado por Tito nada sobrava. a Jugoslávia nada sobrava.

É no contexto da guerra nas ex-Jugoslávia que deve ser enquadrado o massacre de Srebrenica, um dos eventos mais terríveis da história recente.

A historiografia é feita pelos vencedores, então é lógico ter um lado “bom” e um “mau”.
Na guerra da ex-Jugoslávia o lado mau era personificado pela Sérvia, conduzida pelo nacionalista Slobodan Milošević, enquanto o lado bom era o Ocidente (já viram quantas vezes o Ocidente é bom?).

Não vamos aqui percorrer a história de Milošević, nem da estranha morte dele ou de outros líderes sérvios (como de Milan Babić ou de Slavko Dokmanović, todos mortos na mesma prisão de Aia, na Holanda).
Vamos, pelo contrário, falar exclusivamente de Srebrenica. Eis como Wikipedia, que da historiografia oficial é o porta-estandarte, descreve os acontecimentos:

Massacre de Srebrenica foi o assassinato, de 11 a 25 de julho de 1995 de até 8.373 bósnios muçulmanos, variando em idade de adolescentes a idosos, na região de Srebrenica, pelo Exército Bósnio da Sérvia, sob o comando do General Ratko Mladić e com a participação de uma unidade paramilitar sérvia conhecida como “Escorpiões”.

Considerado um dos eventos mais terríveis da história recente, o massacre de Srebrenica é o maior assassinato em massa da Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Foi o primeiro caso legalmente reconhecido de genocídio na Europa depois do Holocausto.

Esta é uma parte da verdade. Depois há outra.

O caos planeado de Ibran Mustafić

Pelo menos 1.000 muçulmanos bósnios em Srebrenica foram mortos pelos seus compatriotas durante a viagem para Tuzla, em Julho de 1995, porque existiam listas daqueles a quem “deveria ser impedido de alcançar a liberdade a qualquer custo”.

Esta última é uma das afirmações de Ibran Mustafić, ex militar da Bósnia e fundadores da SDA (Stranka Demokratske Akcije, o Partido Democrata bósnio).

Mustafić é o autor do livro Planned Chaos (Caos Planeado), em que alguns dos crimes cometidos pelos soldados separatistas da Bósnia e Herzegovina contra os sérvios são descritos pela primeira vez, tal como o continuo e ilegal fornecimento de armas aos separatistas por parte do Ocidente, antes e durante a guerra; e até durante o período em Srebrenica era uma zona desmilitarizada sob a protecção das Nações Unidas.

Mustafić fala do conflito entre os muçulmanos e do caos geral na cidade governada pela máfia do comandante militar bósnio Naser Oric, que com a cumplicidade das autoridades locais vendia a ajuda humanitária a preços exorbitantes ao invés de distribuí-los para as pessoas. Um caos do qual muitos cidadãos de Srebrenica (incluídos os bósnios) fugiram voluntariamente .

Revela Mustafić:

Aqueles que procuravam a salvação na Sérvia, foram capazes de chegar ao destino final, e aqueles que fugiram na direcção de Tuzla (governada pelo exército separatista) foram perseguidos.

O primeiro contacto com os crimes contra os sérvios aconteceu em Tuzla, onde Mustafić tinha encontrado refugio após deixar Sarajevo em 1992.

Aí, o meu primo Misrad mostrou-me uma lista de soldados prisioneiros sérvios, que foram mortos num lugar chamado Zalazje. Entre outros, havia os nomes do seu colega de turma, Branko Simic, com o seu irmão Pero, do ex juiz Slobodan Ilic, do motorista de Zvornik Mijo Rakic​​, da enfermeira Rada Milanovic… Além disso, nas batalhas e em torno de Srebrenica durante a guerra, houve mais de 3.200 sérvios desta e das cidades vizinhas morto.

