Bail in: o Grande Roubo, mas legal (e sempre para o nosso bem)

Lembra-se o Leitor do que aconteceu em Chipre?

Na simpática ilhota, as coisas estavam mal (bom, não tão mal em verdade: em crise estava o sistema bancário “hiper-alavancado”), os bancos pediram ajuda e alguém acordou numa linda manhã com uma brilhante ideia: “Vamos fazer um bail in!”.

Até a data os Países em dificuldades eram ajudados com um bail out, um resgate (dinheiro do exterior). Tinha sido este o caso da Irlanda, de Portugal, da Grécia.

Chipre foi o primeiro caso de bail in, com dinheiro encontrado onde? Nos bolsos dos cidadãos.

Sim, é verdade, também o bail out é feito com dinheiro dos cidadãos, no sentido que os montantes entregues aos Países em dificuldades não são encontrados debaixo das couve-flores: é dinheiro saído das taxas, dos impostos, é dinheiro dos contribuintes.

Mas no Chipre a coisa foi feita de forma ainda mais simples: o dinheiro foi retirado directamente das contas bancárias dos depositantes.

Strizhka

A teoria é simples: em caso de dificuldades, os cidadãos têm que ajudar o País em crise.

Pergunta: e aqueles que administraram mal as contas do Estado, que levaram o País à beira da falência? As instituições bancárias que jogaram (mal) na Alta Finança com resultados desastrosos? Numa palavra: os responsáveis?

Bom, tudo isso é secundário: o cidadão é que tem de ajudar, ora essa (mantra: o cidadão fez uma boa vida até agora, viveu acima das possibilidades).

O caso-Chipre foi assim fechado entre a satisfação geral. Talvez os titulares de depósitos ficaram um pouco menos satisfeitos, mas nem sempre é possível contentar todos.

Mas, sobretudo, ficou no ar este novo instrumento: o bail in, o Grande Roubo.

“Novo”? Não propriamente. Em boa verdade, a ideia circulava há uns tempos.

Já em 2009 e em 2010, quando as cimeiras internacionais discutiam as possíveis saídas da crise global (G7, G8, G20 e todas as outras reuniões que começam com G), nos programas apareciam pontos que tratavam das “novas” maneiras para salvar os bancos, métodos fora dos padrões. E entre estes métodos estavam contemplados modelos como o bail in.

Ainda em Dezembro de 2012, viu a luz um documento conjunto da Federal Deposit Insurance Corporation e do Banco da Inglaterra, com o título Resolving Globally Active, Systemically Important, Financial Institutions (“Resolver Instituições Financeiras Globalmente Activas, Sistematicamente Importantes”). Nele, os autores admitem que as recentes crises bancárias foram tratadas em grande parte graças à injeções financeiras (dinheiro injectado) e que, de acordo com o novo ponto de vista, estas medidas estão erradas: porque, em violação das leis da economia de mercado, transferem a carga sobre os contribuintes, agravam o défice orçamental, aumentam a dívida pública. O relatório argumenta que a utilização dos depósitos é uma maneira de resolver o problema mais justa, eficaz e orientada para o mercado.

É uma visão muito interessante e sem dúvida inovadora: resolver os problemas de empresas privadas (os bancos) com injecções de dinheiro público não é bom, resolver os problemas das mesmas empresas com o dinheiro do público aí guardado é bom. E mais divertido também.

Seria possível falar também do défice orçamental, da questão da dívida, mas não vamos por aí agora. O que conta é que os autores eludem a pergunta de fundo: é esta uma medida justa e democrática ou é apenas um expediente de mercado? Não há resposta, evidentemente não interessa.

Penauts, como diriam os Ingleses.

Não admira, portanto, que já em Janeiro de 2013, o New York Times usou a palavra russa strizhka (corte) para descrever os acontecimentos em Chipre:

Os russos, que representam cerca de um quinto dos depósitos bancários em Chipre, receberão um duro golpe.

Como é que o diário americano conhecia com dois meses de antecedência o que teria acontecido no Chipre? Mistérios do jornalismo.

O que faltava era a prova no terreno. E Chipre era a cobaia ideal: uma pequena ilha no meio do Mediterrânico, meia-turca, meia grega, poucas almas facilmente controláveis, com bancos recheados de capitais estrangeiros (mas não ocidentais, porque não somos masoquistas, não é?).

Chipre passou o teste na melhor das maneiras: no sentido que o dinheiro foi retirado das contas dos depositantes (estrangeiros e nacionais) e ponto final. Mas mais importante do que isso, foi estabelecido um precedente e apontada uma via: o bail in.

