Afeganistão: os EUA tentam a saída

Enquanto no Brasil a situação melhora e Portugal continua alegremente em coma profundo, os Grandes da Terra reuniram-se na Irlanda para resolver duma vez por todas os graves problemas do planeta.
Que são: transparência, impostos, land grabbing, emprego e burocracia.

Pois. São estas as pragas que arruínam a nossa vida segundo os membros do G8. Mas podemos ficar descansados, porque os Grandes encontraram um acordo: decidiram que sim, de facto tudo isso é um problema e deveria ser resolvido. Como? Calma pessoal, muita calma: a pressa é inimiga do bom, não é que tudo possa ser revelado neste ano. É um pouco como a trilogia do Senhor dos Anéis: cada ano um pedacinho. E quando acabar a trilogia, começa a saga do Hobbit.

A única verdadeira novidade surgiu no último dia e foi o simpático Barack Obama a anuncia-la: os Estados Unidos pedem a paz no Afeganistão e em Doha, capital do Qatar, começaram as negociações com os Talibans para encontrar um acordo. Claro, Washington não pode admitir a derrota, por isso os assessores de Obama explicaram que as negociações não serão conduzidas directamente pelos americanos, mas pelo governo de Karzai (presidente do Afeganistão) com a Comissão política talibana que recebeu a autorização do Mullah Omar, o líder dos guerrilheiros.

Mas sabemos qual o real peso e, sobretudo, a autonomia de Karzai: zero, pois não passa dum fantoche utilizado pelo Departamento de Estado dos EUA. A simples realidade é que as negociações serão realizadas entre os americanos e os Talibans. E o anúncio do simpático Obama chega depois de dois anos de contactos “informais” e escondidos.

Os Estados Unidos perderam esta guerra, tal como saíram mal do Iraque. 
E não é dito que as negociações possam conduzir a uma saída do Afeganistão: não é a primeira vez que os americanos tentam envolver os Talibans no fim da guerra.

Já tinham tentado em 2005, quando a guerrilha, organizada pelo Mullah Omar, encontrava-se apenas no início da contra-ofensiva. Os americanos fizeram duas contas e perceberam que a coisa estava preta: propuseram uma amnistia para os rebeldes que depusessem as armas. Obviamente não funcionou: na prática, nenhum comandante dos Talibans se rendeu. Dos 142 incluídos na “lista negra” pelo Conselho de Segurança da ONU, apenas 12 figuras marginais concordaram em depor as armas (que depois foram retomadas mais tarde, quando os drones começaram a matar civis).

Já tinham tentado em 2010, época em que os Talibans controlavam 75% do território. As condições dos americanos eram estas: “Antes os Talibans desarmam e aceitam a Constituição, depois podemos começar um diálogo”. Como fez observar Wakil Muttawakil, ex-ministro das Relações Exteriores do Mullah Omar: “Uma vez que os Talibans depõem as armas e aceitam a Constituição, o que sobra para falar?”. Claro, a iniciativa não deu em nada.

E já tinham tentado formando um grotesco Conselho de Paz onde alegavam a participação de alguns “importantes” líderes dos Talibans, na verdade indivíduos que pareciam ter sido encontrados nos cafés de Kabul (naquela ocasião, em pleno desespero, os EUA até pediram a ajuda do arqui-inimigo Irão).

Todas essas tentativas falharam porque os americanos sempre recusaram negociar com o Mullah Omar, o indiscutível (e prestigiado aos olhos dos afegãos) líder dos guerrilheiros.
Não Omar? Não paz, muito simples.

E a novidade da reunião do inútil G8 irlandês é mesmo esta: os americanos dobram-se e estão dispostos a lidar com Omar, “o monstro”.

O anúncio de Obama tenta esconder (mal) uma derrota esmagadora. Dos americanos e da fiel Nato.
Em doze anos de guerra, a mais longa nos tempos modernos, o mais poderoso exército do mundo, dotado da melhor tecnologia disponível, não é capaz de derrotar “um punhado de criminosos e terroristas”, que nesta altura recuperaram toda a imensa área rural do Afeganistão, cerca de 80% do País. E isso acontece porque os Talibans, e mais geralmente os rebeldes (não há apenas Talibans no Afeganistão), têm o apoio da esmagadora maioria da população, historicamente intolerante perante o estrangeiro (Ingleses no 1800, Soviéticos no 1900).