Mustafić relata também a confissão de Naser Oric, o comandante bósnio de Srebrenica durante a guerra:

Naser Oric

Quando capturámos aqueles (os sérvios) em Zalazje e arrastámos-os fora da prisão, o massacre começou. Peguei em Slobodan Ilic. Atirei-me a ele… estava barbudo e cabeludo como um animal. Ele olhou para mim e não disse uma palavra. Então peguei na baioneta e enfiei-a num olho, depois afundei a faca. Ele nem sequer pediu misericórdia. Assim enfiei-lhe a faca no outro olho. Não podia acreditar que permanecesse em silêncio. Francamente, foi aí que fiquei com medo, assim cortei-lhe imediatamente a garganta.

O livro contém a história do tio de Mustafić, Ibrahim:

Naser veio e disse-me para preparar-me e ir com o Zastava (uma marca de automóveis) perto da prisão em Srebrenica. Vesti-me e saí imediatamente. Quando cheguei na prisão, pegaram em todos aqueles capturados anteriormente em Zalazje e ordenaram para levá-los em Zalazje.

Quando chegamos no aterro, mandaram-me parar e estacionar o camião. Afastei-me, mas quando vi a fúria deles e começou o massacre, senti-me mal, eu estava branco como um lençol. Quando Zulfo (provavelmente Zulfo Tursunovi, soldado bósnio) rasgou com uma faca o peito da enfermeira Rada Milanovic, perguntando falsamente onde estivesse escondido o rádio, não tive a coragem de olhar.

Caminhei desde o aterro e cheguei em Srebrenica. Eles levaram o camião, fui para casa em Potocari. O inteiro percurso estava inundado de sangue.

As listas dos bósnios eram bem conhecidos pela liderança muçulmana de Alija Izetbegovic e a existência delas foi confirmada por dezenas de pessoas. Continua Mustafić:

Pelo menos 10 vezes que ouvi o ex- chefe da polícia Meholjic mencionar as listas. No entanto, não ficaria surpreso se ele decidisse negar isso.

Segundo o ex militar, a lista tinha sido preenchida pela máfia de Srebrenica, que incluía também a liderança política e militar de Srebrenica, em 1993:

Os donos da vida e da morte na zona. Se eu tivesse que julgar Oric (Naser Oric, que fez assassinar mais de 3.000 sérvios na área de Srebrenica, regularmente absolvido pelo Tribunal Penal Internacional de Haia), ia condená-lo a 20 anos para os crimes que cometeu contra os sérvios; pelos crimes cometidos contra os seus compatriotas, ia condená-lo a 200 mil anos de prisão no mínimo, pois ele é o maior responsável por Srebrenica, a maior mancha na história da humanidade. […]

A.Izetbegovic (dir) e B.Clinton (esq)

O genocídio de Srebrenica foi acordado entre a comunidade internacional e Alija Izetbegovic, entre Izetbegovic e o presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton. Pelos crimes cometidos em Srebrenica, Izetbegovic e Bill Clinton são directamente responsáveis. E, quanto a mim, o acordo deles é um crime maior do que qualquer outra coisa que aconteceu em Julho de 1995. O momento em que Bill Clinton entrou no Memorial Srebrenica foi o momento em que o mau volta à cena do crime.

Mustafić realça como houve falsificações acerca dos nomes e do número de vítimas de Srebrenica. Sei de um pai que perdeu o filho em Srebrenica, mas o filho nunca estava entre os mortos ou os desaparecidos. Da mesma forma, um homem que morreu na Holanda foi colocado na lista das vítimas de Srebrenica. […]

Muitos muçulmanos bósnios concordaram em declarar-se vítimas porque não tinham meios de subsistência, não trabalhavam, de modo que desfrutaram a ocasião. Outra coisa estranha é que, entre 1993 e 1995, Srebrenica era uma zona desmilitarizada. Como é que de repente temos tantos inválidos de guerra em Srebrenica?

