Crimes preventivos

William Woodward

Estados Unidos? Sim, mas nada mais do que uma curiosidade.

Então é assim: há um fulano, tal William Woodward, que mora numa tranquila cidade da Florida: Titusville.

O simpático William poderia aproveitar do dia de festa, o Labor Day, para fazer um churrasco ou para dormir uma soneca. Mas, sendo americano, pega na pistola dele e dispara contra três vizinhos, os quais estavam mesmo a fazer um churrasco no quintalzinho deles. Resultado: dois mortos e um ferido grave.

“Então?” pode perguntar o sagaz Leitor, “Qual a novidade? O único dia no qual nada disso poderia acontecer nos Estados Unidos é o 30 de Fevereiro”.
Sim, é verdade. Mas vamos com calma.

Uma vez acabado o massacre quotidiano, William enfrenta o juiz e afirma que matou porque os vizinhos “costumavam molesta-lo há mais de um mês”. Que de facto é um período bastante comprido.
Mas o pior ainda está para vir: os vizinhos até tinham-lhe roubado um rolo de fita-cola! E sabemos como é: pode haver só um destino para um vizinho que rouba a fita-cola.

De facto, agora percebe-se melhor o porque do massacre, com tanto de golpe de  misericórdia  na cabeça.

“Então?” pode perguntar o aborrecido Leitor, “É um País com a obsessão das armas, qual o espanto?”.
E também isso é verdade.

A coisa bizarra nesta história toda não é a atitude do simpático Williams (que afinal tinha sido defraudado da fita-cola), quanto aquela  dos advogados deles: segundos os legais, de facto, William outra coisa não fez a não ser aplicar a doutrina do saudoso Presidente Bush.

A teoria: William sentia-se ameaçado pelos vizinhos, portanto tinha todo o direito de mata-los. Na prática, tratou-se da implementação em  âmbito  local da Preventive War, a guerra preventiva, a mesma que permite aos EUA atacar qualquer País que um dia, eventualmente, talvez, se calhar, quem sabe?, poderia tornar-se uma ameaça para a segurança nacional.

Pensamos nisso: a Administração de Washington pode e o cidadão estadounidense não? E que raio de democracia seria esta? Não faz sentido nenhum.

George W. Bush

Mais: o diário Florida Times revela que os advogados citaram também a Stand Your Ground, a simpática lei da Florida segundo a qual os donos de armas de fogo, perante uma iminente ameaça, podem disparar logo.

Os vizinhos tinham ameaçado? Sem dúvida: tinham ameaçado de “ir buscar” o pobre William. Este “ir buscar”, segundo os legais, sugere um movimento, um acto que pode tornar-se realidade no futuro (eis o “iminente”) e contra o qual é preciso acautelar-se.

Robert Berry, um dos geniais advogados de William, acerca do “iminente”:

Acho que a norma legal o termo encontra-se de certa forma num estado de contínua evolução, especialmente tendo em vista a definição de “iminente” por parte do nosso governo. Um conceito que ampliou-se em comparação ao simples facto de alguém apontar uma arma para a nossa cabeça. É, portanto, algo que poderia transformar-se numa ameaça imediata.

Tudo isso parece absurdo ao pasmado Leitor?
Mas não é: esta é a essência da doutrina Bush. É por causa disso que o Iraque foi invadido: se uma teoria “defensiva” for democraticamente valida para invadir um Estado e matar os cidadãos deste, por qual razão não poderia ser aplicada para a defesa “preventiva” do nosso quintal?

Os consequentes e possíveis cenários são muito interessantes. Os tribunais civis, por exemplo, ficariam aliviados de boa parte do trabalho. Um problema com o vizinho acerca do estacionamento do carro? Nada de burocracia, tribunais, leis ou juízes: é só ouvir algo do tipo “Vais ver o que acontece!” e temos uma razão mais do que suficiente para executar a família toda (e ficar com o lugar para o carro, o que dá sempre jeito).

Um bocado exagerado? Absolutamente não: distinguir entre o que pode fazer um Estado e o que pode fazer um cidadão não tem lógica nenhuma, pois o Estado não existe, todos nós somos o Estado.
Alguma vez viram um Estado sem cidadãos?

Portanto, se o Estado pode (e pode com o nosso consentimento, mesmo que silencioso), nós também podemos.

E depois dizem que dos Estados Unidos só notícias negativas…

Ipse dixit.

Fontes: The Raw Story, Wesh, Florida Today

5 Replies to “Crimes preventivos”

  1. Perfeito Max, um dos teus bons raciocínios! É assim que o estado exerce a sua pedagogia sobre os seus cidadãos. Assim como aqui no Brasil existe um curso de corrupção desenvolvido pela maioria dos parlamentares de todos os partidos, juízes, policiais, corregedores, promotores de justiça, empresários que atuam dentro e fora da chamada legalidade, lá nos states o curso que predomina na grade curricular estatal é, sem dúvida, o do medo social, que incentiva as atividades defensivas, e o da banalização da vida, este último também mantido em todos os países periféricos, sob o sugestivo nome de problemas de segurança, e consequentes práticas de violência generalizada. Abraços

  2. Quem viu o filme Relatório Minoritário onde os 'criminosos' são condenados, antes de cometerem o crime, já está familiarizado com este assunto.

    Deste post, fica a brilhante inspiração dos advogados do tal William Woodward, que muito bem inspirados na administração americana e na elaboraram uma tese de defesa que, ao nivel governamental tem tido sucesso tanto no EUA como na Europa.

    Ataques preventivos estão na moda, seja quais forem os motivos invocados, terrorismo, armas quimicas ou mesmo o roubo de rolos de fita cola.

    Krowler

  3. estes exemplos de como um sociedade doente pode evoluir para algo perigoso não é ficção está a acontecer e logo com o país mais armado e perigoso do mundo. Tem invadido varios países desde há varios anos e tirando a China não vemos quem possa travar estes criminosos.

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