Mas agora a situação está parada.
Os Talibans não podem conquistar as cidades (Kabul, Herat, Mazar-i Sharif; em Kandahar, berço do movimento Taliban, a situação é um pouco diferente), dada a enorme desproporção de armamentos.
Por outro lado, os norte-americanos não podem conquistar e manter a área rural e têm a absoluta necessidade de sair daquele buraco porque não podem dar-se ao luxo de gastar 40 biliões de Dólares por ano numa guerra que não podem vencer.

Estas as razões das negociações. Que parecem muito difíceis. Os norte-americanos, apesar de tudo, insistem em pôr condições:

  1. romper todos os laços com a Al Qaeda (ah, pois, o fantasma de Al Qaeda…)
  2. fim dos ataques
  3. reconhecimento da Constituição de 2004.

Depois, há um quarto ponto não dito: os americanos queriam tanto deixar três ou quatro bases aéreas na zona, assim, como recordação.

Quanto ao primeiro ponto, não há problema: os Talibans nunca foram terroristas internacionais. Osama Bin Laden chegou na zona porque trazido pelo nobre Masood, com a intenção de lutar contra outro “senhor da guerra”, Hekmatyar. O Mullah Omar não tinha nenhuma consideração por Bin Laden (que descrevia como “um homenzinho”) e este sempre foi um problema.

Tanto é assim que em 1998, quando Bill Clinton propôs a eliminação de Bin Laden, Omar declarou-se disponível. Foi Clinton que mais tarde recusou (procurem os Documentos do Departamento de Estado), e hoje podemos até imaginar quais as razões.

Em 2001, depois dos ataques às Torres Gémeas, Omar poderia ter entregue Bin Laden aos americanos e pediu as provas do envolvimento nos ataques. Os norte-americanos responderam: “As provas foram dadas aos nossos aliados” (na verdade, Bin Laden nunca foi oficialmente acusado dos ataques). E o governo afegão recusou a entrega dum homem que ainda estava sob a sua jurisdição.

Em qualquer caso, não é este o problema: o Mullah Omar parece disposto a aceitar eventuais inspecções da ONU neste sentido.

O que não pode absolutamente aceitar é a Constituição de 2004, inspirada nas instituições, nos valores, nos costumes do Ocidente. Lutou, tal como todos os afegãos, para preservar as suas próprias instituições, as tradições, os seus valores, a sua essência e agora deita tudo no lixo? É este o ponto mais crítico.

Mullah Omar diz que, no final das negociações, não pode haver nem um único soldado estrangeiro em solo afegão. Não lutou mais de trinta de seus 53 anos de vida pela liberdade do seu País, primeiro contra os invasores soviéticos, depois contra os abusos dos “senhores da guerra” (Massoud, Dostum, Eckmatyar, Ismail Khan) e, finalmente, contra os ocupantes ocidentais, sacrificando toda a sua vida, para ser forçado a aceitar um “Pax Americana”.

Sem entender isso, não haverá paz para os americanos.

Ipse dixit.

Fontes: UrbanPost, LTEconomy, Massimo Fini, Der Spiegel, Wikpedia (1, 2, 3, 4, links em idioma inglês)

2 Replies to “Afeganistão: os EUA tentam a saída”

  1. Olá Max: de derrota em derrota americana, a humanidade vai sendo trucidada, e os senhores da guerra vão enchendo os bolsos. De reconstrução em reconstrução, o mundo vai perdendo identidades, memória e história,e os senhores da guerra continuam se locupletando. Vez por outra, os senhores da guerra mandam seus executivos sentarem a mesa para planejar e avaliar o andamento dos negócios, atualizar direcionamentos globais etc, para ainda uma vez garantir a rentabilidade dos negócios dos deuses, enquanto o planeta inteiro desce às profundezas dos infernos, e em geral, patriótica, ideológica, burra e outros mentes. Abraços

    1. De um lado os afegãos estão certos, que valores morais o ocidente pode oferecer a um povo tradicional e conservador? a única coisa boa q o ocidente ainda pode oferecer a países como esses é mais respeito as mulheres, mais liberdade (não confundir com libertinagem), fora isso o ocidente não é bom exemplo moral para as futuras gerações de afegãos.
      Nisso, mesmo com todos os seus defeitos, eles estão certos em querer americanos e europeus longe de suas famílias. Sou brasileiro e sei o que a "modernidade" traz de valores morais para o povo, sei muito bem.

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