Em Abril de 2013, o Presidente cipriota Nicos Anastasiades disse:

Espero honestamente que este precedente de Chipre não seja aplicado em nenhum outro país da Europa, embora, como é sabido, a principal razão para a existência de um precedente é estabelecer normas e directrizes que possam ser aplicadas novamente e universalmente.

E bravo Nicos, já estás a ver o filme, não é?

Além de Chipre

Imediatamente após os acontecimentos de Chipre, outros Países começaram a ser observados com a lupa: Portugal, Espanha, Itália, Irlanda, Grécia e Eslovénia, todos lugares onde a dúvida foi “Será que agora é a nossa vez?”. E, estranhamente, os “Não, ora essa!” das autoridades não tranquilizaram ninguém, também porque entre os políticos-economistas havia sempre alguém com a língua mais desenvolvida do que o cérebro e algo era possível vislumbrar.

Mas, com surpresa, nada aconteceu na Europa. Com surpresa ou talvez não: transformar um aborrecido balde de gasolina numa ardente fogueira é coisa rápida, pelo que certas coisas devem ser feitas com um mínimo de preparação. Até em Bruxelas conseguem perceber uma ideia tão simples (ou se calhar receberam uma dica).

Pelo que a técnica do bail in teve eco em lugares muito, mas mesmo muito distantes: Nova Zelândia e Canadá.

A Nova Zelândia

O governo da Nova Zelândia começou a mover-se para chegar ao mesmo ponto: a iniciativa, definida Open Bank Resolution (OBR), prevê que os depósitos sofram cortes para salvar os bancos (privados, claro).

Autor do OBR é Bill English (não confundam com Johnny English, apesar do nível parecer o mesmo), Vice Primeiro Ministro e Ministro das Finanças do País.
Explica Russel Norman, líder do local Partido Verde:

Bill English propõe uma solução ao estilo Chipre aqui, na Nova Zelândia, para gerir a falência dos bancos. Uma solução que vai ver os pequenos investidores perderem parte das suas economias para financiar o resgate dos grandes bancos.[…] A Reserve Bank [o Banco Central, ndt] está na fase final da aplicação de um sistema de gestão das falências bancárias chamado Open Bank Resolution. Com este esquema, todos os depositantes serão pendurados num gancho para salvar o banco. Dum dia para outro vão perceber que as suas poupanças foram reduzidas pelo montante necessário para manter o banco à tona. Enquanto ainda há alguns detalhes que devem ser definidos, quase todos os depositantes vão encontrar-se com as poupanças reduzidas na mesma proporção.

O Canadá

O Governo do Canadá apresenta anualmente ao Parlamento um plano de acção económica, elaborado pelo Ministério das Finanças. No passado 21 de Março de 2013, o novo plano chegou à Câmara dos Comuns. Na página 155, podemos ler:

O Governo propõe a aplicação de um sistema de bail in para os bancos de importância sistémica. Será planeado de modo a garantir que, no improvável caso de que um banco de importância sistémica esgote o seu capital, este possa ser recapitalizado e haja um retorno ao lucro através de uma conversão muito rápida de determinados passivos do banco em capital de vigilância. Desta forma, serão reduzidos os riscos para os contribuintes. O Governo vai consultar as partes interessadas sobre as maneiras para apresentar no Canadá o melhor sistema de bail in. O calendário deve permitir uma transição suave para instituições, investidores e operadores de mercado envolvidos.

Em outras palavras, não há razões para ficar preocupados: será um roubo, sim, mas será suave, e ver descer o saldo da própria conta representará quase um subtil prazer.

Os Estados Unidos

E os vizinhos, os Estados Unidos, o que dizem os vizinhos?
O aspecto social não anda muito longe daquele europeu (até está pior se considerarmos apenas os números da pobreza), pelo que não é esta a altura para implementar legalmente o Grande Roubo. Mas isso não significa que o assunto esteja esquecido, longe disso. É que salvar os bancos com o dinheiro que os cidadãos tinham entregue aos mesmos bancos para que fosse guardado em segurança é uma ideia demasiado divertida para que seja posta de lado.

Mas, sendo Estados Unidos, aqui conseguem ir mais além.

Em 2010, o Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos fez circular uma carta entre os bancos, advertindo que o FBI e outras agências policiais tinham acesso legal aos cofres dos clientes do banco. Não apenas dinheiro, portanto, mas também documentos, ouro, metais preciosos e outros objectos de valor podem ser confiscados, se necessário, no interesse da segurança nacional. Na altura a informação foi relacionada com a luta contra o crime organizado, o tráfico de drogas e sim, ele…o terrorismo. E, de facto, o documento era uma derivação do conjunto de leis entradas em vigor após o 11 de Setembro de 2001.

