Escravos modernos – Parte II

Esta segunda parte é um pouco comprida. Peço desculpa. É que por aqui passou a tempestade Stephanie, muita chuva, vento, então a gente fica em casa e escreve para molestar os Leitores.

Hugo Salinas Price. Pois.

Salinas basicamente diz que milhões de trabalhadores no Ocidente hoje teriam, do ponto de vista puramente económico, conveniência em fazer os servos, assim como tem sido ao longo de milhares de anos e ainda é um muitas partes do planeta (como no México, onde as famílias como a dele, por exemplo, têm uma equipa de vinte pessoas fixas, às quais fornece abrigo, comida e emprego para todos os membros).

Salinas é irónico? Nem por isso.

Nos Estados Unidos, como na Europa (só para falar do Ocidente mais “desenvolvido”) há hoje milhões de pessoas, especialmente os jovens, que permanecem desempregados ao longo de vários anos, com a perspectiva de emigrar (e fazer o escravo no estrangeiro) ou adaptar-se a empregos precários e ocasionais, pagos 4-5 Euro líquidos por hora: um trabalho que podem perder dum dia para outro e com o qual deveriam alugar uma casa cujo custo está fora do alcance. Pelo que, ou partilham o apartamento ou voltam para a casa dos pais, sem a possibilidade de construir-se um futuro.

Podemos observar este fenómeno todos os dias: redução dos salários, contratos temporários e Países que aplicam mais rapidamente estas medidas que são indicado qual exemplo a seguir pelos especialistas em economia (que, evidentemente, não têm problemas de salário).

Tudo é mentira?

Salinas Price diz que o problema da nossa época é, em primeiro lugar, a incrível quantidade de mentiras que cobrem a dura realidade (Everything in our modern world is a lie, “Tudo no nosso mundo moderno é uma mentira”) e que, se observarmos com atenção através da neblina na qual estamos imersos, a realidade é que uma vez “saltadas” as barreiras culturais e sociais (e mudadas as leis), muitos desempregados irão perceber que do ponto de vista financeiro é melhor fazer o servo, como uma vez.

Ficar numa casa, sem limites de horários, sempre disponíveis sete dias por semana, mas sem ter que pagar uma casa, comida e com um emprego estável, remunerado pouco mas certamente não menos do que num call center.

A prova?
Uma mulher que trabalhe desta forma numa casa em Italia (usualmente das Filipinas, Sul e Centro-América) ganha entre 1.200 ou 1.400 Euros por mês, enquanto um jovem italiano licenciado ganha 600 Euros num call center. Pelo que, as filipinas fazem filhos, os jovens italianos não.

Salinas Price diz que, mais cedo ou mais tarde, este últimos irão resignar-se a voltar a ser servos: mesmo que tenham um grau de cultura superior, eles irão limpar a casa dos que efectivamente têm dinheiro, como os executivos, os empresários bem sucedidos e as pessoas que vivem de rendimentos. Será um voltar atrás no tempo.

Escravos: um investimento

Mas voltemos ao trabalho de Salinas? Não, pois não é o único “filosofo” que trata do assunto. Ao lado dele temos também o trabalho de Frances Coppola, um banqueiro inglês que aposentou-se depois de ter feito bastante dinheiro e que agora gasta tempo cantando ópera e dispensando pílulas de sabedoria cósmica (com sucesso, diga-se). Coppola faz uma comparação explícita de outro ponto de vista: o rendimento e o investimento de capitais, incluindo a escravidão e o actual mercado do trabalho.

Diz o milionário-cantor que se pensarmos nisso podemos entender como a escravidão, que foi o sistema que tem funcionado durante a maior parte dos últimos três mil anos, é semelhante à aquisição de robôs: temos um investimento inicial elevado e, em seguida, o custo da manutenção, porque ninguém quer perder o dinheiro investido e, ao mesmo tempo, porque é preciso que o investimento dê resultados.

Assim, afirma Coppola, na Inglaterra de hoje, onde todos os novos trabalhos são temporários,
“flexíveis”, sem contrato, “zero horas” (o empregador pode empenhar-te em qualquer altura, 40 horas numa semana e zero na outra), o custo do investimento inicial é menor do que no sistema da escravidão.

De facto é assim. Hoje o trabalhador temporário pouco qualificado e sem contrato, típico dos mercados anglo-saxónicos, têm custos mais baixos, teoricamente falando, do que um escravo e requer menores investimentos iniciais. O escravo moderno, por exemplo, não traz consigo a família toda, tal como acontecia antigamente (pelo menos no Ocidente), com relativos custos em termos de alimentação e habitação.

Uma comparação forçada? Talvez não.
No Ocidente dos dias de hoje, como vimos, temos jovens que não podemos construir-se um futuro, criar uma família, fazer filhos. Esta é a realidade em Portugal, Espanha, Grécia, Irlanda, Itália, Estados Unidos, Inglaterra.

Óbvio que o padrão geral de vida, com a tecnologia, é muito maior quando comparado com o que acontecia séculos atrás; e, em teoria, estes jovens dos call center, que ganham 700 Euros por mês, poderiam abdicar do telefone celular, do carro, da pizza, do cinema, comer só água e arroz. Mas sabemos, no entanto, que estas são apenas palavras, porque a realidade é feita do contexto, do factor de comparação relativa (a humilhação), da cultura dominante e dos meios de comunicação que “obrigam” a consumir.

Resumindo, o que realça Coppola é que, do ponto de vista do empregador, os trabalhadores de hoje custam menos respeito ao capital investido.

Não apenas isso. Mas, com um pouco de sorte, o empregador de hoje poderá encontrar um escravo cuja família fez sacrifícios para que o rapaz pudesse frequentar escolas, tirar cursos: um escravo não analfabeta mas com alguns instrumentos, uma mais valia.
Do ponto de vista do empregado, pelo contrário, estudar não compensa, pois as tarefas para as quais será destinado serão simples, de mera servidão.

Salinas Price tem vários artigos em que mostra (parafraseando, como é claro) que a tendência da actual fase de globalização no Ocidente é voltar à escravidão como alternativa economicamente acessível. Acessível não na óptica da elites, pois já assim é, mas da população.

A chantagem da emigração  

Frances Coppola, em paralelo, analisa o facto de que o capital está a tornar-se mais abundante,
totalmente e globalmente móvel, e acumula cada vez mais lucros, precisamente porque agora utiliza uma força de trabalho de milhões de pessoas, que partem de condições de pobreza semelhante aos escravos antigos: pelo que, deslocando a produção para o Terceiro Mundo ou a China e fazendo que milhões de imigrantes cheguem no Ocidente, empurra-se a massa de trabalhadores sem qualificação para a insegurança e a pobreza.

Estes imigrantes têm uma função que desenvolvem (inconscientemente) muito bem: enchem o mercado do trabalho de elementos que estão prontos para tudo em troca dum ordenado. Ignoram os seus próprios direitos, querem apenas deixar para trás uma realidade feita de miséria e obter casa e comida para si e para a família deles. São estes desejos mais do que legítimos: o problema é a forma como são forçados a emigrar, a forma como não são devidamente preparados para o novo País (do qual na maior parte dos casos desconhecem até a língua) e a forma como são “atirados” para a exploração.

Ao mesmo tempo, obrigam os desempregados locais a abdicar dos direitos que foram conquistados ao longo de séculos de luta, pois o empregador tem agora escolha: dum lado desempregados que reivindicam condições de trabalho legais e protegidas, do outro pessoas desesperadas, prontas a tudo.
É uma guerra entre pobres, uma guerra na qual nenhum dos dois lados ganha.

O aspecto da emigração é importante, pois o capital que emprega estes trabalhadores já não tem vínculos (com a cumplicidade dos Estados que ajudam a criar um mercado onde o trabalhador é “móvel”) e é multiplicado pela fenómeno da alavancagem, que por sua vez cria dívida e esmaga os cidadãos com os juros (eis uma das funções da austeridade).

O capital pode hoje chantajar os trabalhadores: ou com a ameaça de assumir pessoal do Terceiro
Mundo (escravos locais) ou directamente deslocando as empresas para os Países menos desenvolvidos (escravos no estrangeiros). E é verdade: na Albânia ou no Paquistão há trabalhadores que custam um quarto, sempre no meio dos aplausos dos especialistas económicos e o consenso da Direita e da Esquerda política .

