O banco “escondido” da Alemanha

Lembram-se do discurso acerca do Dakota do Norte, o facto de ter um banco público que gera lucros para o Estado?
Não se lembram? Isso é mal, porque o artigo foi publicado há dois dias, sugiro uma visita ao médico e muito peixe, que contém fósforo.

Para os outros, os que já comem peixe há tempo, vamos falar duma coisa que parece não ter nada a ver com quanto lembrado mas que, na verdade, é a mesma coisa. Confusos? Não faz mal, eis o que se passa.

Todos sabemos que a Alemanha é a grande virtuosa das economias europeias. Bom, verdade que o crescimento parou e que os trabalhadores são mal pagos. Mas estes são pormenores, a chancelera Angela Merkel continua a passear pela Europa toda distribuindo sermões e conselhos dos quais ninguém sente a falta. Uma atitude normal: a Alemanha é a Alemanha. Eu sei que Portugal é Portugal, mas acreditem, não é a mesma coisa.

A dúvida: mas como é que a Alemanha consegue ser tão virtuosa? Sim, já dissemos que os trabalhadores são mal pagos, que a Dívida Pública é reduzida (certeza?), mas será só isso ou haverá algo mais? Serão os wurstel que fazem trabalhar com mais empenho?

Não são os wurstel, é um banco, cujo nome é Kfw. Nome feio, doutro lado é alemão.
E que tem de especial este banco? Eis que volta o Dakota do Norte e o seu banco público. Porque Kfw é o banco do Estado.

Calma, calma: mas como? Os bancos dos Estados não têm o nome de Banco Central? Sim, têm, mas este é um banco verdadeiro, um banco comercial. E aqui começam os problemas.

Os Estados da feliz Europa, para poderem-se financiar (obter dinheiro), são obrigados a vender os próprios Títulos de Estado aos bancos privados: é uma troca desgraçada, no sentido que, como já sabemos, os Títulos são fontes de juros, estes juros acumulam-se e tornam a dívida insustentável.
Isso a não ser…exacto: a não ser que o banco seja um amigo, aliás, seja mesmo o banco do Estado. E este é o Kfw.

O esperto Leitor português pode dizer: “Tá bom, mas onde estão os problemas? Afinal também Portugal tem o seu próprio banco comercial, a Caixa Geral de Depósitos”. O que é verdade. Mas o problema não é apenas “possuir” um banco comercial, é utiliza-lo da melhor forma.

Uma diferença significativa é o facto da CGD não pertencer inteiramente ao Estado português, sendo os vários accionistas:
15,0% Zon Multimédia
5,1% PT
5,25% EDP
20,0% REN
1,25% Galp Energia
6,2% Banco Comercial Português (participação indirecta)

Por isso 52,8% (a maioria) da Caixa está nas mãos dos privados, enquanto a Kfw é 100% público: 80% do governo e 20% dos Landers (as várias repúblicas que formam a Alemanha).

A Kfw nasceu após a Segunda Guerra Mundial, como “banco da reconstrução” e desenvolve tarefas de financiamento do sector público e privado: mas é um banco comercial, com livros contáveis próprios que não entram no orçamento do Estado alemão e, sobretudo, não fazem parte da Dívida Pública.

Com a Kfw, o governo de Berlim transfere operações de investimentos e financiamento que caso contrário teriam de figurar no orçamento estatal. Iniciado com um património de 1.4 biliões de Dólares (do Plano Marshal), hoje conta com 500 biliões de Euro e detém participações na Deutsche Post (o correio) e na Deutsche Telekom (comunicações).

Como afirmado, o Kfw financia o Estado alemão também. Mas quanto?
Em 2011 o banco emprestou ao sector público 436.7 biliões de Euros. Este é um dado interessante porque se somarmos este valor à dívida pública oficial da Alemanha (2.076 biliões), obtemos o espantoso total de 2.512 biliões de Euro. Tanto para fazer uma comparação, a dívida italiana fica abaixo dos 2.000 biliões.

E o tanto citado rácio Dívida/Pib seria bem diferente.

Este é um ponto muito importante porque na realidade já agora a Dívida Pública da Alemanha é a maior do Velho Continente em termos absolutos (não em termos de rácio Divida/Pib). Consegue ficar na casa de 80% do Pib (para ser precisos: 83.2%) só porque o dinheiro do Kfw (utilizado também para reformas e serviços públicos) não entra no orçamento.

E se olharmos para o desempenho da Alemanha nos últimos anos, não é difícil entender a razão:

Cliiiiick para aumentar!

Agora algumas perguntas sem respostas:

  • Porque nenhuma autoridade europeia sugere a criação dum banco público como o Kfw nos Países em dificuldades?
  • Porque, pelo contrário, é pedido que os Estados continuem no caminho das privatizações, bancos incluídos?
  • Porque o Banco Central Europeu permite que um dos Países “jogue” com o orçamento de Estado, tal como a Alemanha pode fazer com o dinheiro do Kfw?

Sem respostas? Se calhar há, e nem é precisa muita fantasia.

Ipse dixit.

Fontes: Salvatore Tamburro, Kfw Annual Report 2011 (ficheiro Pdf em inglês)

6 Replies to “O banco “escondido” da Alemanha”

  1. Olá Max,

    Faço minhas as palavras da Rita M., muito bem "descoberto" este kfw…

    Um abraço.

    Max

  2. Olá Max: minha resposta às perguntas no post resume-se a um ditado muito popular que diz"faz o que eu digo, não faz o que eu faço". E, em geral, quem assim procede é quem vive de tirar proveito do desconhecimento dos outros."Descobrir" as façanhas encobertas de pessoas, grupos, instituições… nos desenha uma cartografia do mundo que nos faz sábios. Isso eu posso dizer que acredito. Abraços

  3. Max,

    Muito a propósito este post…

    Então não é que na visita da Angela a Portugal constava:

    Do programa económico preparado por Berlim e Lisboa, resulta a importação de dois modelos alemães para a economia nacional. Por um lado, um novo ensino profissional e, por outro, a criação de um banco de fomento, à imagem do KfW.

    Deveras interessante,

    Um abraço

    Zarco

  4. Olá Zarco!

    Muuuuuito interessante mesmo, não sabia. Como é que ninguém falou nisso?

    A criação dum banco de fomento seria uma óptima ideia, é o que a economia precisa, entre as outras coisas.

    Interessante também porque isso revela qual a ideia da Alemanha acerca do BCE: Berlim sabe que o banco europeu não tem a receita para sair da crise, as forças (e assim o dinheiro) tem que ser encontrada no País.

    Um péssimo sinal do ponto de vista europeísta.

    Obrigado e abraço!

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