Mustafić acredita que é muito difícil determinar o número exacto de mortos e desaparecidos em Srebrenica:

É muito difícil, porque os factos de Srebrenica por muito tempo têm sido alvo de desinformação e o chefe dos fantoches era Amor Masovic, que com o dinheiro feito no palco de Srebrenica poderia viver feliz para os próximos 500 anos. No entanto, há alguém no grupo de Izetbegovic (Alija, era então presidente dos muçulmanos da Bósnia ) que desde o Verão de 1992 tem vindo a trabalhar para implementar o projecto de tornar os muçulmanos bósnios as vítimas exclusivas da guerra.

As Boinas Verdes de Zoran Cegar

Ibran Mustafić não é único bósnio que decidiu falar.
O ex-vice-comandante de uma unidade especial do Ministério do Interior da República da Bósnia- Herzegovina, Zoran Cegar, afirma que em Sarajevo, durante a guerra, criminosos abusaram, com estupros e tortura, de mulheres e raparigas, em seguida assassinadas. Depois atiraram os corpos nas ruas, afirmando que tinham sido mortas por franco-atiradores sérvios.

Temos os nossos criminosos de guerra. Mataram pessoas em Sarajevo, independentemente da sua idade ou nacionalidade. Também mataram pessoas com deficiência. Mataram famílias inteiras, para tomar posse dos seus apartamentos.

Rua Dobrovoljacka, 03.05.1992

Cegar acrescenta que houve crimes piores daquele de rua Dobrovoljacka [no dia 3 de Maio de 1992,
na rua Dobrovoljacka, em Sarajevo, membros da Defesa Territorial da Bósnia e Herzegovina, sob o comando dos “Boinas Verdes” muçulmanas e paramilitares, encurralaram uma coluna de soldados sérvios que estava a retirar-se da cidade de forma pacífica, matando 42 soldados, ferindo 73 e capturado 215 entre militares e civis, ndt].

Cegar reitera que quando viu o crime de rua Dobrovoljacka, tinha informado as autoridades e os investigadores:

Podem dizer o que quiserem, mas eu fui o primeiro a chegar ao local. Matar um homem de perto, batendo o cérebros dele contra o chão é um acto impensável para mim. O que vi foi um crime de guerra e informei as autoridades e os investigadores, também estrangeiros, de que este era um crime de guerra.

Os autores do crime foram os que define como “hordas”, fora de controle:

O incêndio começou depois destes grupos armados terem começado isso. Eles eram os “Boinas Verdes” (forças especiais de Izetbegovic) ou “Liga Patriótica”. Não eram nem os membros da força policial regular, nem as unidades do exército regular.

Cegar realça que aqueles que deveriam saber, já sabem quem cometeu os crimes, acredita que a investigação sobre o massacre da rua Dobrovoljacka nunca realmente iniciou por causa de interesses de alto nível envolvidos:

Se alguém na Bósnia quisesse, já teria sido resolvido há muito tempo.

Ipse dixit.

Fontes na segunda e última parte do artigo.

3 Replies to “Srebrenica: os dois lados da verdade – Parte I”

  1. Olá Max: sem antecipar nada, sugiro aos leitores de ii La Doctrina del Schock de Naomi Klein, Paidós, Barcelona, onde o auge do capitalismo do desastre ( subtítulo da obra)é muito bem discutido e, conforme aqui em ii sempre ressaltado, nos mostra inequivocamente como sempre se repete a questão dos interesses financeiros dos poderosos sob o manto de ideologias divergentes, e questões étnicas em conflito, estas últimas quase sempre inventadas. Abraços

  2. Aguardo com espectativa a segunda parte.
    Tenho amigos sérvios, croatas e macedónios, sendo que os macedonios, que são muçulmanos sabem bem o que se passou, e inclusivamente confirmam que a Alqaeda este involvida nos problemas entre Croacia, Sérvia e Kosovo.

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