Como é possível que economistas e forças políticas justifiquem esta situação? Bastante simples: a afirmação é que desta forma toda a população do planeta ganha com isso.
Assim, “ganha” o emigrante, obrigado a abandonar o País dele (muitas vezes sede de miséria pura) para tornar-se um escravo no Ocidente; e “ganha” o trabalhador que continua no Terceiro Mundo porque, além de ficar pobre como sempre foi, agora será também explorado por uma multinacional. Nada mal como satisfação.

Se, pelo contrário, o desejo for analisar os dados de forma séria, podemos observar como o fenómeno do desemprego na Europa reapareceu até em Países que já tinham resolvido o problema. Isso enquanto no Terceiro Mundo, os pobres continuam pobres.

(nota importante: o desemprego na Europa – ou nos Estados Unidos – não é causado exclusivamente pela imigração. Aliás, as causas principais têm outras raízes. Todavia, a imigração acentua o fenómeno e despoleta uma guerra entre pobres, no fim da qual quem ganha não é nem o imigrante, nem o desempregado). 

A globalização esmaga o emprego

Este mecanismo todo empurra os empreendedores a não investir no trabalho, ou seja, a assumir ou desenvolver  trabalhadores qualificados. O raciocínio é sempre o mesmo: porque raio investir quando é possível

  1. escolher entre uma massa de pessoas desesperadas forçadas a emigrar e dispostas a tudo
  2. deslocar a produção para o Terceiro Mundo.

Qual a diferencia entre um robô e um chinês que trabalha 12 ou 14 horas por dia e que pode ser substituído em qualquer altura por outro idêntico robô humano?

Salinas Price é um clássico pessimista e não vê solução, fala dum mundo que é governado hoje por um milhar de pessoas no máximo, um grupo que detêm as alavancas do poder e impulsiona a globalização financeira (ver também o livro Superclasse de David Rothkopf. A propósito: encontrei este livro, edições Quidnovi Politica, novo, em português, a 5 Euros numa feira do livro. Aconselho aproveitar caso se apresente a ocasião).

Coppola, pelo contrário, é mais técnico e menos histórico: apenas realça como o actual mecanismo reduz a força de trabalho aparentemente “livre” para condições de servidão.

Gostem ou não, é esta a actual situação.
E se o desejo for entender qual a causa, nada melhor do que espreitar o seguinte gráfico, que pessoalmente acho assustador:

Fonte: National Statistics, International Monetary Fund, OECD

No ano 2010, o enorme capital estava sentado em cima duma produção global dez vezes mais pequena: 600 mil biliões de Euros de riqueza perante 15 mil biliões de poupança.
A globalização financeira esmaga o emprego.

Ipse dixit.

Relacionado:
Escravos modernos – Parte I
O mundo da Superclasse

3 Replies to “Escravos modernos – Parte II”

  1. É, mas sem salário sem consumo e vão enfiar a produção na…..prateleira !
    Taí uma crise sem solução, uma situação que terminará em conflito mesmo com as prorrogações que vão sendo adotadas.

  2. "O mundo está suficientemente preparado para se submeter a um governo mundial. A soberania supranacional de uma elite de intelectuais e de banqueiros mundiais, seguramente é preferível à autodeterminação nacional."

    David Rockfeller
    1991

  3. —»» Um caos organizado por alguns – a superclasse (alta finança – capital global) pretende 'cozinhar' as condições que são do seu interesse:
    – privatização de bens estratégicos: combustíveis… electricidade… água…
    – caos financeiro…
    – implosão de identidades autóctones…
    – forças militares e militarizadas mercenárias…
    – implosão das soberanias…
    resumindo: uma Nova Ordem a seguir ao caos – uma Ordem Mercenária: um Neofeudalismo.
    .
    .
    Os 'globalization-lovers' que fiquem na sua… desde que respeitem os Direitos dos outros… e vice-versa!
    —»» Antes que seja tarde demais (nota: os 'parvinhos-à-Sérvia' – vide Kosovo – que fiquem na sua…) há que mobilizar aqueles nativos europeus que possuem disponibilidade emocional para abraçar um projecto de Luta pela Sobrevivência… e… SEPARATISMO-50-50!

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