Mas entretanto as coisas mudaram: em 2013, alguns especialistas interpretaram a lei afirmando que a falência de um banco é uma séria ameaça à segurança nacional. Portanto, eis a conclusão: seria perfeitamente legal confiscar não apenas o dinheiros das contas como também os objectos de valor guardados nos cofres dos bancos.

Estados Unidos, sempre muito a frente.

A Europa

E na Europa, onde tudo tinha começado? Tranquilos, nem aqui o Grande Roubo foi esquecido. Só que é preciso mexer-se com muita atenção, pelas razões acima explicadas. No entanto o caminho está traçado.

O primeiro passo foi dado em 24 de Abril deste ano, quando a Comissão dos Assuntos Económicos e Monetários (ECON) do inútil Parlamento Europeu aprovou um relatório sobre a proposta relativa ao resgate dos bancos, um pilar fundamental na reforma da legislação europeia sobre os bancos, obra de Gunnar Hökmark, deputado e membro do Partido Conservador sueco.

Em Maio, durante a reunião do Conselho Economia e Finança (ECOFIN), dirigido por Michel Barnier (Comissário Europeu para o Mercado Interno e os Serviços), foi discutida a questão dos cortes nos depósitos. Em 20 de Maio, um grupo de legisladores da Comissão Euro-parlamentar para a Cooperação da Economia (Comissões e Conselhos são coisas que não faltam em Bruxelas) votou por grande maioria que, a partir de 2016, os principais depositantes da União Europeia poderão sofrer perdas se um banco se encontrar em dificuldades.

O plano é semelhante ao aplicado em Chipre, onde os depositantes “ricos” (aspas obrigatórias) foram assaltados para evitar a falência. Actualmente as principais medidas são as seguintes:

  • Depósitos abaixo de 100.000 Euros estão salvos.
  • O banco assaltaria os depositantes (com montantes superiores a 100.000 €) depois de ter esgotado outras opções
  • O novo sistema de resgate do sistema bancário (o bail in) entrará em vigor em 2016.
  • A lei prevê a criação de fundos nacionais de resolução com base nas contribuições dos bancos. Alguns legisladores exigem um Fundo Europeu de resolução. A Comissão Europeia vai propor o tal fundo nos próximos meses, apesar de encontrar a resistência da Alemanha.
  • O clientes dos bancos serão divididos em duas categorias: confiáveis e de risco. As medidas do confisco (o roubo) serão definidas de acordo com a categoria.
A última medida é a mais interessante, porque na verdade não há critérios para definir os depositantes. Mas alguns analistas interpretam da seguinte forma: os confiáveis ​​são os “nossos”, ou seja, aqueles pertencentes à Área do Euro, aqueles de risco são aqueles que vivem fora do Euro. Os Russos, por exemplo, seriam considerados “depositantes de risco”. Uma medida genial para atrair capitais estrangeiros que, desta forma, estarão constantemente sob a espada de Damocle.

Duas últimas notas.

100.000 Euros podem parecer muitos para quem viva fora da alegre Zona Euro, mas assim não é. Pode tranquilamente representar a poupança necessária para adquirir uma casa, não no centro duma cidade e nem luxuosa.

E se alguém achar esta uma medida justa, pois desta forma os “ricos” irão contribuir para salvar as economias de bancos e Países, bom, então chegou a altura para descer do árvore: mas realmente acreditam que um Bill Gates tenha a sua imensa fortuna numa conta da Bank of Amerika? (explicação: uma pessoa rica com um mínimo de cérebro utiliza os seguintes instrumentos: offshore, fundos de investimentos, títulos fora da Bolsa, etc.)

Ipse dixit.

2 Replies to “Bail in: o Grande Roubo, mas legal (e sempre para o nosso bem)”

  1. Uma correção. Não se trata do grande roubo mas mais um grande golpe dos grandes banqueiros sionistas, reprisando o que fizeram via industria do Holocausto e o que vem fazendo com inúmeras nações via FMI, Bird, controles cambiais e taxas de juros artificiais. Os "donos do mundo" continuarão pensando como donos do mundo…

  2. E já chegou a portugal também !!!!

    Sempre na vanguarda da inovação este país…..

Obrigado por participar na discussão!

This site uses User Verification plugin to reduce spam. See how your comment data is processed.

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

%d bloggers like this: